Alguém no quarto ao lado?

maio 19, 2025
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Uma lição sobre o cuidado sem pressa

Por Vera Anita Bifulco & Carla Rosane Ouriques Couto

  “A plenitude do amor ao próximo é simplesmente ser capaz de perguntar: o que você está enfrentando?” (Simone Weil)

          A distância entre amigos e familiares é bastante normalizada em nosso “estilo” de vida ocidental. As famílias são cada vez menores e mais dispersas. Martha e Ingrid são amigas que se distanciaram há muitos anos, nessa história baseada no livro ficcional de Sigrid Nunez. Martha também é distante da única filha. O ritmo apressado dos anos, em especial nesse século, entre trabalhos, migrações e viagens, afasta núcleos familiares e amizades que poderiam florescer. O último livro de Ingrid é sobre o medo da morte. Medo que atravessa Martha, vivendo com uma doença sem possibilidade de cura. As duas se aproximam a partir de uma visita de Ingrid ao hospital e passam a conviver de forma muito próxima. Afinal, Martha está só, frágil, afirmando sobre a filha: “não sinto que ela é minha filha, nunca se interessou por mim como mãe”. O ressentimento mútuo entre mãe e filha, tem como foco a morte do pai, que a filha Michelle nunca conheceu. Essa era uma espécie de morte para Martha. Um luto não simbolizado ou significado. A morte física será sempre a última, mas quantas “mortes”, perdas irreversíveis, surgem antes dela? Quanto do corpo e da alma morrem, antes do coração parar de bater? 

           Existem várias perdas/morte pelo próprio adoecimento e tratamentos oncológicos, que são vividas pelos pacientes, famílias, equipes de saúde e comunidades mais próximas ou as vezes distantes, como lutos, lutos antecipatórios. Martha perdeu o prazer de ler, de escrever…e está em busca talvez de outros sentidos para seguir. Em suas conversas com Ingrid fala de maternidade e das dificuldades com as quais viveu essa experiência. Por alguma relação ou não, seu câncer está localizado no aparelho reprodutor. Não temos adequada explicação da ciência sobre isso: como a alma se inscreve no corpo? Ou será que cada de um nós intui qual é seu sistema físico mais frágil em relação ao câncer? Se pararmos para pensar um pouco, sabemos aproximadamente as causas de nossa morte?

          Cada doença tem uma linguagem própria e gera um discurso sócio-sentimental único que interage na comunidade imediata refletindo as circunstâncias culturais e econômicas. E é mesmo um evento coletivo ainda que, em termos de doença localizada, seja instalado em uma ou algumas pessoas. Martha pede para falar, precisa falar…e encontra o que poucos pacientes têm na verdade: alguém que os escute, sem necessariamente motivá-los para a cura ou sobrevida. Para Martha a relação com a doença não se configura em luta, nem em heroísmo ou meio de elevação espiritual. A morte não seria a derrota. Martha só quer terminar antes que o câncer termine com seu corpo. 

          Há então a elaboração de um plano para “bem morrer”. Martha esteve próxima da morte em várias oportunidades. O consolo era que não estava sozinha nessas batalhas. Ingrid é convidada para estar no quarto ao lado, quando Martha fizer uso de um medicamento fatal, de comércio ilegal. É o preparo do que chamamos suicídio. Ou teria outra denominação no caso de Martha? 

           A equipe de saúde nada sabe. Martha pede apenas uma pausa da quimioterapia. Será possível que um dia consigamos que os pacientes sejam realmente ouvidos em seus desejos nesses serviços de Cuidados Paliativos? Quando o foco deixará de ser a sobrevivência a qualquer custo? Dizer a uma paciente que ela conseguirá superar o tratamento porque seu coração é forte, traz algum tipo de alívio? É sobre questões como essas que o movimento Slow Medicine, entre outros, tem se debruçado. O câncer em qualquer parte do corpo jamais poderia ser “descolado” do sujeito que o porta, e visto como algo a ser extirpado simplesmente, ou combatido, eliminado. Para cada tumor visível há um emaranhado confuso de sentimentos, angústias e afetos, que incluem significados singulares do viver e do morrer. Segundo Freud é na angústia que se encontra o sujeito. Se a escutarmos.

          Martha pondera à Ingrid que a quimioterapia mudou seu cérebro. Não pode mais confiar em si. A perda da pílula da morte dentro de casa, é simbólica nesse sentido, representando as dúvidas e questões de quem atravessa essa experiência. Seguir sofrendo, sem prazer, ou partir serenamente? Existirá espaço para essas reflexões onde cuidamos dos pacientes? 

          Escolhido o lugar, e recuperada a pílula (da morte), Martha executa seu plano: recostar-se numa espreguiçadeira, num dia lindo, como mostra o quadro de Hopper na parede, vestida de amarelo fulgurante, voltada para o horizonte. Assim Ingrid a encontra, e passa a enfrentar um interrogatório policial de alguém que se diz “temente a Deus”, e portanto, não pactuado com a ideia de suicídio. E por fim, Ingrid consola a filha, transmitindo a ela as histórias de Martha sobre si e sobre o pai. Foi tarde para esse resgate, importante como nos ensinam os bons cuidadores paliativos: se possível é importante reunir afetos, esclarecer ressentimentos, pedir e ouvir perdão, antes do embarque no último trem. 

