Derek

maio 15, 2017
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Por Sylvia Mello Silva Baptista:

Derek é um seriado da Netflix que leva o nome de um funcionário de uma casa de repouso na Inglaterra, Derek Noakes. Mas afinal, o que poderia acontecer de interessante numa casa de repouso? Vamos ligar a TV para ver temas como envelhecimento, morte, sofrimento, perda, luto? Parece tão pouco provável, para não dizer bizarro, não é? Aí está, justamente, o desafio. Derek –personagem representado com maestria pelo ator inglês Ricky Gervais – é o centro da história que começa com a apresentação do lugar a uma câmera onipresente, como se estivessem sendo filmados para um documentário, um “reality show” ou algo assim. Derek tem tiques no rosto e nas mãos, e um andar curto e miúdo que nos coloca com um olhar já dentro da perspectiva do patológico. O que ele tem?, nos perguntamos. O que há de errado com ele? Mas quando menos esperamos, estamos vinculados ao doce Derek e passamos a nos questionar: “será que eu sou capaz de sentir e perceber as coisas como ele?”. Talvez seja isto o mais precioso dessa série: sua capacidade de nos fazer encarar de uma outra perspectiva os temas que frequentam aquele lugar onde o fim da vida se anuncia; a perspectiva da generosidade e do amor.

Além dos idosos que ali habitam, e Hannah, a diretora da casa, cuja bondade, delicadeza e bom senso se casam perfeitamente para a harmonia do lugar, os outros personagens formam um grupo que poderia ser chamado “dos desajustados”, caso se faça um julgamento dentro de um critério normativo:

Douglas, ou Dougie, é um homem com uma tremenda baixa autoestima, sem nenhuma ambição ou projeto, que faz pequenos consertos na casa, mesmo não sendo técnico ou possuindo conhecimentos especializados. Sua escola foi a prática, e estar ali dando soluções às pequenas situações que necessitam ajustes lhe dá satisfação suficiente. Ele adora Derek e faz o papel de uma espécie de “grilo falante”, trazendo certa discriminação às situações em que Derek se envolve.

Victoria é uma moça vazia, que vai prestar serviços no local como pena alternativa por ter sido pega furtando sapatos numa loja. Chega com uma apatia e repulsa pelo lugar e pelos velhos, mas a forma generosa e inclusiva que Hannah e Derek têm com ela, além da sabedoria de uma senhora em apontar em Vicky um talento, funcionam como um convite para ela se perceber e dar crédito a si mesma. Seu tempo de voluntariado termina e ela permanece na casa.

Kev é um homem jovem e alcoólatra que também vive ali. Traz o sexo para o centro das conversas, uma fixação no tema sempre presente no seu discurso. Ao longo dos episódios vamos conhecendo melhor suas limitações, seu sofrimento e suas defesas; como os outros, reconhece em Derek um amigo e uma pessoa de bondade infinita.

Derek é uma criança, apesar de seus 50 anos. Difícil precisar sua idade. O olhar que tem para o mundo é ingênuo e curioso. Faz perguntas que uma criança faz, sábias e muitas vezes desconcertantes aos adultos. Adora o mundo animal com o qual se identifica. O lugar recebe cães e gatos de uma clínica onde a troca de carinho é benéfica para todos. Derek tem os seus preferidos. Todos ali estão sempre perdendo pessoas queridas, companheiros de casa, e essa situação é enfrentada como parte do viver. Hannah fala, em determinado momento, que há parteiras que ajudam alguém a entrar na vida. Ela ajuda pessoas a sair da vida. Deixou os estudos aos 16 anos, e assim, também é uma “desajustada”, nessa casa onde o maior professor é a própria experiência. As questões formais ganham menos importância em vista de reflexões maiores.

O seriado nos coloca diante da perspectiva da morte. O que você valoriza quando a morte se aproxima? O que de fato tem importância no final da vida? O descompasso entre a vida agitada e repleta de afazeres dos filhos e netos que visitam seus parentes também está estampado ali, denunciando uma aceleração com consequências nefastas nas relações. Em pouco tempo, a casa de repouso Broad Hill e seus habitantes passam a nos lembrar e avisar que somos nós os desajustados.

