Slow Medicine e a Prática da Pediatria

fevereiro 28, 2017
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Por Francisco Frederico Neto:

Soa quase como uma heresia se falar em Medicina com calma (ou qualquer outra atividade com calma) em tempos tão agitados como os que vivemos atualmente, no Brasil e no mundo.

A alta velocidade é a marca registrada deste tempo que é quase nenhum, apenas o suficiente para o registro de uma selfie, nunca perfeita o suficiente, ou de uma paisagem pouco vivenciada, mas amplamente registrada.

Não tenho a menor dúvida de que os princípios da Slow Medicine nada mais são que uma pintura com cores mais fortes para realçar uma Medicina de Qualidade, em que valores como humanização, individualização, prevenção, tratamento criterioso, norteiam a prática médica de inúmeros profissionais, mesmo diante de um aviltamento desta prática, que vem sendo ferida de morte por um sem número de motivos (consulta rápidas, excesso de exames, políticas públicas pouco eficientes, excesso de faculdades de medicina, remuneração inadequada pelos convênios,etc).

Mas vamos ao nosso propósito principal que é o de analisar a proposta da Medicina sem Pressa numa perspectiva pediátrica.

Muito provavelmente a Pediatria represente a faceta mais óbvia de uma Slow Medicine. Costumo dizer que o melhor pediatra não é o alopata, o homeopata, o antroposófico, o naturalista, o ayuvérdico…. mas o tempo.

O tempo de ouvir e traduzir o que os pais querem dizer.

O tempo de ouvir, observar, examinar e interpretar o que a criança demonstra.

O tempo de acompanhar evolução natural do desenvolvimento neuropsicomotor da criança e tranquilizar os pais, na imensa maioria das vezes, quando um pequeno atraso ocorre.

O tempo de amadurecimento dos pais para adquirirem segurança passo a passo, mês a mês, ano a ano, percebendo que seu filho não é de cristal, aliás é bem forte, superando com galhardia cada pequena adversidade.

O tempo de os pais progressivamente vivenciarem e aprenderem sobre a regressão espontânea dos sintomas da maioria das doença infantis ( ah! as eternas viroses……), independente do tipo de tratamento (alopático, homeopático,…) que a criança receba.

Mas também o tempo de se encarar um  diagnóstico mais complexo, compreendê-lo, aceitá-lo, enfrentá-lo, convidando a família a superar-se – o que quase sempre acontece – demonstrando a imensa capacidade do ser humano de amar, ter compaixão e resiliência.

A Pediatria trabalha com o ser humano, e com uma família, em formação.

Só essa simples constatação faz da Pediatria uma “especialidade” obrigatoriamente generalista e integral, pois além do foco sobre a criança, ela obrigatoriamente se desdobra sobre os pais, que deverão absorver as orientações dadas e aplicá-las no seu dia-a-dia.

A Pediatria trabalha essencialmente com a Prevenção.

A aleitamento materno quase sempre é o primeiro alimento do bebê e poderá sê-lo exclusivamente até os 6 meses de idade – e ainda continuar por mais tempo. Os novos alimentos vão sendo introduzidos gradualmente, mas próximo de 1 ano de idade a criança já estará comendo praticamente a comida da mesa da família. Quanta prevenção se faz com uma alimentação adequada, evitando-se excessos de sal, gordura, corantes, açúcar,…..

Quantas doenças graves são evitadas com a vacinação (Paralisia infantil, Tétano, Meningites bacterianas gravíssimas,…..), quantas internações por desidratação passaram a ser evitadas com a vacinação contra o Rotavirus, que vitória foi a erradicação da Varíola!

Quanta melhora se obtém com uma intervenção precoce – “estimulação precoce” – diante dos atrasos no  desenvolvimento neuropsicomotor, melhorando em muito a qualidade de vida das crianças e sua sociabilidade.

Mas mesmo com tanta prevenção as crianças acabam adoecendo em alguns momentos de suas vidas. E como costuma ser a reação dos pais?

Se a criança está com tosse e febre, não pensam em gripe e sim em pneumonia.

Se está com febre pensam logo em infecção de garganta e morrem de medo de convulsão febril, quando quase sempre está associada a quadros virais benignos.

Se não quer comer o problema é a garganta.

Se está com diarréia, pensam logo em desidratação.

Se recebem um diagnóstico de bronquite ou asma, imaginam  a criança condenada a usar “bombinha” para sempre.

Claro que casos complexos, graves, extremos e até mortais também acontecem, mas felizmente são os mais raros.

É natural que todo pai e mãe sinta-se inseguro frente à criança doente. Mas o problema é que  muitas vezes os próprios pais acabam por pressionar o médico, exigindo  a realização de exames muitas vezes desnecessários (radiografia de tórax para afastar pneumonia, radiografia ou tomografia de crânio nos traumas cranianos leves, exame de sangue nos quadros de febre, são apenas alguns exemplos corriqueiros) contribuindo para a construção de um modelo de atendimento calcado no excesso de exames e de medicações.

