Sete habilidades para o domínio da arte da Medicina: do sorriso do médico à compreensão do paciente

setembro 11, 2017
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Por Carla Rosane Ouriques Couto:

“Trata-se de um cliente que no meu consultório, sentado em sua cadeira, lutando por ser ele mesmo, embora com um medo mortal, tenta ver a sua experiência tal qual ela é, que procura ser essa mesma experiência, ainda que tema profundamente tal perspectiva.” Carl Rogers.

Em tempos de pressa, informações rápidas, competitividade, rastros complexos, multiplicidade de novas tecnologias e procedimentos diagnósticos, nem sempre validados cientificamente, o comportamento médico focado em cada pessoa é a mais certeira bússola para caminhar ao lado do paciente, sem se perder dele e do que é essencial. A abordagem centrada na pessoa é um dos pilares do movimento Slow Medicine. A partir de chegada do paciente, em todo o atendimento, até sua partida, é o que manterá a proximidade entre médico e paciente, ditará o ritmo e o fluxo da consulta, e por fim o sucesso do projeto terapêutico.

A proposta de Thomas Egnew, em artigo publicado na revista Family Practice Management,”The Art of Medicine: Seven Skills that promote Mastery“, em 2014, configura-se como relevante para todos os médicos, por propor de forma prática e objetiva diretrizes – que ele denomina de os “sete comportamentos magníficos” – para realizar um atendimento centrado na pessoa, com os elementos que conhecemos como essenciais desde as primeiras obras de Carl Rogers na década de 60: capacidade para compreender o que o cliente pretende significar e os seus sentimentos; receptividade sensível às atitudes do cliente e interesse caloroso, sem uma excessiva implicação emocional.

Porém o tema é especialmente caro aos que de dedicam à formação de novos médicos. Percebe-se na relação com alunos ou residentes, muitas indagações sobre “como” aplicar no dia a dia esta teoria, inaugurada pelas reflexões de Rogers, e ampliada pelo grupo de pesquisadores canadenses de Ontário, liderados por Moira Stewart. Stewart e colaboradores, inspirados pela chegada de Ian McWhinney, em 1968, ao Departamento de Medicina de Família da Universidade de Western Ontário, descreveram poucos anos depois, o Método Clinico Centrado na Pessoa, uma evolução do método clínico tradicional (centrado em queixas e sintomas), com os seguintes componentes: explorando a doença e a experiência da doença; entendendo a pessoa como um todo; elaborando um plano conjunto de manejo dos problemas; incorporando prevenção e promoção da saúde; intensificando a relação entre pessoa e médico e sendo realista com seu tempo e equipe. Outros grupos trabalharam com o mesmo propósito com resultados práticos, semelhantes aos 7 comportamentos magníficos, entre outros, o Guia de Calgary-cambridge e os 7 Passos da Consulta, do médico de família português Vitor Ramos.

Em todos estes modelos de atenção, o paciente é protagonista, nunca passivo e alienado de seu cuidado. Não há postura de comando ou poder médico sobreposto a autonomia do paciente, as decisões são compartilhadas. Toda a proposta considera sentimentos, expectativas e crenças do paciente, e a relação médico-paciente é o pilar de todo o cuidado. Há compaixão e afeto, mas também há cautela quanto às possíveis transferências na relação.
Apesar de extensamente detalhado por estes autores, é comum que os aprendizes de medicina nos indaguem: como fazer isso num atendimento de 20 minutos? Como cumprir esse modelo em dias de cansaço ou mau humor? Como superar as questões do serviço no qual nos inserimos, quando eles desfavorecem o método centrado na pessoa?
Egnew vem responder a essa inquietação, traduzindo o modelo clínico centrado na pessoa, em sete comportamentos: tome um momento para se concentrar antes de entrar na sala de consulta; estabeleça uma conexão com o paciente, desenvolva o relacionamento e pactue uma agenda comum; avalie a resposta do doente à doença e ao sofrimento; comunique-se para promover a cura; use o poder do toque; ria um pouco e mostre alguma empatia.

Chama a atenção no modelo de Egnew, o olhar sobre o médico como pessoa suscetível, sensível e vulnerável aos dilemas da vida de qualquer um. Assim, preparar-se e refletir sobre si, antes do encontro com o paciente, é vital. Quando chegamos ao local de trabalho, sobrecarregados por problemas pessoais, passamos pela sala de espera lotada, e muitas vezes percebemos ali um paciente “difícil”, pensamos com nossos botões: “mais um dia de cão! ” A chance de sermos pouco efetivos e chegarmos ao fim do dia exaustos é quase total. Pensar em si, em suas necessidades, respirar, observar o ambiente e o que pode ser melhorado são estratégias muito importantes. Estar presente e consciente, inclusive das limitações pessoais, é a chave para uma situação melhor. A consciência pode nos levar a outro pensamento ao passarmos pela sala de espera: “ok, não estou muito bem hoje, mas posso aprender algo com estas pessoas, que estão me esperando por algum tipo de sofrimento, inclusive minha paciente poliqueixosa que está ali…ela pode me ensinar algo também…vamos ver, o dia pode terminar bem”.

