Slow Oncology

julho 19, 2016
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Por Ana Lucia Coradazzi: Há alguns dias atendi S. Oswaldo*, um senhor de 90 anos que, entre suas muitas experiências na vida, tinha tido um câncer de estômago tratado cirurgicamente há mais de 20 anos. Apesar de lúcido na maior parte do tempo, ele já iniciava períodos de confusão mental e esquecimentos frequentes. Era cardiopata e a função dos seus rins já dava sinais de falência. Sentia-se cansado e com dores nas costas, e um clínico descobriu que ele estava com anemia importante. Ele foi encaminhado aos meus cuidados devido à suspeita de uma nova neoplasia na pequena porção de estômago que lhe tinha sobrado, a qual chamamos de coto gástrico.

Após resolvermos o quadro mais urgente, o que consistia em controlar sua dor e realizar transfusões de sangue, ele já se sentia melhor, e era hora de decidir o que faríamos dali para frente. Sentei com ele e com as filhas e expliquei que, para sabermos a causa da anemia, precisaríamos fazer uma endoscopia e possivelmente uma biópsia (caso fosse visualizada alguma lesão). Isso implicaria também numa avaliação do seu cardiologista antes do procedimento. Ele, com toda sua calma, perguntou o que deveria ser óbvio: no caso de encontrarmos um tumor, o que seria feito? Respondi que a conduta nesses casos normalmente é cirúrgica, a não ser que o tumor já estivesse muito disseminado, caso em que a quimioterapia passava a ser a única opção viável. Após alguns minutos, ele concluiu: “Doutora, não preciso ser médico para entender que não tenho condições para fazer uma cirurgia. Quimioterapia, então, não pretendo nem passar perto. Então, já que não teremos o que fazer com o resultado da endoscopia, o que a senhora acha de esquecer essa história e apenas cuidar de mim quando eu não estiver me sentindo bem? Para mim estaria bastante justo.”

Sem ter ideia do que vem a ser o conceito de Slow Medicine, S. Oswaldo deu uma aula sobre ele. Trata-se, simplesmente, de pensar antes de agir. De ter cautela. De escutar antes de decidir. De ter bom senso.

A Oncologia Clínica está entre as especialidades médicas que mais se desenvolveram nas últimas décadas. A descoberta de novas drogas e estratégias eficazes no combate ao câncer tem sido tão rápida que mesmo os profissionais mais estudiosos são completamente incapazes de se manterem atualizados. Esse tipo de progresso é tão empolgante quanto perigoso. Nós médicos, em especial oncologistas, temos dificuldade para discernir o que é um resultado vantajoso num estudo clínico do que é um resultado vantajoso para aquele paciente específico que está sentado à nossa frente.  É precisamente por esse entusiasmo exagerado em torno das tecnologias que nos chegam às mãos que as aplicamos em quem não precisa delas. Solicitamos marcadores tumorais como parte dos exames de screening para pacientes saudáveis, sem que haja qualquer evidência de que isso lhes traga algum benefício. Indicamos radioterapia do sistema nervoso central para qualquer paciente que se apresente com metástases no cérebro, mesmo os comatosos, os que já se submeteram a todos os esquemas de quimioterapia disponíveis, os instáveis, os terminais. Encaminhamos pacientes para a UTI na fase final de suas vidas, impedindo que possam passar seus últimos momentos na companhia das pessoas que lhe são caras. Pedimos exames – centenas deles – para avaliar a progressão do câncer em pacientes para os quais já não dispomos de qualquer estratégia terapêutica viável.

A Oncologia é uma especialidade complexa e abrangente, e talvez isso faça com que os oncologistas partam do princípio de que os pacientes e seus familiares não têm condições de participar das decisões – são leigos no assunto. Eles realmente não têm como compreender a complexidade das mutações genéticas relacionadas ao câncer, os efeitos colaterais dos tratamentos oncológicos, a interpretação dos exames de imagem e laboratoriais a que são submetidos. E nem devem, porque essa não é a parte deles na história. A eles cabe definir quais são suas expectativas, quais seus limites, e o que vale a pena suportar para conseguir o que desejam. O papel deles está precisamente em decidir como querem viver suas vidas. O nosso, enquanto oncologistas, está em ajudá-los nessa empreitada. A tecnologia que temos à nossa disposição só faz sentido se pudermos utilizá-la para aproximar os pacientes de seus objetivos. Quando tais objetivos se mostram inviáveis, cabe a nós ajudá-los a estabelecer metas mais realistas. Portanto, é nossa obrigação primordial compreender que objetivos são esses. É nossa obrigação escutar.

Não se trata de um retrocesso, muito pelo contrário. Praticar Oncologia em sua forma “slow” pode ser considerado o que há de mais moderno. Há cada vez mais estudos desenhados essencialmente com o objetivo de definir quais os procedimentos, estratégias e tratamentos que proporcionam reais benefícios para cada indivíduo em especial. Temos nos esforçado para definir coisas simples, como até que idade há benefício em se fazer exames preventivos para o câncer ginecológico, ou até que ponto vale a pena insistir com um paciente para que pare de fumar. Mesmo entre as novas drogas, o foco tem sido sempre a identificação daqueles pacientes que expressam determinados alvos tumorais que os transformam em potenciais beneficiários do novo tratamento.

Temos um menu infinito de opções à nossa disposição. Podemos escolher o que desejarmos. Mas nossos desejos pouco importam para os nossos pacientes. Não se trata do que nós faríamos diante de um diagnóstico de câncer, e sim do que eles fariam se tivessem nosso conhecimento. É só perguntar.                                                                                                                         (*)nome fictício                                                                                                                                                                                                                              


Ana-CoradazziAna Lucia Coradazzi

Nasci na cidade de São Paulo, mas moro em Jaú, no interior, há muitos anos, com meu marido e minhas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, fiz especialização em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Hoje atuo como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Também integro a equipe de Cuidados Avançados de Suporte e Medicina Integrativa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em SP. Apaixonada por livros (e escritora nas horinhas vagas), também reservo um tempo para minhas corridas, que mantêm o corpo saudável e a mente tranquila.

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