O Movimento Slow Medicine ou “Medicina sem Pressa” e o Período Pós-Pós-Moderno da História

novembro 20, 2017
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Por Afonso Carlos Neves:

A História da Medicina a partir de Hipócrates tem 2.500 anos. Se considerarmos o tempo anterior com os precursores de Hipócrates, ou mesmo com os egípcios e outros povos, pode-se ir mais longe.

No transcorrer da História da Humanidade, a Medicina em grande parte acompanhou o contexto histórico em que acontecia, e em menor parte, tinha suas próprias peculiaridades.

A maneira como nós olhamos para a História não aconteceu de forma espontânea, ou involuntária, mas foi construída a partir da reflexão de determinadas pessoas a respeito do passado e suas correlações com diversos fatores.

Assim, a “periodização histórica” foi elaborada inicialmente por Petrarca (1304-1374) e Leonardo Bruni (1370-1444), nos séculos XIV e XV, ainda no Período depois conhecido como Idade Média. Eles consideraram a Idade Antiga como um Período Clássico Greco-Latino, depois teria vindo um Período que eles consideraram como de certa obscuridade do  conhecimento. Petrarca, como o iniciador do que viria a ser considerado (no século XIX) como “Renascimento” (embora alguns já usassem termo similar no século XV), já estava moldando o que se tornaria conhecida como “Idade das Trevas”, principalmente por conta dos Iluministas e Pós-Iluministas.

Na verdade, qualquer Era, ou Idade, é das Trevas e da Luz.

Essa maneira de divisão da História acabou sendo mais reformulada por Cristoph Cellarius (1634-1707) em 1702, ou seja, no início do século XVIII.

Evidentemente, com o passar do tempo, outros detalhamentos foram acrescentados a essa periodicidade. Ela pode ser considerada como uma espécie de base para raciocinar, mas há muitas críticas a respeito de uma visão engessada da História, como se ela fosse facilmente linear e determinada por determinados fatos. Atualmente, novos estudos, pesquisas, descobertas, trazem novas noções a respeito da História.

Como dizia Marc Bloch (1886-1944) a História é: “O presente explicando o passado e o passado explicando e presente”. Assim, é um estudo vivo, contínuo, dinâmico e não apenas uma descrição acabada do passado.

Voltando à periodização histórica. A Era iniciada em 1453, com a Tomada de Constantinopla pelos Turcos Otomanos, passou a ser chamada de Era Moderna. Além desse fato, também caracterizam o início dessa Idade Moderna: as Navegações, a Reforma religiosa, a invenção da Imprensa, a disseminação da invenção/descoberta da pólvora, o Renascimento Conhecimento Clássico Greco-Latino, Mercantilismo, entre outros fatores.

Têm-se aí o uso da palavra “Moderna”. Essa palavra “moderna”, ou “moderno”, inicialmente foi utilizada com o sentido que usamos hoje pelo sábio romano Cassiodoro, no século VI, quando, ao voltar de exílio no exterior de Roma, constatou que nessa cidade ninguém mais entendia a língua grega. Então exclamou: “Vivemos em tempos modernos”.  “Moderno”, vem de “modo” em latim e se refere a tempos verbais. A palavra “moderno” passou a ser utilizada com o sentido de algo que está acontecendo agora, algo novo, etc. Na Idade Média ainda foi usado dessa forma por alguns comentadores do tempo de Carlos Magno e posteriormente.

Portanto, quando se chama uma Era de Idade “Moderna”, está-se querendo caracterizar como uma idade de inovações, invenções, descobertas, conhecimento, etc., para se opor à Idade Média. Mas, por outro lado, na Idade chamada de “Moderna”, também aumentou e foi praticamente oficializada a Escravidão no Ocidente; aumentou a Inquisição religiosa, a Ciência Moderna nascente deu vazão à conceituação de raças e seu consequente preconceito; surgiram as colônias dos Estados europeus. Assim, a chamada Idade Moderna também teve suas trevas…

Continuemos com o uso do termo “moderno”.

A partir da Revolução Francesa, em 1789, tem-se o início da Idade que foi chamada de Idade Contemporânea, com suas subdivisões.

O termo “Contemporâneo” dá ideia de que é aquilo que “vivemos agora”. Na medida em que o tempo passe, é possível que se considere que a Revolução Francesa e suas consequências, bem como suas correlações, deixem de ser consideradas “contemporâneas”. Mas, ainda há muitos elementos presentes ainda que podem favorecer a manutenção desse conceito de forma expandida, ampla.

Ao mesmo tempo em que acontecia a Revolução Francesa, outros processos históricos também ocorriam. A Revolução Americana (um pouco antes, em 1776). A Revolução Industrial, mudando o processo de produção de artesanal para a possibilidade de um primeiro modelo de “produção em série”; isso levou ao deslocamento de pessoas da área rural para a área urbana.

De 1800 a 1950, temos um período que passou a ser chamado de Período Moderno, para diferenciar da Idade Moderna.

Esse Período Moderno teve como características iniciais: a formação do Estado-Nação, depois das Invasões Napoleônicas (cada Estado com uma língua, uma bandeira, um hino); a acentuação da Revolução Industrial; a transformação da Ciência em “profissão”; o desenvolvimento tecnológico; novas descobertas na Medicina; a criação da Universidade Moderna, a partir de 1810, com a fundação da Universidade de Berlim, por Wilhelm von Humbolt, quando, finalmente, os laboratórios que só existiam nas Academias, foram incorporados às Universidades, que transmitiam um Conhecimento tradicional, algo distante das descobertas das Academias. Esse modelo de Universidade se espalhou pelo mundo e caracteriza a Universidade Moderna. Ainda nesse período surgiu o Romantismo, como uma reação a certo sufoco e perda de tradições locais pelo tipo de nacionalismo do Estado-Nação (embora o próprio Romantismo tenha algo de nacionalista, no sentido de resgatar origens) e como reação ao recente poder da Ciência (como se pode ver em Frankenstein de Mary Shalley e outros similares). Assim, no Período Moderno também vieram Realismo, Impressionismo, Modernismo, Expressionismo, Surrealismo, etc., com seus equivalentes nas diversas Artes, seja Literatura, Música, Pintura, etc.

