Slow Medicine – uma entrevista com Ladd Bauer

março 5, 2017
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Ladd Bauer é o autor do primeiro artigo publicado em uma revista de língua inglesa sobre Slow Medicine.  Este artigo era frequentemente citado por Dennis McCullough  como  contendo os princípios mais essenciais da Slow Medicine de maneira sucinta, além de fazer a primeira menção às questões ambientais. É o organizador do website sobre a História da Slow Medicine , que reúne um conjunto excepcional de informações sobre o desenvolvimento da filosofia da Medicina sem Pressa no mundo. É com muita honra que publicamos esta entrevista com o dr. Ladd que, com muita gentileza e cuidado, respondeu nossas questões, permitindo que tivéssemos um vislumbre da visão de uma pessoa que viveu e observou o crescimento do Movimento Slow Medicine no mundo desde seus primórdios. Este é um dos primeiros artigos bilíngues que publicamos em nosso site, contando com a preciosa colaboração de Claudia Araújo, que procedeu à primorosa tradução da entrevista.

Slow Medicine Brasil (SMB):  O senhor gostaria de fazer uma pequena apresentação pessoal e de sua atividade profissional?

Ladd Bauer (LB):

Puxa vida! Que história devo contar?

Eu sou um cidadão norte-americano, branco, de 62 anos, sexo masculino, ascendência norte-europeia e, portanto, não muito interessante. Talvez uma análise genética trouxesse algumas surpresas, mas duvido até mesmo disso! Todos serão fazendeiros alemães e ingleses. A salvação é que minha formação é inusitada e, ao mesmo tempo, fonte de bênção e maldição para minhas ditas “atividades profissionais”. Digamos apenas que não sou o “Super Médico Especialista Stanford Harvard”!

Este sujeito do Kansas era como Oskar, personagem do livro Die Blechtrommel (O tambor), de Günter Grass. Quando criança, eu me recusava a seguir os moldes normais e buscava “outras” respostas para os questionamentos da vida. O resultado foi a demora para me tornar um adulto moderno e meu lento desenvolvimento. Além disso, persistiram as questões como “Qual é nosso propósito aqui?” e “Quem sou eu?”. Essas perguntas estão vivas e são diárias. Eu nunca as deixei de lado.

A carreira médica foi quase um acaso, depois de uma década de trabalho nos ramos da mecânica e da construção civil, participando do que agora é conhecido como “comunidade intencional”. A exposição a uma extraordinária variedade de pessoas de todo o mundo foi crucial para que eu tivesse a certeza de que todos nós somos loucos. Uma namorada me convenceu a tentar a faculdade de medicina. Eu não tinha medo dos entrevistadores da faculdade e de suas artimanhas; assim, consegui iludi-los para que me aceitassem como um aluno mais velho apesar de não ter completado a formação acadêmica necessária.

Meu objetivo era a especialização em Psiquiatria, mas, ao descobrir que a profissão havia se tornado quase totalmente voltada para os medicamentos, escolhi a Medicina de Família e Terapia de Família. Durante o curso, participei do I Congresso Internacional de Medicina Holística, em Bangalore, um dos motivos que me levou a um período de 25 anos como exigente revisor do conselho editorial do The Journal of Alternative and Complementary Medicine . Na década de 1990, quando exercia toda a gama de atividades da Medicina de Família, comecei a experimentar a consultoria on-line e me tornei assessor clínico da Alternative Medicine Foundation , que dispunha de uma base de dados científicos sobre fitoterapia e promoveu importantes congressos sobre tradições como a Medicina Tibetana. Intercalei períodos de contribuição e aprendizado médico no México, no Afeganistão, na Inglaterra e no Tibete oriental. Ao mesmo tempo, fui membro e, mais tarde, presidente de um comitê de ética que analisava pesquisas médicas convencionais e alternativas. Durante quatro anos, apresentei com um colega um programa de rádio (denominado A Pair o’ Docs , um trocadilho com a palavra “paradoxo”) no qual conversávamos sobre histórias de médicos e pacientes e também sobre notícias da área médica enquanto os ouvintes ligavam – provavelmente a atividade mais útil que já exerci. Nos últimos anos, eu me concentrei nas questões do fim da vida e na Slow Medicine como uma ideia para recuperar a própria Medicina.

