Doutor, eu realmente preciso operar minha catarata?

outubro 23, 2017
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Por Emerson Castro:

Lembro quando eu era criança, minha avó foi operada de catarata, foi um agito na família! Ela ficou internada e ao voltar para casa, permaneceu um longo tempo em absoluto repouso, sem poder se movimentar.  Perguntei a ela porque precisava usar aqueles óculos “fundo de garrafa” mesmo após a cirurgia. Hoje sabemos que pelo fato de à época não ser implantada lente intraocular no lugar da catarata, as pessoas utilizavam óculos com graus bastante elevados para corrigir a ausência do cristalino. Foi o que ela me disse, em outras palavras…  Foi meu primeiro contato com a oftalmologia.

Atualmente operamos pacientes que são liberados poucas horas após o procedimento, muitas vezes já estão com boa visão no dia seguinte, necessitando muito pouco grau de óculos para enxergar! Estas “facilidades” tornaram a cirurgia de catarata, um dos procedimentos cirúrgicos mais realizados no mundo, beneficiando e trazendo “vida” a milhares de pessoas.

Por outro lado, temos observado um explosivo aumento das indicações cirúrgicas, mesmo em indivíduos com cataratas insignificantes, com boa acuidade visual e que pouco influenciam as atividades diárias destas pessoas. Há cerca de um mês, atendi um senhor muito ativo de 84 anos, que foi trocar seus óculos em outro serviço, e veio com indicação para operar sua catarata. Após conversar bastante e examiná-lo, observei que realmente apresentava catarata relativamente densa, cuja visão melhorou bastante após eu ajustar seu grau dos óculos (lembrando que as cataratas nucleares que são comuns, frequentemente mudam muito a refração dos pacientes). Disse a ele que apresentava catarata, mas poderíamos tentar não operá-lo, pois sua visão melhorou muito após corrigirmos os óculos. Esta semana me ligou, agradeceu muito por ter dado a ele a opção de não fazer a cirurgia e que voltou a dirigir com confiança. Esta situação é muito comum nos dias atuais.

Alguns grupos advogam a indicação de cirurgia nestes pacientes pelo fato de ficarem menos dependentes de óculos, a cirurgia ser “simples” e com rápida recuperação.

Mesmo com o avanço tecnológico, as chances de complicações em uma cirurgia de catarata são reais e não desprezíveis, especialmente quando lidamos com a visão que é a maior fonte de comunicação com o mundo.

Recentemente o Royal College of Ophthalmology, publicou um importante estudo que analisou cerca de 200.000 cirurgias de catarata realizadas no Reino Unido. O número total de complicações intraoperatórias foi de 4,2% e a porcentagem de complicações nas mãos de cirurgiões experientes foi 3,5%. A ruptura de cápsula posterior, que é uma complicação muito temida entre nós cirurgiões, ocorreu em cerca de 2% das cirurgias e estes pacientes tiveram 42 vezes mais chances de apresentar descolamento de retina e 8 vezes mais chances de endoftalmite no período pós-operatório. Ambas complicações gravíssimas com chances de cegueira.

Além dos riscos inerentes ao procedimento, a cirurgia de catarata envolve custos diretos aos pacientes e familiares, aos sistemas de saúde (SUS, seguros saúde, etc) e em última instância à sociedade. Será que estamos dispostos a arcar com estes custos? Sou cirurgião e grande entusiasta da cirurgia de catarata mas acredito que deveríamos ser mais críticos em relação à indicação de procedimentos que poderíamos tentar evitar.

Entendo que a melhor forma de mudarmos atitudes e pensamentos que levam ao sobrediagnóstico (“overdiagnosis”) e ao sobretratamento (“overtreatment”) seja através da transparência.

Transparência no ensino de medicina / oftalmologia, orientando os futuros médicos utilizarem medicina baseada em evidências de qualidade, recorrendo às estatísticas para tomarem decisões mais científicas e menos intuitivas.

Transparência relacionada ao conflito de interesses comerciais na medicina.

Transparência com os pacientes, permitindo que as decisões médicas sejam compartilhadas e centradas em valores e crenças dos pacientes.

Transparência relacionada ao excesso de cobrança sobre os médicos/medicina que muitas vezes precisam lançar mão de exames e procedimentos para se defenderem de possíveis demandas.

Finalmente vejo que precisamos de TEMPO para ouvir e “sacar” o que realmente aflige nossos pacientes e encará-los como um todo, evitando compartimentalizar o atendimento, para poder por exemplo, responder com mais firmeza, uma pergunta muito realizada nos dias de hoje:  “Doutor, eu realmente preciso operar minha catarata?”

______________________

Emerson F. S. Castro, sou cirurgião oftalmologista com residência médica e doutorado pela USP, fui coordenador do pronto socorro de oftalmologia do Hospital das Clínicas da USP e participei da equipe de coordenação do setor de catarata do Hospital das Clínicas da USP.

Sou da equipe de pronto atendimento de oftalmologia do Hospital Sírio –Libanês e trabalho em consultório privado.

6 Comentários

  1. Prezado Colega Emerson
    Excelente artigo, eu como cardiologista ,48anos de formado, faço inúmeras avaliações pré-operatórias para a cirurgia de catarata ,em pacientes de todas as idades. Se por acaso esses pacientes retornam devido a doenças cardiológicas, pergunto se melhoraram, à vezes ouço depoimentos que não houve melhora e que ficaram cegos desse olho operado. Vivemos um epidemia de cirurgia de cataratas.

  2. Parabéns por seu comentário!

  3. Reflexão mais que bem vinda,Dr Emerson! Compartilhei o seu texto e coloco abaixo a observação que acompanhou o compartilhamento:

    “Faz tempo que espero que um colega oftalmologista (CIRURGIÃO) se manifeste a respeito do excesso de indicações de cirurgia de catarata…e finalmente, um cirurgião egresso da USP faz a reflexão necessária.
    Não discuto o beneficio da cirurgia. Nem o fato de que todos envelheceremos com opacidade cristaliniana (catarata). Mas discutir opções, ouvir o paciente,entender suas razões para querer ou não operar, suas expectativas…enfim participar com ele, paciente , da decisão cirúrgica (cada caso é um caso) é mais do que necessário!
    FICA AQUI A REFLEXÃO!”

    A decisão médica deve ser comunicada,discutida com o indivíduo sob nossos cuidados…e não imposta! E devem ir de encontro com as crenças e valores desse mesmo indivíduo. Acredito ser a condição primaria para o sucesso terapêutico (não apenas pelo viés medico…mas assim reconhecido pelo indivíduo a quem oferecemos o tratamento!)

    Parabéns pela abordagem e pela consciência!

    É uma grande satisfação ver o crescimento do Movimento Slow Medicine.

    • Cara ElIzabeth,
      Tenho certeza que profissionais como você, que pratica medicina com paixão, recebe muito bem este texto.
      Obrigado !
      Emerson Castro

  4. Prezado Dr. Emerson,
    muito bem-vinda sua reflexão. Proposta importante, colocada com clareza, sobriedade e transparência , atentando aos valores comuns da medicina com bom senso, voltada aos interesses do paciente como pessoa, como indivíduo, fazendo uso adequado da tecnologia, enfim, de encontro com os princípios do movimento da Slow Medicine. Já compartilhei!

    • Cara Ana Célia
      Muito obrigado pelas considerações!
      Feliz que tenha gostado.
      Emerson Castro

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