Os valores cultivados pelo movimento Slow Medicine, ou Medicina sem pressa, estão ali, subliminares. Como na entrega de Hannah para fazer companhia a Edna, uma senhora de 95 anos que passa mal na noite do seu casamento com Tom. Sua noite de núpcias foi permanecer de mãos dadas com Edna até o amanhecer, quando Tom – que aprendeu a compreender Hannah em sua capacidade de doação a quem mais dela precisasse-, sai para trabalhar, e voltar à rotina dos dias, orgulhoso da recém-esposa. Em Broad Hill não vemos médicos ou ambulâncias tornando o evento da morte ruidoso ou algo estranho à vida. No momento da partida lá está Hannah, seu silêncio e seu carinho. Ou mesmo Derek, que velou a morte de seu pai, sem alardes, e sem se furtar à tristeza do momento. Derek sofre por todos os que vão, seja seu cão mais querido, Ivor, que precisa ser sacrificado, sejam seus colegas de casa cuja hora final de seus ciclos se dá. Como na Medicina sem pressa, os valores de dar atenção ao que de fato merece, respeitar os ritmos, olhar para a singularidade de cada um, estar ao lado e escutar o outro, são exercitados no dia a dia e vão, a seu tempo, cultivando a alma dos que ali adentram. Temas como amizade, perdão, acolhimento, solidão, sofrimento, amor, continência, memória, respeito, luto, tristeza, alegria, cabem e vicejam nesse grupo liderado por Derek, quem tem sempre algo a ensinar aos que lhe estão próximos; aquele que, nas palavras de Hannah, apesar de nada receber, tudo dá.

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Sylvia Mello Silva Baptista formou-se em Psicologia pela PUC-SP. É analista junguiana, membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, professora de cursos abertos e de formação da SBPA, coordenadora do MiPA, Núcleo de Mitologia e Psicologia Analítica da Clínica da SBPA. Como escritora, publicou “Maternidade e Profissão: Oportunidades de Desenvolvimento”, “Arquétipo do Caminho – Guilgamesh e Parsifal de mãos dadas”, “Mitologia Simbólica – Estruturas da Psique e Regências Míticas” e “Ulisses, o herói da astúcia”, todos editados pela Editora Casa do Psicólogo.

Lançou seu primeiro romance – “Segunda Pedra” – em novembro de 2012 pelo selo Edith.

Email: [email protected]

7 Comentários

  1. Querida Sylvia, adorei a delicada resenha, como sempre muito bem escrita, presentificando seu olhar arguto e sensível para essas questões tão importantes na vida. E , sim, desperta muito à vontade de assistir ao seriado na íntegra! Agradeço por mais essa dica!

  2. Como é bom poder ler temas em um blog inteligente, que sugere assuntos, filmes, séries televisivas que nos levam pelo mundo do conhecimento e emoção! Cinema, filmes, séries podem se constituir em laboratórios virtuais de experiências reais e, a elas nos levar e fazer refletir! Já estou sensibilizada e com uma grande vontade de assistir ao meu primeiro episódio de Derek! Obrigada!

    • Que bom, Maria Teresa que o texto despertou em você esse desejo de assistir à série. É isso mesmo que eu desejava. Veja, emocione-se e divulgue. A Slow Medicine nos ensina isso: devagar e sempre, ocupando espaços significativos. Sem pressa, mas com cuidado e sensibilidade. Obrigada por seu comentário.

  3. Sylvia, obrigada por oferecer sua sensibilidade nessa bela e melodiosa escrita sobre a série, seus personagens e dinâmicas psicológicas, nos permitindo enxergar a sintonia com a filosofia da Medicina sem Pressa. Um texto valioso!

    • Obrigada Simone! Fico muito feliz que tenha gostado. Esta série vale ser vista e sua afinidade com a Slow Medicine é explícita. Precisamos povoar os espaços com essas visões e atitudes, não é mesmo? Grata por seu comentário.

  4. Sylvia, seu comentário sobre Derek tem a delicadeza e a doçura que o personagem transborda. Obrigado pelo olhar cuidadoso e profundo que você dedicou para mergulhar na série e resgatar sua confluência com a Slow Medicine. Conheci Derek por sugestão de um amigo e desde a publicação do site eu tinha presente um comentário sobre ele. Você conseguiu fazê-lo com maestria.

    • Obrigada, José Carlos. O personagem inspira doçura mesmo. Grande trabalho de atuação que toca direto no coração e faz refletir.

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