Medicina sem pressa : como começou a proposta

maio 16, 2016
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“Lembra que o sono é sagrado e alimenta de horizontes o tempo acordado de viver”

Beto Guedes – Amor de Índio.

Desde o começo de minha formação como médico , a relação médico-paciente foi um dos aspectos da prática médica que mais me intrigaram e muito cedo pude vislumbrar sua importância. A relação médico-paciente vai além de uma escuta cuidadosa. É uma relação de compromisso, de cumplicidade e um vínculo que se fortalece à medida que os anos passam e médico, paciente e família se tornam profundos colaboradores. Em meu primeiro contato com a Slow Medicine percebi nesta proposta muito do que havia sido objeto de minhas reflexões e vivências, como estudante e como profissional.

Não se tratava de criarmos uma nova especialidade médica e tampouco de trazermos à tona polêmicas acerca de qual a melhor decisão terapêutica para o paciente (embora este seja o objetivo: a melhor proposta para aquele indivíduo em particular, compartilhada com ele, respeitando seus valores).

Tratava-se de um resgate da ciência e da arte de cuidar.

Quando pensei em divulgar a idéia da Slow Medicine em língua portuguesa, pensei em evitar o  anglicismo e busquei alternativas que poderiam ser utilizadas como tradução. Medicina lenta? Pareceu-me que tradução empobrecia a expressão. Pensei em Medicina Reflexiva, termo que pontua uma questão-chave da Slow Medicine – não a lentidão, mas o tempo adequado para a reflexão frente à situação clínica a ser enfrentada. Recentemente tive uma epifania – “Medicina sem Pressa”, talvez a melhor forma de tradução livre, para “Slow Medicine”.

A força da expressão inglesa se origina do movimento Slow Food, com o qual a maior parte das pessoas tem certa familiaridade. Slow Food é um anglicismo e, uma vez que o movimento nasceu na Itália, o nome cunhado e amplamente divulgado no mundo é na língua inglesa. Pela força da expressão e pelo fato de vivermos um momento em que os termos em língua inglesa estão definitivamente incorporados ao nosso cotidiano, optamos por manter a expressão que criou raízes no mundo, ou seja, Slow Medicine.

Meu primeiro contato com a Slow Medicine se deu por acaso. Eu participava do Congresso da Sociedade Americana de Geriatria, em Orlando, em um grande hotel da Disney, em 2010. Decidi participar de uma mesa redonda sobre Humanidades Médicas em Geriatria, sem saber exatamente do que se tratava. Procurei a sala onde seria o encontro, e cheguei em uma sala vazia, com uma pessoa sentada ao lado de uma grande mesa redonda. Já estava no horário do início da apresentação e não havia nada acontecendo. Estranhei, pois os americanos são muito organizados e aquele encontro em particular parecia não ter nada pré-determinado. Sentei e esperei um pouco. Chegaram outras pessoas que me pareciam tão perdidas quanto eu.

Depois de alguns minutos chegou um senhor, apresentou-se e sugeriu que nos apresentássemos uns aos outros. Depois  falou algumas coisas, das quais me recordo muito pouco. Lembro-me que, no final do encontro, bastante interessado no que havia sido exposto, fui conversar com ele. Tratava-se do Dr. Dennis McCullough, geriatra, e, após um curto diálogo, ele me deu o seu cartão , onde haviam informações sobre o livro que ele havia publicado, “My mother Your mother” e de seu website.

Chegando no Brasil, encontrei o livro à venda na internet  e, lendo seu título,  fiquei intrigado: My Mother, Your Mother: Embracing “Slow Medicine,” the Compassionate Approach to Caring for Your Aging Loved Ones. Foi a primeira vez que tive contato com a expressão. Encomendei o livro.

Depois de uma longa espera, o livro chegou. Já no primeiro parágrafo do prefácio, ao identificar um filme do qual o Dr. Dennis fazia referência como “A Balada de Narayama”,fui profundamente tocado. Eu tinha visto aquele filme há muito tempo e minha memória ficara marcada indelevelmente. Após ler o prefácio e o primeiro capítulo eu tinha claro que estava frente a uma proposição que se encaixava perfeitamente com a maneira  que eu acreditava que deveria ser a prática médica, particularmente em geriatria.

Por vários anos a idéia de divulgar esta filosofia de trabalho permaneceu comigo. Em algumas ocasiões eu conversava com colegas e contava a história do curioso encontro com o Dr. Dennis. Freqüentemente eu notava seu entusiasmo com a proposta, pois percebiam este entendimento da medicina como essencial em geriatria.

