Dá para fazer “Medicina sem Pressa” em 15 minutos de consulta?

outubro 4, 2016
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por Gisele Sugai:

Para os Médicos de Família e Comunidade (MFC) que pela primeira vez se deparam com os conceitos da Slow Medicine, inevitavelmente surge esta pergunta: como exercer uma Medicina sem Pressa numa agenda engessada em 15 minutos para cada paciente?

Uma pergunta muito válida, considerando que apesar dos diversos pareceres contrários do CRM (CRM/PA, 2012) diante do cerceamento do tempo de consulta médica, sabemos que esta imposição é soberana em diversas unidades de saúde do Estado de São Paulo, embora em nada contemple os Princípios Fundamentais do atual Código de Ética Médica (2009/2010), o qual assevera que “(…) a limitação temporal, via de regra, aleatoriamente imposta, atenta contra a boa prática médica (…)”.

Desde 2005, quando foi lançado um Documento Norteador dos compromissos da Atenção Básica com a população do Estado de São Paulo, definiu-se que a agenda médica deve ser desenhada para atender 4 pacientes por hora.

Diante desta realidade… Vamos pensar um pouco de que forma os médicos da Atenção Primária podem fazer ressonância com um dos princípios fundamentais da Slow Medicine  (e no meu entendimento o mais importante, por determinar os demais), que nos fala sobre o tempo: “(…) Tempo para ouvir, para entender, para refletir. Tempo para consultar e tomar decisões. A tomada de decisões melhora quando os médicos dedicam seu tempo e sua atenção ao paciente”.

Será que em 15 minutos de consulta é possível ouvir cada pessoa, entender suas angústias, estar atento às mensagens subliminares por trás de cada queixa e tomar decisões (Princípio do Tempo)? Em 15 minutos é possível dar ao paciente um cuidado particularizado, justo e apropriado (Princípio da Individualização)? Em 15 minutos conseguimos compartilhar as decisões tomadas com o paciente e sua família (Princípio da Autonomia)? Ou seja, será que um Médico de Família e Comunidade, a quem é imposta uma consulta de 15 minutos, consegue Cuidar Sem Pressa de seus pacientes?

A princípio, parece que não. Mas só a princípio, porque o modelo assistencial proposto nos fundamentos da Medicina de Família e Comunidade, traz consigo uma enorme semelhança com os fundamentos da Slow Medicine, apesar do cerceamento do tempo de consulta que é imposto a muitos destes médicos.

Para quem teve a grata oportunidade de assistir ao primeiro seriado brasileiro , sobre médicos de família brasileiros, que estreou em 11 de setembro de 2016, às 22h, no canal Universal Channel, pôde perceber com clareza o quanto existem fortes aproximações entre as duas propostas. Numa das chamadas do seriado encontra se a seguinte descrição: “São casos de pessoas como nós, da nossa família…porque queremos mostrar mais que a doença em si, a complexidade da vida humana”. E se você se aventurar a assistir ao seriado, certamente se deparará com a beleza da Medicina quando exercida no seio das famílias e das comunidades que as cercam.

Trata-se de um retrato muito particular da relação entre médicos e pacientes inseridos numa comunidade em que as questões sociais e familiares são determinantes para o diagnóstico e tratamento. Cada episódio nos convida a passear pelas estradas tortuosas das relações entre as pessoas e o meio ambiente que as cerca, revelando o quanto isto é fundamental para o processo de adoecimento. O quanto o vínculo e a escuta genuína são capazes de nos conduzir para as melhores decisões na medicina.

Seguem algumas das Atitudes e Habilidades previstas para um Médico de Família, facilmente observadas no seriado:

. Desenvolve uma abordagem centrada na pessoa, orientada para o indivíduo, a sua família e comunidade (WONCA, 2002, p. 10).

A MFC tem como foco de atuação a pessoa. Embora todo médico deva atuar, necessariamente, tendo como referência a pessoa, na MFC este foco é a principal vertente do trabalho e condiciona as suas demais dimensões. A atuação do MFC não se limita a um problema de saúde potencial ou identificável tecnicamente; quem define o problema é a pessoa; o vínculo médico-paciente não cessa pela cura, ou fim de um tratamento e pode se iniciar sem que nenhuma doença tenha ainda sido manifestada.

. Possui um processo de condução da consulta singular, estabelecendo uma relação ao longo do tempo, através de uma comunicação efetiva entre o médico e o paciente. (WONCA, 2002. p.10).

Os contatos se permitem mais freqüentes devido a uma relação duradoura que se estabelece. Esta característica permite que o processo de consulta, onde se busca o entendimento dos fenômenos patológicos ou dos sofrimentos seja realizado de forma cumulativa por meio da observação continuada da história natural da doença. É importante este conceito na medida em que se discute qual é a duração da consulta médica que garante a qualidade da assistência. No caso do MFC, este tempo pode estar sendo distribuído ao longo do tempo. Há, neste caso, uma redução das expectativas e uma flexibilidade maior para a adaptação às mudanças, já que as relações se dão de forma duradoura, o que leva a um conhecimento particular apreendido pela relação permanente com os pacientes.

. Lida com problemas de saúde em suas dimensões física, psicológica, social, cultural e existencial (WONCA, 2002, p. 11).

A realidade social e cultural dos indivíduos é a referência para o trabalho do MFC. O esforço sistemático de enquadramento e classificação dos clientes em quadros nosológicos pode ser uma tarefa frustrante. Os pacientes se apresentam em sua mais completa dimensão humana, porque estão imersos em sua cultura, contexto e ambiente, trazendo para o MFC toda a dimensão dos problemas, desafios, expectativas e conflitos que se colocam no dia a dia. Além dos processos de adoecimento, estes estão sempre acompanhados de agravos, queixas vagas e incômodos mal definidos a desafiar o MFC a reconhecer, semiologicamente, os aspectos e dimensões biopsicossociais dos quadros que se apresentam. A abordagem familiar representa um desafio a mais. Compreender a dinâmica das relações familiares impactando sobre a saúde e doença e suas formas de evolução requer uma aguçada capacidade de observação e interação.

Diante de algumas das características da MFC, podemos reconhecer nela sua grande ressonância com a tão valiosa corrente da Slow Medicine que vem chamar nossa atenção para a retomada do tempo como uma pedra fundamental no exercício da boa prática médica.

Nós médicos, precisamos resgatar o tempo para escutar o outro. Escutar o que é dito com palavras, escutar o que é dito com gestos. É preciso tempo para observar os pacientes inseridos em seu universo particular, olhá-los em sua humanidade mais profunda…aquela que só enxergamos observando-os atentamente por diversas vezes. É preciso tempo para construir relações sólidas com as pessoas que cuidamos e suas famílias…É preciso pisar no freio sempre que a nossa ansiedade de “curadores”, somada à ansiedade dos que querem a “cura”…nos façam atropelar as melhores decisões…aquelas que nascem no terreno da sensatez e do raciocínio feito com calma. E precisamos principalmente parar… parar um pouco para olhar pra cada um de nós, no exercício da nossa profissão, que ora é arte…ora amedronta…ora inspira…ora arrasa… Mas que tem no seu cerne a beleza e o sabor de cuidar das pessoas, e apoiá-las quiçá nos momentos mais  temíveis de suas vidas! Tudo isso…façamos “Sem Pressa”….

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Gisele Sugai, médica, apaixonada pela medicina praticada no seio das famílias, defensora do SUS e da Atenção primária há 20 anos, trabalhando atualmente na Assessoria Técnica Médica da Organização Social Santa Catarina, no município de São Paulo.

(A fotografia é de Danielle Feltrin)

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