Da mesma forma, tentar conhecer o que há de registro do paciente, antes do início do atendimento, pode nos sintonizar, proporcionar continuidade de cuidados e oferecer um melhor clima à entrada do paciente e seguimento do atendimento, pois de alguma forma vislumbramos como será o encontro.
A seguir é proposta a interação com o paciente com um olhar afetivo, abertura emocional, seguida de escuta suficiente para que possa ser percebida pelo médico para além de sintomas e queixas físicas, a experiência do adoecimento e o impacto dos sintomas na vida do paciente. O autor enfatiza ainda a importância de um acordo norteador do atendimento, conciliando a agenda do paciente, o que ele gostaria de tratar, com a agenda do médico. Este pacto favorece todo o fluxo do atendimento, permitindo a médico e paciente o conhecimento sobre o processo e o desfecho da consulta, e garante ao paciente de que tudo que é relevante será abordado. Em algum momento deste passo, precisamos indagar: “o senhor gostaria de tratar de algo mais hoje? Algo mais lhe preocupa? ”. Pode ser que o paciente responda: “não consigo mais subir a escada da minha casa…” Nem sempre o paciente tem dores físicas, pode estar com problemas na vida, e esta é sua demanda, que relacionada ao restante da anamnese e ao contexto podem ser centrais para a melhor decisão.
Após escuta, coleta de dados, exame físico, há a necessidade de compartilhar diagnósticos e plano terapêutico com o paciente, observando o impacto e aceitação destes pelo paciente. Penso ser esse passo do modelo, o mais complexo para o médico de formação tradicional. A partir do momento em que retorna da sala de exame, e torna a sentar-se na sua “cadeira de médico” (em geral mais alta e imponente do que a “cadeira de paciente”), é frequente que o paciente receba deste uma enxurrada de pareceres, com termos técnicos estranhos, ou uma lista de hipóteses diagnósticas, seguidas de uma prescrição de medicamentos, rápidos aconselhamentos e pedidos de exames. Raramente essa etapa da consulta inclui diálogos como: “o que lhe parece, seu Antônio, tudo isso? Acha que minha suspeita faz sentido? O que pensa de fazer esses exames? Que dificuldades o senhor pensa que terá nesse percurso?” .
Nesta etapa do atendimento, as habilidades de comunicação, ou as ditas tecnologias leves, serão essenciais, para que exista um encontro real, um consenso e um pacto terapêutico. A figura do cuidador se torna parte da terapia, e para além da figura, o autor nos fala do toque humano durante o atendimento. Muitas vezes durante o exame físico, ao sentir o calor e delicadeza do toque médico, o paciente se sente livre para expressar sentimentos, e a expressão já é em si, parte da cura. A linguagem corporal do médico, sua presença real, a conexão do olhar, são vitais para a consulta que é na verdade um encontro existencial. Isso implica em perseguir o paciente, que com frequência se esconde nas próprias palavras, mas dá pistas de que algo precisa ser revelado.
Mas quando o paciente se sente realmente compreendido? Carl Rogers comenta os graus de compreensão empática do ponto de vista do paciente: o médico aprecia o que minha experiência quer dizer para mim; ele tenta ver as coisas através dos meus olhos; ele pensa de que maneira me sinto porque ele também sente dessa maneira; ele se preocupa comigo, ele aceita meus bons e maus sentimentos; ele se comporta como realmente é.
Os dois últimos comportamentos propostos pelo autor são: ria um pouco…e tenha um pouco de empatia. Sabiamente Egnew avisa que é importante perceber o tipo de humor do paciente. Bem, há pessoas mais e menos predispostas ao sorriso ou ao riso. Penso que o riso, quando faz parte de nossas habilidades de comunicação, é um fator de salvação, para além de nosso papel médico. Lendo o artigo lembrei-me de uma cena de mais de 20 anos, que ainda hoje me serve de lição. Estava num plantão pediátrico num centro 24 horas, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Às duas da manhã, entra um pai com um menino de 2 anos. Já o conhecia do ambulatório diurno, era um pai super protetor que tinha dificuldades com as frustrações de seus dois meninos. Tinha dois metros de altura, era pedreiro, de mãos calejadas, uma pessoa sensível. Pensando nisso, sorri para ele quando entrou, e pensei: “não deve ser nada grave…” Realmente o menino tinha uma otite leve. Quando terminei o exame físico, percebi que o pai estava lacrimejando e enxugando algumas lágrimas. Fiquei olhando para ele, e ouvi a pergunta: “a senhora já foi pobre?” . Respondi: “nunca me faltou nem me sobrou nada…por quê?” Ele respondeu: “é porque nunca ninguém sorri aqui prá gente, muito menos as duas da manhã…”. Terminadas as orientações, partiu o grande pai com seu filho ao colo, satisfeito. Subi ao segundo andar, onde dormíamos em colchões no chão. Era um serviço público. Não tinha na verdade muitos motivos para sorrir, mas era meu hábito. Até hoje, meus filhos me acusam de rir à toa. E além disso tinha, com esse pai, um tipo de conexão. Na época tinha cerca de 35 anos, um filho adolescente e dois pequenos, nenhum marido ou familiar na cidade, uma coleção de desastres afetivos e uma prática pediátrica pouco valorizada pelos meus pares. Era uma prática familiar e comunitária, antes da chegada do nosso PSF. Mas eu não sabia disso. Passava por uma depressão, com perda de peso, cansaço e falta de perspectivas de vida. Porém a reação emocionada do paciente me fez pensar, que o que fazia como médica, tinha no fundo bastante sentido, e era importante. Amanheci naquele plantão livre dos sentimentos depressivos, e disposta a seguir fazendo o que fazia sentido, para mim e para os pacientes.
Acredito ser esta a arte da medicina proposta pelo autor. Respirar, concentrar-se, conectar-se com o paciente através do sorriso, do olhar, do toque. Pode ser que o médico esteja, como eu há 20 anos, mais adoecido do que o paciente, e este encontro possa promover uma espécie de cura pessoal. Egnew lembra que o silêncio pode fazer a empatia murchar…penso que o sorriso pode fazer a empatia surgir e florescer. O segredo está em cada médico na verdade, como se relaciona consigo mesmo, e depois que possibilidades tem de manter uma relação com o paciente, que igualzinho a nós, chora, ri, sofre e também cura.