Em 2015, fui a um workshop com o dr. Marco Bobbio no hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Tratava-se de um encontro sobre “Análise Crítica da Prática Médica”, onde os temas abordados pelo Dr. Bobbio em seu livro O doente imaginado foram expostos em duas palestras. O dr. Marco é um dos fundadores e membro ativo do movimento Slow Medicine na Itália. Uma curiosidade: Marco Bobbio é filho de Norberto Bobbio, filósofo italiano que escreveu uma obra belíssima sobre a velhice, que bebeu em fontes ancestrais, os escritos de Marco Túlio Cícero, o opúsculo “Saber Envelhecer” (De Senectude), uma das primeiras obras da história sobre envelhecimento. Eu havia lido o livro de Norberto Bobbio há alguns anos e havia ficado  bem impressionado com ele. Durante a fala do dr. Bobbio, a idéia de divulgar o conceito da Slow Medicine no Brasil tomou corpo outra vez. E comecei a pensar como viabilizá-la.

Nesta época reestabeleci contato com o Dr. Dennis através de emails, e ele manifestou interesse em vir ao Brasil para divulgar seu livro e sua visão particular dos cuidados médicos e da medicina geriátrica. Resolvi mergulhar no livro “My mother Your mother”, e minha minha primeira impressão confirmou-se: tratava-se de uma pequena obra prima.

No Congresso Paulista de Geriatria em 2015, o GERP, o Dr. Steven Cummings, pesquisador da área de saúde óssea e envelhecimento, principal convidado estrangeiro do Congresso, trouxe um tema bastante polêmico,  quando questionou a nova mania do momento, que transcende especialidades – a dosagem e reposição de vitamina D. O dr. Cummings chamou a atenção para o editorial do JAMA que ele publicaria em breve, onde a solicitação de dosagens séricas de vitamina D e sua reposição eram questionados. Resultados de trabalhos científicos sérios interrogavam seus benefícios e levantavam a possibilidade de problemas relacionados à reposição, como uma frequência maior de quedas.

Esta colocação do dr. Cummings acendeu em mim a questão: temos que refletir mais sobre nossa prática, voltar ao princípio – a geriatria é uma das especialidades médicas onde a reflexão sobre o risco e o benefício de investigacões diagnósticas e terapias invasivas se torna mais premente. A arte da Geriatria está exatamente em proporcionar o melhor cuidado para o idoso, o que muitas vezes significa fazer menos. O aforisma ”fazer mais não quer dizer fazer melhor”, citado no Manifesto multilíngue da Slow Medicine, Itália, adequa-se perfeitamente ao pensamento da geriatria – especialidade médica cuja expertise é o cuidado do idoso, em particular aos mais frágeis e adoentados .

Foi após este Congresso que passei a refletir em como poderia levar adiante a divulgacão da Slow Medicine em língua portuguesa. Foi quando a idéia de um website surgiu como uma forma inicial de divulgação.

No início de 2016, através de minha esposa, também médica, Dra. Roberta Murasaki Cardoso, a quem devo muito pelo suporte que tem me dado desde o início e pela paciência com que tem suportado as longas horas passadas em frente ao computador – não sem protestos – travei conhecimento com o Prof. Dario Birolini, de quem a Roberta tinha sido aluna. Embora o conhecesse de nome, eu não havia sido seu aluno, pois estudei medicina no Rio Grande do Sul. O dr. Dario havia escrito o prefácio do livro do dr. Bobbio, “O doente imaginado”, e foi um dos organizadores do simpósio do Hospital Sírio-Libanês.

Marquei uma conversa com o dr. Dario em seu consultório e, logo no começo da conversa, percebi que havia encontrado um tesouro. O dr. Dario é um profundo conhecedor e um entusiasta dos princípios da Slow Medicine, desde muito tempo antes deste termo sequer ter sido cunhado. Nesta primeira conversa ele trouxe-me o resultado de suas pesquisas relativas à Slow Medicine, disponibilizando-as imediatamente para mim. E marcamos então um novo encontro em sua casa alguns dias depois.

Lembrar-me-ei da tarde que passei na casa do Dr. Dario pelo resto da vida, certamente. Sem pressa, passamos algumas horas conversando, e percebi que estava junto de um mestre. Um grande médico, um professor dedicado, um ser humano sensível e preocupado com os rumos que a medicina atual vem tomando. E, do alto dos seus 80 anos, disposto a dar sua contribuição à este trabalho.  Eu havia escrito alguns textos e tinha algumas idéias. O professor leu cuidadosamente estes textos, fazendo sugestões e correções. Eu havia encontrado o melhor interlocutor e colaborador que poderia almejar.

Mãos à obra! Comecei a organizar as informações que havia juntado ao longo dos últimos meses, trocando emails com muita gente, pedindo impressões, idéias , sugestões.