          Vivemos tempos hostis, com pouca esperança, nos quais temos medo de tocar as pessoas, como mostra a cena entre Ingrid e seu personal trainer. Tempos bélicos e reativos, que impregnam a vida social e familiar. Vivemos separados dentro de casa, pelas novas tecnologias, num mundo de imagens rápidas e ilusórias, onde a palavra perdeu lugar, ainda que sejamos seres de linguagem. Talvez em breve iremos falar de nosso medo da morte a uma IA. Poderemos legitimar decisões como a de Martha? 

          Quais foram as contribuições de Almodóvar para estas reflexões? Esse controverso diretor, usa seu habitual estilo, mostra o sofrimento de despedida da vida de forma poética e elegante. Apresenta muitos elementos estéticos: as flores, as cores fortes, a natureza, os pássaros, o céu. Tudo está ao redor de Martha. Livros, poemas, quadros. Arte que fala do que não pode ser dito. Um contraste evidente com os tradicionais locais de morrer: a UTI, um quarto asséptico de hospital, uma sala vermelha (que de vermelha só tem o nome). Será possível colorir a experiência de morrer, a partir das preferências de cada paciente?

          O cinema tem se debruçado sobre o tema incessantemente, propondo conversas difíceis, que tanto evitamos. Almodóvar não foge das questões mais sombrias: um fim escolhido não depende de uma só vontade, do paciente. Há estratégias a serem pensadas para atingir esse objetivo: a quem confiar esse segredo? Como adquirir uma droga letal que não cause sofrimento maior? Como não deixar pistas que possam incriminar um cúmplice? No caso a cúmplice acompanhou a amiga ao máximo que se possa acompanhar alguém. Como aquele amigo (que pode ser um profissional de saúde) que sobe conosco na plataforma de embarque, até a partida do último trem.

          O câncer, apesar de todos os avanços tecnológicos, ainda é uma doença revestida pelo estigma de sofrimento, limitações e morte. Somos mortais e escamoteamos a morte, escondemos nossas angústias diante de nossa única certeza. Quando a hora de olhar para o fim se aproxima, resolvemos então revisar a vida inteira, com frequência pela primeira vez.  Como diz Hemingway: “todos os seres humanos deviam tentar aprender antes de morrer, do que estão fugindo, e para onde estão indo, e por quê”. Há quem como Martha passou a vida a registrar a morte, há quem tenha vivido alheio a ela. Como cada subjetividade poderia ser contemplada nos nossos protocolos oncológicos, sem tratar os pacientes como vitoriosos ou perdedores? Só saberemos quando ouvirmos cada história, como enfatiza a Medicina Narrativa.

          Quando essa comunicação não acontece, há o assombramento. E só restará algum Deus que faça presença nas sombras. Como lembra Milton Santos: “Estamos fazendo os ensaios do que será a humanidade. Nunca houve”. Precisamos ensaiar no coletivo, entre humanos, sem tanta pressa.

             “O último dia do tempo não é o último dia de tudo. Fica sempre uma franja de vida onde se sentam dois homens” (Drummond, “A Rosa do Povo”)

Ficha técnica do filme:

Título original: “The Room Next Door” – “O Quarto ao lado”

Direção: Pedro Almodóvar. 2024. EUA

Protagonistas: Tilda Swinton e Julianne Moore

Referências:

O que você está enfrentando. Sigrid Nunez. Ed. Instante. 2021.

Augusto & Lea: um caso de des(amor) em tempos modernos. José Carlos Sebe Bom Meihy. Ed. Contexto. 2006.

O Velho e o Mar. Ernest Hemingway. 1952

Bilhete de Plataforma. Derek Doyle. Ed. Difusão. 2011.

Poesia Completa. Carlos Drummond de Andrade. Ed. Nova Aguilar. 2002.

Encontro com Milton Santos. Silvio Tendler. Documentário de 2006.


VERA ANITA BIFULCO. Psicóloga, Psico-oncologista. Mestre em Ciências pelo Centro Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde da Unifesp-EPM. Psicóloga Integrante do Ambulatório de Cuidados Paliativos da Unifesp. Co-organizadora dos livros Câncer: Uma Visão Multiprofissional e Cuidados Paliativos: um olhar sobre as práticas e as necessidades atuais. Co-autora do livro Cuidados Paliativos – Conversas Sobre a Vida e a Morte na Saúde. Membro Participante do Movimento Slow Medicine Brasil, Coordenadora do Comitê de Cuidados Paliativos da Sociedade Brasileira de Psico-oncologia – SBPO. Decisões de fim de vida são conversadas rotineiramente entre minhas filhas e eu. 

CARLA ROSANE OURIQUES COUTO. Médica de Família e Comunidade. Pediatra, Sanitarista, especialista em Educação Médica, Gerenciamento de UBSs, Saúde do Trabalhador, Terapia de Família e Psicanálise. Mestre em Psicologia Social.  Educadora na UNASUS.  Não basta o desejo de fazer uma última boa viagem, há decisões a serem compartilhadas.

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