SMB: Como você chegou à filosofia da Slow Medicine?

LB: Um dia, no início de 2007, eu e minha companheira, por sugestão dela, decidimos ir a uma praia local para pensarmos em um nome simples que definisse o que eu vinha fazendo e o que era necessário para recuperar a Medicina. Não se passaram 15 minutos e a expressão “Slow Medicine” brotou da areia entre nós.

Menos de 30 minutos depois disso, a internet nos mostrou que a ideia não era nova e cinco anos antes um cardiologista italiano escrevera um artigo sobre a “Slow Medicine” como um remédio para o emprego excessivamente rápido de tratamentos médicos. Os três principais domínios na internet já eram propriedade de outras pessoas não identificadas. No entanto, ao conversar sobre essa ideia com amigos, notava somente expressões de perplexidade e às vezes comentários como “Quero uma medicina rápida!”.

Um ano se passou com vagar, e eu descobri algo em um desses domínios: um novo livro escrito pelo médico Dennis McCullough . A introdução era promissora e o livro abordava a necessidade de que os idosos recebessem cuidados sem pressa, respeitosos e reflexivos. Corri para ler o livro no dia de seu lançamento, descobri seu telefone e liguei imediatamente.

A filosofia já existia muito antes da expressão, para muitas outras pessoas à sua própria maneira. É parcialmente encontrada nos princípios fundamentais da então nova especialidade de Medicina de Família na década de 1960. O traço comum é a necessidade de recuperar o tempo, a atenção e a escuta.

SMB: Como você vê o desenvolvimento das ideias da Slow Medicine nos Estados Unidos?

LB: No meu país, a melhor imagem é a de “reunir gatos”. Cada filhote quer ir por um caminho diferente! Parte disso tem relação com o individualismo que é tão enraizado aqui. Essa é uma característica positiva, pois permite o surgimento de várias expressões criativas, que podem contribuir para uma visão mais ampla ao longo do tempo.

Nós temos nos comportado como as pessoas cegas em torno do elefante daquela antiga história – cada uma delas apalpa uma parte, mas não consegue perceber o todo. A Slow Medicine é muito maior que um elefante. Todas essas pessoas, aqui e no mundo, estão percebendo como deve ser a criatura de acordo com seu ponto de vista.

É exatamente por causa da grandeza dessa possível criação que estou me dedicando a alinhavar lentamente perspectivas internacionais. A moderação é necessária, como na organização italiana, e a liberdade para criar sem interferência também é essencial. Em caso de exagero, uma qualidade pode levar à ossificação e a outra, ao caos. A Slow Medicine harmoniza princípios aparentemente contraditórios como a ordem e a criatividade.

SMB: Como era seu relacionamento com o Dr. Dennis McCullough?

LB: Excelente! Ele era um cavalheiro e conselheiro excepcional, e sua morte súbita em junho foi uma grande perda. Nós nos tornamos amigos desde o dia, em abril de 2008, em que telefonei para conversar com ele sobre seu livro. Éramos amigos porque ele via o melhor em quase todas as pessoas, conseguia relevar minhas imperfeições e queria formar uma equipe. Mantínhamos uma discussão permanente sobre a Slow Medicine: ela visava apenas à geriatria ou poderia ser aplicada em toda a medicina, desde a atenção pré-natal até o fim da vida? Experimentamos até mesmo levar esse diálogo para meu programa ao vivo, que passou a se chamar “Slow Medicine Radio”. Aos poucos, conciliamos nossas posições – eu concordei que a geriatria era uma área em que seria mais fácil a aceitação da Slow Medicine nos EUA, e ele passou a admirar mais os entendimentos diferentes e a possibilidade de aplicação da Slow Medicine a crianças e adultos. Incentivado por mim, ele participou de um congresso italiano sobre Slow Medicine e me ligou empolgado, de Turim, para dizer que eu também precisava ir!