“Não é fácil permitir a si mesmo compreender outra pessoa, penetrar inteiramente, completamente e empaticamente no seu quadro de referência. É mesmo uma coisa muito rara.” Carl Rogers.

Carla Rosane Ouriques Couto, ainda ri à toa em seus dias, como Médica de Família e Comunidade e Professora do curso médico da Unifenas de Alfenas, MG.

Livros consultados:

Borrel Carrió, F. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed, 2012. 346p.

Kurtz, S, Silverman, J, Benson J, Draper, J. Marrying Content and Process in Clinical Method Teaching: Enhancing the Calgary–Cambridge Guides. Academic Medicine, 2003. 78(8): 802-9.

Mcwhinney, IR. The need for a transformed clinical method. In: Stewart, M., Roter, D. (Eds) Communicating with Medical Patients. Newbury Park, C.A.: Sage, 1989.

Ramos, Vitor. A consulta em 7 passos: execução e análise crítica de consultas em medicina geral. 1. ed. Lisboa: VFBM Comunicação Lda, 2008. Disponível em http://www.apmgf.pt/ficheiros/A%20Consulta%207%20passos.pdf

Rogers, C. R. Tornar-se Pessoa. Psicologia e Pedagogia. Ed Martins Fontes.4º Edição brasileira, junho de 1991. Original: 1961.

Stewart, M et al. Medicina Centrada na Pessoa- transformando o método clínico. Artmed, 2ª edição. 2010.

Stewart, M, Brown, JB, Boon, H, Galajda, A, J, Meredith, L, Sangster, M. Evidence on patient-doctor communication. Cancer Prev Control,1999. 3(1): 25-30.

Stewart, M, Brown,JB, Donner, A, McWhinney, IR, Oates, J, Weston, WW, Jordan, J. The impact of the pacientcentred care on outcomes. J Fam Pract, 2000. 49(9): 796-804.

 

1 comentário

  1. Texto primoroso, deveria ser lido obrigatoriamente nos anos de graduação quando os futuros profissionais da saúde, não somente os médicos, mas principalmente eles, pois carregam culturalmente o poder de decisão, recebem o que poderíamos chamar de “berço”, aquele que tem o mesmo sentido da educação que nos é dada na família. Há várias definições de EMPATIA, gosto em especial desta, abrir-se para a verdade do outro, ou ver o mundo pela perspectiva do outro. Para fazer disso uma prática tenho que primeiro assimilar essa filosofia para dentro de mim. Preparar-se para receber meu paciente como se preparar para tudo na vida. Lembro de ter lido num dos livros do navegante Amyr Klink que ele nunca fez de suas viagens aventuras, ele se preparou minuciosamente para cada uma. Parabéns a autora do texto, por certo faz jus brilhantemente ao ofício que exerce.

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