O pediatra, como todo médico, faz um balanço criterioso baseado na história da doença, nos sintomas, no estado geral da criança, buscando realizar o diagnóstico o mais preciso possível, que será a base para uma tratamento adequado.

Na imensa maioria das doenças infantis não serão necessários exames complementares, mas o acompanhamento judicioso, utilizando-se apenas de medicações que de fato sejam necessárias, efetivas, sem efeitos indesejáveis e preferencialmente de baixo custo.

Várias organizações se aliam à Slow Medicine no sentido de promover uma maior profissionalismo médico e uma maior integridade em sua atuação pelos cuidados em saúde.

A Fundação ABIM (American Board of Internal Medicine)  , publica um site sobre Escolhas em Saúde com Sabedoria – Choosing Wisely , em que oferece sugestões para uma prática médica menos intervencionista. No caso da Pediatria podemos citar alguns exemplos:

– evite a prescrição precipitada de antibióticos sem a evidência de uma infecção bacteriana, através de observação criteriosa da criança doente nas primeiras 48 horas. Na imensa maioria dos casos o quadro será apenas viral e os sintomas e a febre começarão a melhorar após esse período.

-evite o uso rotineiro de medicamentos contra refluxo gastroesofágico em bebês. A maioria apresenta apenas uma regurgitação fisiológica e benigna, sem qualquer impacto negativo no crescimento e desenvolvimento e por isso são chamados de “bebês regurgitadores felizes”.

-evite solicitar sistematicamente tomografia computadorizada de crânio para trauma craniano na criança, reservando apenas para casos específicos. Na maioria dos casos o acompanhamento clínico conjunto pediatra-família é suficiente para verificar que na maioria dos casos o exame não será necessário.

-não prescreva antibiótico para otite média em crianças de 2-12 anos de idade sem que os sintomas sejam relevantes e pareça razoável o acompanhamento e observação clínica judiciosos para definir sobre sua real necessidade. Muitas vezes a alteração no ouvido é de causa viral e melhora no decorrer dos dias seguintes.

– não solicite sistematicamente radiografia de tórax para Asma ou Bronquiolite, sem evidência de alguma complicação. Na imensa maioria dos casos a realização deste exame nada acrescentará ao tratamento.

– tomografia de crânio não é um exame habitualmente necessário após um quadro de convulsão febril. Trata-se de solicitação absolutamente desnecessária.

Estes são apenas algumas das várias recomendações para a prática de uma Medicina sensata.

E este é o princípio da Slow Medicine, ou seja, ter critérios.

Critério para realizar um bom diagnóstico, preferencialmente sem toda uma parafernália de exames laboratoriais e de imagem, baseando-se mais na avaliação clínica.  Critério para determinar o melhor tratamento e a alta do paciente.

Em Medicina uma das máximas que todo médico deve seguir é de que “a clínica é soberana“, ou seja, por mais que eu possa ter um resultado de exame alterado, deverei ponderar e utilizar aquele resultado apenas como um elemento a mais, para minha conclusão diagnóstica e decisão sobre a necessidade de algum tratamento específico.

Outra máxima da Medicina que vem desde a época de Hipócrates recomenda “Primum non nocere” – não por acaso o 8º Princípio da Slow Medicine , ou seja, atenção ao que prescrevo (ou solicito de exames), pois poderá fazer mais mal do que bem ao paciente.

E para se ter critério é necessário um tempo de reflexão, para diagnosticar, investigar e tratar com qualidade. Exatamente o tempo que a abordagem da Medicina sem Pressa conclama a ser resgatado na prática médica contemporânea.

Mas como conseguir tal tempo quando se exige do médico atendimentos rápidos e alta produtividade?

Este é um grande desafio de nosso tempo, devendo ser encarado de frente, buscando-se saídas criativas e inovadoras em políticas de saúde, tanto públicas como privadas, que preservem em seu cerne os princípios de uma boa prática médica.

Os princípios da Slow Medicine certamente têm muito a contribuir neste caminho.

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Francisco Frederico Neto é pediatra formado pela USP de Ribeirão Preto e Mestre em Pediatria pela Faculdade de Medicina da USP de São Paulo. Atualmente coordena o Ambulatório Filantrópico de Distúrbios de Aprendizagem do Hospital Sírio Libanês, ministra cursos para gestantes, além de atuar em consultório particular. Atua como assessor científico do Instituto Criança é Vida desde 1996. Autor do livro “Pediatria ao Alcance dos Pais – Compreender a Doença é o Melhor Remédio”.

*A fotografia que ilustra o post é do site Pixabay

1 comentário

  1. Excelente artigo principalmente para pais de primeira viagem.

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