Esse Período Moderno era uma época de viver por ideais, valorizar os meios para se chegar a determinados fins, embora ambos esses fatores entremeados com diversos outros em um quadro complexo.

Como dizia o historiador britânico Hobsbawm, o século XX começou em 1914, com o início da Primeira Guerra Mundial e terminou em 1989 com a Queda do Muro de Berlim. Embora muito interessante, não vamos pormenorizar agora esse conceito.

Indo então para o fim da Segunda Guerra Mundial, a partir de 1950 inicia-se o Período Pós-Moderno (conforme estudo de Lyotard de 1977). Esse período caracteriza-se como uma era de Pragmatismo, Eficiência e Resultados. Ideais tornam-se secundários, os meios para atingir certos fins passam a ser secundários, levando a uma crise ética, embora os traumas da Guerra, e visam-se resultados palpáveis, concretos. A Subjetividade passa a ser cada vez mais substituída pela Objetividade. Há um movimento de contracorrente a isso presente na Contracultura, que tem suas consequências. Todo esse processo “pós-moderno” perdura até o início do século XXI, quando Pragmatismo, Eficiência e Resultados começam a decair.

A Universidade Pós-Moderna é a que visa mais a Eficiência e os Resultados do que propriamente a formação da pessoa como ser humano, diferentemente da Universidade Moderna.

Nesse Período Pós-Moderno, ocorreu a divulgação de uma certa “Globalização” como a salvação geral, e a gradual “desumanização” não só da Medicina, mas da sociedade, pois a Medicina só se desumaniza em uma sociedade que também se desumaniza.

A Medicina, em sua História, teve altos e baixos diversos, no que concerne à “humanização”. Lembremos que este vocábulo aplicado à Medicina surgiu aproximadamente nas últimas três décadas do século XX.

Surge então um período histórico de transição, ou, como diz Erwin Lazlo, de Macro Shift ou Macro-Transição. No início do século XXI, após o Atentado às Torres Gêmeas de 2001 e após a crise econômica mundial iniciada em 2008, os parâmetros Pragmatismo, Eficiência, Resultados, passaram a perder terreno e têm sido substituídos por outros parâmetros. Esse período de transição também pode ser chamado, por enquanto, de Pós-Pós-Moderno, já que o Pós-Moderno entra em decadência.

A Medicina Pós-Moderna era aquela que se orientava, e ainda se orienta, por Pragmatismo, Eficiência, Resultados e Objetividade, ou Objetivismo, com desvalorização da Subjetividade ou Subjetivismo. Essa era uma Fast Medicine, ou seja, o mais rápida possível, independente de ser ou não uma situação emergencial. Esse Fast dizia respeito a Pragmatismo, Eficiência, Resultados, Objetividade.

Agora, no Período Pós-Pós-Moderno, iniciado no século XXI, vemos que Pragmatismo, Eficiência, Resultados, Objetividade respondem cada vez menos às expectativas das pessoas e dos profissionais, exceto nos casos urgentes e emergentes. Procura-se recuperar o espaço da Subjetividade; procura-se uma Eficiência que seja apenas um meio para atingir um fim e não um fim em si; procuram-se os resultados que tenham um interesse comum e não apenas como um desperdício ou uma conquista sem finalidade.

O Movimento Slow Medicine, ou “Medicina sem Pressa” surge nesse contexto pós-pós-moderno, que busca novos caminhos para a Medicina, inclusive recuperando uma parte dos velhos caminhos que se perderam pelo caminho

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Afonso Carlos Neves:

Sou médico formado pela Escola Paulista de Medicina em 1979, neurologista, mestre e doutor em Neurologia pela EPM , com Pós Doutorado em Neurologia na University of California San Francisco. Doutorado em História Social da Ciência pela FFLCH; tive livros publicados de ficção, ensaios e pesquisa histórica. Em 2015 tive a oportunidade de participar de Workshop sobre Medicina Narrativa  com Rita Charon na Columbia University, NY. Sempre tive “um pé” em Ciências Humanas e nas Artes. Por isso, enquanto estudava medicina aprimorei-me um pouco na música e na escrita. Desde que entrei na faculdade a questão do humano me “incomodou”, nas situações em que a ciência, ou o comportamento decorrente de uma maneira de ser ou de pensar eram centradas num triunfalismo científico. Encontrei caminhos mais amplos com colegas, com alguns professores e com outras pessoas, com livros, com discos, com filmes, etc, etc. Tenho também um traço místico/religioso que influenciou na minha preocupação com o humano.

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Este artigo foi originalmente publicado no blog Neurohumanidades, coordenado pelo Prof. Afonso Carlos Neves. Pela sua relevância quanto às formulações filosóficas e conceituais da Slow Medicine, publicamos a matéria na íntegra, gentilmente cedida pelo autor.

3 Comentários

  1. Ótimo texto! Obrigada

  2. Muito bom! Vivemos então a Medicina no pós pós modernismo (pré apocaliptico, talvez..rsrs…) A triste diluição do humanismo e a deterioração hi-tech da Relação médico paciente é mais um fruto sombrio destes tempos.
    Oxalá possamos todos olhar, com franqueza e coragem, o que se passa nos corações e mentes de médicos e pacientes. Parabéns slow medicine, uma luz na escuridão…

  3. Muito interessante esse olhar que contextualiza .

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