Nem só de ciência se faz a cura – o que os pacientes me ensinaram

julho 31, 2017
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Por José Carlos Campos Velho

“No entanto, o tema central da medicina permanece inalterado: a pessoa humana.”

Protásio Lemos da Luz

Esta frase encontra-se na introdução deste livro do Professor Protásio Lemos da Luz, cuja sugestão de que constasse em nossas indicações de literatura foi de Marco Bobbio. O Dr. Protásio é cardiologista, da mesma maneira que Alberto Dolara, que publicou pela primeira vez um artigo usando a expressão Slow Medicine.

Não precisamos avançar muito na leitura para perceber a razão da indicação. O dr. Protásio já aponta, no primeiro capitulo do livro, um dos pontos essenciais que  a obra explora – a relação médico-paciente. Sua extensa experiência médica, enraizada em sua prática nos diversos ambientes onde a medicina é exercida, seja no consultório ou no hospital, e em diferentes papéis, como clínico, como pesquisador, cientista e professor, possibilita-lhe alcançar uma enorme riqueza em sua compreensão da medicina. Outra característica sua salta aos olhos: é um excelente escritor. De fato, o livro é de uma leitura agradável e fluida, e transborda tanta sabedoria, que precisamos frear nosso impulso de citar parágrafos e mais parágrafos.

“A relação médico-paciente é extremamente complexa, depende de muitas variáveis. Mas duas são fundamentais: compreensão e confiança. Depois existem outras como comunicação, disponibilidade, tolerância, compaixão e honestidade. A compreensão advém da capacidade de o médico se colocar honestamente na posição do doente, de sentir seu sofrimento, comungar da sua angústia e compartilhar de suas esperanças. Ele pode fazer isso de três maneiras:  por natureza, porque é naturalmente compreensivo, caloroso, humano; por cultura, porque estudou o sofrimento humano e assim o entendeu, mesmo que seja de modo indireto; e por fim, ele pode compreender porque já experimentou o sofrimento, já sofreu.”

Certamente o estudante de medicina e o médico em formação podem aprender lições preciosas com a leitura desta obra. E como salienta em uma passagem do livro, educação médica deve ser permanente e constante: portanto, mesmo médicos mais vividos e experientes se beneficiam de sua leitura. A consulta médica é dissecada em pormenores, desde a postura do médico ao receber o paciente, sua capacidade de escutá-lo e orientá-lo, sempre procurando basear a conduta na ciência médica, tendo a cautela de ser ponderado e cuidadoso ao propor procedimentos diagnósticos e tratamentos. Mesmo sem citar em nenhum momento a Slow Medicine, as proposições do autor estão absolutamente alinhadas com seus princípios de uma medicina Sóbria, Respeitosa e Justa. “A prática da medicina é a arte da judiciosa aplicação dos conhecimentos médicos para o bem do paciente.”

Ao ler o livro do Prof. Protásio, outra obra bastante cara à iniciativa Slow Medicine vem mente: A arte perdida de curar, do cardiologista americano Bernard Lown. Ambos os livros foram escritos por cardiologistas, também professores de medicina e pesquisadores, com uma longa prática de atendimento de pacientes. E é interessante como os dois apontam questões prementes na prática médica, presentes em particular na cardiologia, como a evolução da tecnologia diagnóstica e terapêutica, que os dois autores puderam acompanhar – e esta especialidade em particular testemunhou verdadeira revolução na segunda metade do século XX – e continua evoluindo em nossos dias. A cardiologia é uma especialidade em que o médico frequentemente acompanha seus pacientes em momentos muito delicados de sua existência – “o médico pode ser visto como um companheiro solidário no infortúnio, sempre disposto a ajudar o paciente(…)”, presenciando doenças graves e ameaçadoras da vida, assistindo ao envelhecimento e a morte, desenvolvendo a capacidade de reconhecer a impotência e as limitações humanas. Falando do atendimento médico aos idosos, por exemplo, o autor afirma que “naturalmente aqui deve prevalecer o bom senso; deve-se pesar cuidadosamente a relação risco-benefício. A medida certa sobre o quê e quando fazer as coisas no idoso não pode ser antecipada; aqui entra a arte médica, baseada no conhecimento teórico, na experiência analítica e mesmo na ética.”

Questões como aspectos econômicos vinculados à profissão do médico, mostrando a importância de uma remuneração justa pelo seu trabalho, para que possa ter segurança material e levar uma vida tranquila, mas ao mesmo tempo apontando o risco da transformação da profissão em mero comércio. “Para ganhar dinheiro em medicina, não precisa saber medicina, precisa saber ganhar dinheiro”. Ao longo da leitura do livro, de tempos em tempos vamos topando com estas máximas, que nos fazem esboçar um sorriso. Esta é uma questão que, em determinado momento, o autor aponta como um fato que pode ser transformador em uma consulta médica, aproximando as pessoas: o bom humor e uma tirada espirituosa, quebrando o gelo e gerando um ambiente de saudável familiaridade.

Uma segunda parte do livro é composta por considerações que o autor faz a partir de suas vivências como pesquisador e professor, além de análises sobre a atuação do médico em instituições hospitalares e acadêmicas, entre eles documentos e discursos proferidos em congressos e outros eventos médicos. Dois capítulos em particular são belíssimos, um  deles sobre ética médica, onde o professor salienta que a “Medicina não cuida de bens materiais. Ela cuida de valores fundamentais que, se acaso perdidos, podem não ser passíveis de ressarcimento. Neste sentido é que a Medicina é uma profissão única e peculiar, e portanto necessita ser regida por uma Ética própria.”. Outro capítulo fascinante trata da vida de William Osler, abordando os diversos aspecto da personalidade deste grande médico, como profissional, como educador, como cientista e liderança médica. “Numa época como a nossa em que se procura integrar conhecimentos básicos a conceitos clínicos, para tornar as conquistas da ciência básica em instrumentos de aplicação imediata, a atuação de Osler simboliza perfeitamente essa concepção de medicina unificada. Ilustra como o homem de ciência básica pode ser o clínico que trata e o professor que ensina.”

Da mesma maneira que Willian Osler, o dr. Protásio conseguiu circular em todas estes territórios, e seu livro é o testemunho de seu olhar atento e cuidadoso. Uma leitura necessária nos tempos atuais, em que a humanização da prática médica é uma premissa e uma necessidade. Termino com mais uma citação de grande simplicidade, mas profundamente verdadeira, e que representa de maneira genuína o seu pensamento : “para fazer medicina clínica é preciso gostar de gente”.

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