Parafraseando Beto Guedes, citado no início deste texto, também o sonho é sagrado. Na Grécia antiga, nos templos de Esculápio, o curador ferido*, as pessoas dormiam  nos templos e na manhã seguinte contavam seus sonhos aos sacerdotes, e eles então prescreviam seus tratamentos – dietas, meditação, ungüentos, nos primórdios da medicina ocidental. O sonho de divulgar esta filosofia e esta prática da medicina sem pressa concretizou-se. E tem alimentado de horizontes o meu cotidiano, imbuído que estou em trazer esta reflexão para o dia-a-dia das pessoas, instigando-as a pensar com um pouco mais de vagar a cada tomada de decisão em relação à sua saúde.

Este site é o resultado deste trabalho. E, podem apostar: estamos apenas no início de uma longa caminhada.


Bibilografia Consultada:

1. My Mother, Your Mother, Dennis McCullough

2.Vitamin D Supplementation and Increased Risk of Falling: A Cautionary Tale of Vitamin Supplements Retold , Steven R. Cummings, MD

3.Less is more – Monthly High-Dose Vitamin D Treatment for the Prevention of Functional Decline

PS: este texto é uma história bastante pessoal a respeito da SM em minha vida e da elaboração deste site. É uma narrativa interessante, pelo menos para mim. Por isso quis compartilhá-la com o leitor. Não tenho a pretensão de que ele represente a história da Slow Medicine no Brasil.

(*) – existem controvérsias acerca de Esculápio ser um Semi-Deus ou de sua existência real. O Mito do curador ferido às vezes é referido à ele e outras à Quiron, um centauro que o criou e ensinou-lhe a arte da Medicina. A Wikipedia tem boas informações sobre Quiron e Esculápio.

7 Comentários

  1. Caro José Carlos, com muita alegria ouvi sua entrevista à radio CBN-SP hoje pela manhã. E vim procurar seu blogsite imediatamente. Compartilho e agradeço sua iniciativa e determinação, por coincidência na mesma semana em que assisti palestra da Dra. Maria Goretti (Hosp. Servidor – IAMSPE) sobre Cuidados Paliativos.
    Aceite mais este peregrino nesta caminhada. Sou hematologista clínico, atuando em São Paulo e Jundiaí, terra onde nasci e me formei na 1.ª turma da faculdade de medicina, em 1974.

    • Seja muito bem-vindo, Hélio!

  2. Maravilhoso ler como começou, saiba que nos inspira e influenciará muito na transformação para melhor da nossa medicina….
    Parabéns​ pelo trabalho e empenho na divulgação da SM.
    Grande Abraço!

    Jerry Rezende.

  3. Caros, muito bacana isso!…. Como posso encontrar médicos em SP que atuam na Slow Medicine?

    • Miriam, a Slow Medicine é uma filosofia que que resgata aspectos da prática médica como o investimento na relação médico-paciente e o uso ponderado da tecnologia diagnóstica e terapêutica, particularizando-o de acordo com as características individuais. Não se trata de uma nova especialidade médica. Certamente existem muitos médicos que já a praticam, sem sequer conhecer o seu nome. É aquele médico disposto a ouvir e compartilhar as decisões com você. Este profissional já está praticando a Slow Medicine.

  4. Caro José Carlos, parabenizo-o por sua iniciativa! Compartilho com vc os incômodos dessa medicina da nossa “pós-modernidade líquida”, como diz Z. Bauman. Há tempos venho falando sozinha sobre essas questões na psiquiatria, minha área de atuação, tentando resgatar o sentido da própria especialidade, dos médicos da alma, que vive o tempo Kairós (da oportunidade) e não de Kronos. Atualmente faço doutorado no Instituto de Psicologia da USP, sob orientação da Dra. Maria Julia Kovács, que trabalha com a Educação para Morte. Aí também encontrei um alento nos estudos de cuidados paliativos, que consideraria como um primo-irmão do movimento SM. Estou divulgando seu trabalho. Adorei a ideia de sugestões de livros e filmes, pois tb faço uso deles na minha prática, pois considero-os bem mais terapêuticos e elucidativos de nossas vivências. Considere-me como acompanhante nessa sua jornada, acredito que nossa medicina encontra-se muito necessitada desse movimento!

    • Ana Célia, agradeço o comentário e o apoio. Ele é tão bonito que fala por si! Sim, Slow Medicine e Cuidados Paliativos caminham de mãos dadas. Pelo menos 2 livros essenciais da SM falam diretamente de Cuidados Paliativos, o My Mother Your Mother, de Dennis McCullough e o Knocking on Heaven’s Door, de Katy Butler, do qual em breve publicaremos uma resenha. A psiquiatria é uma especialidade pouco representada no movimento Slow Medicine, até o momento. Seja portanto muito benvinda!

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