Cultivar e guardar : refletindo com o Papa Francisco sobre Ecologia

junho 19, 2017
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Por Sylvia Mello Silva Baptista:

O presidente da Slow Food, Carlo Petrini, comentou, na forma de um Guia de Leitura, a “Carta Encíclica Louvado Seja” do Papa Francisco, publicada em 2015, ressaltando a alegria e a esperança com que o pontífice aponta para as necessárias mudanças face à degradação da nossa casa Terra, onde somos vítimas e ao mesmo tempo algozes.
Não há como ler a publicação sem recorrer à encíclica e ver – ou seria melhor dizer “ouvir”- ali descritas com extrema simplicidade e clareza, a voz de um cidadão do mundo, tão preocupado e alarmado com as questões ecológicas quanto você ou eu. Fica muito fácil entender porque Petrini se interessou em comentar o documento: todos os pontos ressaltados pelo Papa são fundamentos do movimento Slow. Tudo está ligado, interligado e implicado. Nós somos o planeta e o planeta nos constitui. A questão ecológica une e costura visões sociais, políticas, humanitárias, econômicas e médicas.

Petrini faz ver como o Papa realiza um grande chamado a todas as religiões, visando atingir os homens para além de suas fés. Parafraseando o Papa, aponta para a existência de uma cultura do descarte, onde o consumismo tenta preencher os nossos vazios. “Fazemos a mesma coisa com a natureza e também com os nossos irmãos e irmãs que morrem de fome e desnutrição, que são vítimas da pobreza, com quem não temos relações diretas e que não podem nos dar nada daquilo que precisamos: a sua fome e a sua condição são, a nossos olhos, algo fatalmente inevitável, algo que pertence ao mundo e que não se pode mudar, como se fosse uma questão de sorte ou azar. Em poucas palavras, algo intolerável, e isso é assustador.”

Seria preciso uma mudança de paradigmas para abrir espaço para o “cultivar e guardar”, postura de um novo humanismo contrastante com a prática violenta e predatória que vemos acontecer à nossa volta. A ecologia integral é um caminho possível e Francisco vai à Bíblia e mesmo a seu inspirador Francisco de Assis buscar referências à consciência e exortação contra a fome e a miséria –concretas e simbólicas. Como seria possível falar em fraternidade em um contexto de exploração e divisão de bens tão absurdamente desigual? O descuido com o próximo põe em perigo a vida como um todo – exterior e interior.

Diz Petrini:

– em poucas palavras, falta a “ecologia integral”. O compromisso de garantir a todos o direito ao alimento e à água (nesta encíclica, a acusação contra quem privatiza a água não tem apelação: cfr. n° 30) deve tornar-se a missão principal do novo humanismo almejado por Francisco. É impossível não estar de acordo.

A Medicina Sem Pressa se espelha nesses valores quando também prega um olhar para o próximo, cuidando e guardando o que é valioso na relação inter e intrapessoal. Parece-me que a fala do Papa, comentada por Carlo Petrini, demonstra a confluência de visões e preocupações que se fazem mais e mais presentes num momento de extrema delicadeza da consciência humana. Carl Gustav Jung dizia que quanto mais luz, mais sombra, alertando para o fato de que quando sabemos mais de nós mesmos, mais tomamos ciência de nossas limitações, bem como de nossas necessidades de transformação.

O movimento Slow vem se somar a esse quantum de luz que estamos podendo acrescentar aos tempos atuais. E aí a pobreza – material e de espírito – fica mais explícita. Assim como a Slow Medicine exorta aqueles que estão diretamente ligados ao atendimento ao outro numa relação de escuta ao sofrimento, Petrini comenta o texto papal sobre a necessidade de dar ouvidos aos mais humildes (aqueles mais próximos da terra, pois próximos do húmus, e portanto, ainda mais humanos).
Papa Francisco propõe não apenas uma reflexão, mas uma ida à ação. É urgente mudar hábitos, modos de fazer, formas de educar. O desafio é enorme. Mas o pontífice parece não esmorecer e acredita genuinamente na possibilidade de tornar o impossível viável. “A consciência da gravidade da crise cultural e ecológica precisa de traduzir-se em novos hábitos.”
Petrini se deixa contagiar pelo otimismo e encorajamento de Francisco e ressalta que “preservar, guardar e cultivar esse sistema é nosso dever, pois é do nosso próprio interesse: sobrevivência, existência, plenitude de espírito e, por fim, paz. Alegria.”