A verdade é que Dennis fazia amizade com a maioria das pessoas, mesmo quando discordava delas. Ele seguia o lema de Lincoln: “Derroto meu inimigo transformando-o em meu amigo.” O mais importante é que ele tinha um grande senso de humor. Sinto muita falta dele. Dennis me telefonou dois dias antes de morrer para sugerir um novo projeto em conjunto e, de repente, havia partido. Mas ele continua aqui no efeito produzido em muitos de nós.

SMB: Como você vê outras iniciativas nos EUA, como as conduzidas por Katy Butler , Victoria Sweet , Pieter Cohen e colaboradores ?

LB: Como eu disse, somos todos gatos. Esses são os gatos bons, que fazem um excelente trabalho, e vale a pena ler o que escreveram. Os Estados Unidos são um tipo de oficina para as ideias da Slow Medicine. Não sei dizer onde tudo isso vai dar.

SMB: Uma questão importante: as interfaces entre Slow Medicine e Medicina Integrativa (ou alternativa)…

LB: Esse assunto me atraiu desde a década de 1980 e oferece muitas oportunidades, para o bem ou para o mal. A palavra “interface” pode não ser a melhor, porque sugere a separação das duas ideias por uma fronteira. A Slow Medicine abrange todas as “medicinas”, e eu realmente espero que não se transforme em mais um eufemismo para designar uma medicina alternativa estereotipada. Quero com isso frisar que todas as medicinas sofrem de uma tendência ao excesso de diagnósticos, tratamentos e custos como parte de um contexto cultural que valoriza “especialistas”, nomes elegantes e dinheiro. Talvez o potencial da Slow Medicine esteja em ser uma “grande ideia” a ser levada para as situações médicas com o objetivo de nos alertar para a necessidade, por exemplo, de inicialmente só ouvir. Em minha opinião, servirá como um meme para despertar as pessoas nos momentos em que elas costumam se precipitar para adotar uma solução que muitas vezes é cara e inútil ou até mesmo prejudicial. Várias medicinas alternativas oferecem exemplos de escuta sem pressa; elas também podem nos levar a esquemas inefetivos e de alto custo, assim como a medicina tradicional. Dennis citou a própria experiência com um acupunturista que realmente era um excelente ouvinte. Entretanto, o fato de serem alternativas não significa que as pessoas se tornem necessariamente tão diferentes. O surgimento de uma expressão como “Slow Medicine” pode dar um sinal e a permissão para que qualquer tipo de profissional de saúde e paciente faça o que é certo. Além disso, ao contrário de termos como “integrativa”, que introduz estereótipos, ou “cuidado apropriado”, que todos julgam já estar empregando, pode causar essa “reestruturação” em qualquer contexto médico.

SMB: Você acredita que os princípios da Slow Medicine podem ter implicações nas políticas de Saúde Pública?

LB: Sim, claro! Enquanto o movimento exerce influência de baixo para cima, quando o público descobre seu significado, as instituições de saúde pública realocam recursos para dedicar mais tempo a primeiro ouvir as pessoas. Recentemente, um enfermeiro me contou que uma unidade de saúde em São Francisco, já em resposta aos textos e palestras de grandes escritores, como Victoria e Katy (que estão na área da baía de São Francisco), passou a dedicar mais tempo à avaliação inicial dos pacientes em alguns departamentos. Há estudos em andamento para demonstrar que o uso dos recursos é mais efetivo dessa maneira, porque evita a reação exagerada, precipitada e dispendiosa, além de produzir melhores resultados. Se os pacientes demandarem cada vez mais esse tipo de conduta, os sistemas poderão responder à medida que os diretores compreenderem melhor o que dá bons resultados. As ideias atuam nos dois sentidos – de baixo para cima e de cima para baixo –, modificando ao mesmo tempo as bases e os sistemas de saúde.

SMB: Existem pelo menos quatro países com iniciativas para a divulgação da Slow Medicine. Como você avalia essa “internacionalização” do movimento?