Recomendo a leitura do guia elaborado por Carlo Petrini, que nos conduz com elegância e eficácia ao âmago do pensamento do Papa Francisco num momento iluminado de fundamental reflexão, bem como da Encíclica, de simplicidade e profundidade admiráveis para um tema tão abrangente e desafiador no que tange a transcendência do aspecto puramente religioso.
Concluo, ousando subverter o ditado, que a pressa é inimiga da imperfeita e misteriosa vida, fazendo-se assim uma atitude antiecológica nada louvável. Mãos à obra nessa urgente e necessária, mas também cuidadosa transformação de nossa casa.

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O Movimento Slow Medicine é uma vertente do Movimento Slow, cujas raízes estão na Slow Food, iniciativa esta fruto de um protesto realizado em 1986 contra a inauguração de uma rede de Fast Food na Piazza di Spagna, em Roma, capitaneado por Carlos Petrini. Sua premissa é um alimento Bom, Limpo e Justo. Alberto Dolara, em seu artigo original, Invito ad una Slow Medicine, afirma que “Tal como acontece com a alimentação, ato biológico fundamental (Fast versus Slow Food), por que não levar para atenção em saúde e, em particular, para a prática médica, um conceito de Slow Medicine?”. A Associação Italiana de Slow Medicine trabalha de forma intimamente ligada à Slow Food, tanto no que se refere à participação associativa, como no desenvolvimento de um dos principais projetos da iniciativa italiana, voltado à elaboração de uma filosofia de prevenção Slow, chamado “Coltiviamo la salute“. É no sentido de estreitarmos nosso trabalho de colaboração com a Slow Food que resolvemos publicar este texto de Carlo Petrini, comentado com uma sensibilidade ímpar pela psicóloga Sylvia de Mello Baptista.

PS: a foto que ilustra o post é do site Pixabay.

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Sylvia Mello Silva Baptista formou-se em Psicologia pela PUC-SP. É analista junguiana, membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, professora de cursos abertos e de formação da SBPA, coordenadora do MiPA, Núcleo de Mitologia e Psicologia Analítica da Clínica da SBPA. Como escritora, publicou “Maternidade e Profissão: Oportunidades de Desenvolvimento”, “Arquétipo do Caminho – Guilgamesh e Parsifal de mãos dadas”, “Mitologia Simbólica – Estruturas da Psique e Regências Míticas” e “Ulisses, o herói da astúcia”, todos editados pela Editora Casa do Psicólogo.

2 Comentários

  1. Sylvia, importante alerta e convite para reflexões profundas a partir desses dois homens especialmente iluminados: Petrini e o Papa Francisco! Parabéns pelo texto!

  2. Primeiramente quero parabenizar Sylvia pelo belíssimo texto, ao lê-lo lembrei de minha mãe, ela veio da Itália aos 18 anos juntamente com a família pois já havia um prenuncio de uma nova guerra e sair da Europa era o mais sensato a fazer naquele momento. Ela dizia que o lixo do Brasileiro era riquíssimo. Joga-se comida fora sem consciência. O Brasileiro nunca sentiu o “cheiro” da guerra e despreza na lata de lixo muita comida que serviria aos pobres. Essa consciência ela me passou. Ouvindo o TED do Papa Francisco, este lembra a parábola do Bom Samaritano e nos faz refletir sobre os dois primeiros mandamentos Bíblicos, amar a Deus sobre todas as coisas e amar o teu próximo como a ti mesmo. Mas quem é esse próximo? É todo aquele que cruza o nosso caminho. Se eu não me amo, estarei amando mal ou sequer amando meu próximo. É na consciência de cada um, nas atitudes de cada um que podemos pensar numa mudança maior para todos e para com nosso “pobre” Planeta Terra, nossa casa.

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