LB: Certamente são mais de quatro países. Talvez você esteja se referindo a Itália, Holanda, Brasil e EUA. Dennis fez palestras em Singapura e no Japão; pode ser que esteja acontecendo algo importante nesses lugares também. Sem contar que a ideia aflorou durante anos em locais como os blogs de uma enfermeira obstétrica indiana e de um médico inglês, além dos sites de profissionais de saúde alternativos na Alemanha, por exemplo. Em uma escala menor, conheci uma médica eslovena que ficou fascinada com a ideia. Esses são apenas alguns exemplos do surgimento da Slow Medicine em diferentes lugares e diferentes níveis. Assim, a Slow Medicine pode se assemelhar a uma inoculação terapêutica com efeitos aqui e ali em variados estágios de desenvolvimento que, por fim, convergirão. A Itália é a área mais reconhecida e organizada, assim como ocorre com o movimento Slow Food.

Então, vem à mente também a história da Torre de Babel. O idioma introduz todos os tipos de oportunidades e obstáculos para compreender o que está acontecendo. Portanto, é improvável que haja uma propagação rápida dessa “ideia infecciosa” de uma cultura para outra. Algumas culturas “adquirem-na” logo e outras são mais resistentes. Podem aparecer também vários bolsões de manifestação parcial ou corrompida. Nosso trabalho consiste em zelar por sua pureza e continuidade. A “fast medicine” que se disseminou no mundo ao longo de muitas décadas é tóxica em vários aspectos. A Slow Medicine pode ser um antídoto.

SMB: Iniciativas como a Choosing Wisely, Alliance for Right Care – The Lown Institute , Less is More Medicine, parecem caminhar lado a lado com a Slow Medicine. Como você vê essas campanhas?

LB: Essas campanhas são manifestações da Slow Medicine, só não usam esse nome. Elas são parte do movimento, todas estão reunidas em volta do elefante e oferecem a melhor descrição possível. Ainda que nunca haja uma organização no âmbito internacional, a Slow Medicine sempre existirá. Durante anos, tanto Dennis quanto eu tentamos criar um termo melhor, mas acabamos percebendo que essa é a única designação capaz de abranger a maioria das ideias interligadas e, ao mesmo tempo, ajudar as pessoas a pensar um pouco e a compreendê-las com mais profundidade. Pode ou não se tornar um termo amplo e reconhecido para todos esses bons projetos. A meu ver, isso seria conveniente. É dessa maneira que funciona o meme da Slow Food.

Veja só, na verdade, eu não expliquei muito sobre a Slow Medicine! Ainda assim, essas duas palavras já são suficientes para que alguém que tenha acesso a esta conversa saiba do que estamos tratando. Essa pessoa também poderia explorar a expressão e descobrir a riqueza por trás dela, entre as quais estão as iniciativas Choosing Wisely, Right Care e outras. À medida que se disseminar, o meme servirá como uma mensagem sucinta para mudar a direção e a qualidade das respostas em situações como o parto, a insuficiência cardíaca ou o planejamento do sistema de saúde. O meme já está cumprindo essa função na especialidade de gerontologia em várias partes dos EUA e surge até mesmo em conversas de administradores hospitalares.

SMB: Para finalizar, o médico ou o profissional de saúde doente… O sofrimento pessoal ou o sofrimento de um membro da família pode sensibilizar a pessoa para melhor compreender os preceitos da Slow Medicine?

LB: Sim. É uma pena que não seja a primeira parte de nossa formação! Os profissionais de saúde que eu conheço que compreendem melhor a Slow Medicine passaram por isso de uma maneira ou de outra. A necessidade de reequilibrar a medicina se torna muito clara quando sentimos na própria pele a aceleração automática, o desperdício e as consequências prejudiciais inesperadas da atenção médica misturadas com a boa conduta. Também ficamos gratos por já termos tantos instrumentos disponíveis. Cabe a nós, pacientes e profissionais de saúde, usá-los bem e compartilhar nossas histórias.

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Claudia Araujo é médica e atua como tradutora especializada na área médico-farmacêutica desde 1987.

Contato: [email protected]

https://br.linkedin.com/in/claudia-araujo-translator

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