Chico

maio 6, 2025
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“Os cientistas dizem que somos feitos de átomos; mas um passarinho me contou que somos feitos de histórias.” (Eduardo Galeano)

Por Diego Coutinho

Era um domingo chuvoso e eu estava iniciando mais um plantão numa UTI repleta de pacientes graves como de hábito. O que eu trazia de diferente era que estava voltando de umas férias daquelas que nos trazem novas perspectivas sobre o mundo: havia passado uns dias em um vilarejo às margens do Rio São Francisco, bem próximo de pessoas, as quais abriram a porta de sua casa e me convidaram a entrar sem saber minha profissão ou meus antecedentes, mas apenas confiando na boa intenção em conhecer suas histórias e motivações de vida.

Nesse sentido, voltava a São Paulo com mais calma e tentando manter uma curiosidade real pelo outro, embora essa cidade de multidões nos torne mais ensimesmados e desconfiados de qualquer aproximação. 

Na passagem de plantão, a colega médica me falou do último e mais grave dos casos. Contávamos com poucos dados na história desse paciente. Não havia família ou amigos. Sabíamos que ele já chegou bem grave no Pronto Socorro e, talvez por suas vestimentas, disseram que ele trabalhava como pedreiro. Além de ter buscado investigar ao máximo, ter sido extremamente competente em todo cuidado e plano terapêutico, a plantonista me falou algo pessoal ao se despedir: “o que me chateia é saber que esse senhor, muito provavelmente, veio para essa cidade para trabalhar e ‘melhorar de vida’, mas acabou solitário e internado sem sequer uma identificação.” 

Talvez aquilo me tenha tocado por eu também me identificar como um migrante que veio para São Paulo partindo de uma cidadezinha na tentativa de construir algo, ou mesmo por conhecer tantas pessoas que vêm para essa cidade na busca por trabalho e oportunidade, mas que acabam frustradas em subempregos e humilhações. 

No entanto, o fato era que estava com um paciente muito grave, que poderia falecer nas próximas horas e sequer sabíamos o nome dele. Esse senhor, que eu acredito ter nascido em um interior daqueles onde eu tinha passado alguns dias, provavelmente cercado por pessoas queridas que do pouco que tinham partilhavam. Esse desconhecido, que um dia esteve no colo quente de sua mãe, que cresceu brincando com outros meninos e após um tempo sem tanta perspectiva ou com dificuldades claras, resolveu se mudar para a metrópole que talvez prometesse um sonho de ter uma vida mais digna. 

Após o trabalho fundamental do Serviço Social, conseguimos encontrar uma sobrinha distante daquele paciente e descobrimos seu nome: Francisco. Não ganhamos muitas informações epidemiológicas ou detalhes da história clínica, mas a partir daí, parece que as coisas ganharam uma nova dimensão. Agora a equipe multidisciplinar se interessava mais por uma esperança de melhora; os especialistas nas interconsultas se animavam mais com as medidas heroicas que eu propunha e, contra todos os escores, Francisco apresentou uma melhora após muita insistência e esperança. O corpo tinha um nome e, então, ganhou uma alma.

Nesse contexto de mais um plantão ingrato num dia que, teoricamente, deveria ser de descanso, eu pude entender aquela brilhante ideia do Galeano que dizia: “Os cientistas dizem que somos feitos de átomos; mas um passarinho me contou que somos feitos de histórias.”. 

Saber o nome das pessoas e olhar nos olhos de quem nos fala  é entender que, mais do que peças de uma engrenagem de possibilidades, estamos diante de vidas com memórias, dores e amores. Isso nos aproxima do outro e de nós mesmos em nosso íntimo. Isso nos traz mais coragem para enfrentar os piores contextos de doenças; e nos mantém de mãos dadas com a esperança num processo ativo. 


Diego Coutinho é médico de origem mineira. Fez Clínica Médica pela Santa Casa de São Paulo, hoje atuando no Setor de UTI e Emergência. Acredita que o amor é atitude, que as certezas são gaiolas e que somos feitos sobretudo de histórias.

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.. Claudia
.. Claudia
2 dias atrás

Mto bom oo seu ponto de vista por um ser humano que vc buscou a fundo pra saber quem era esse ser humano ..vc foi mto humano e preocupado em saber sobre a história do Seu Francisco ..Que qdo chegou era. Só mais um Mais com o cuidado que teve ..Descobriu que era uma pessoa com uma história.. Parabéns Deus abençoe pelo seu cuidado com as pessoas qdo chega nos ps da vida .. Parabéns Belo artigo Diego Continue com esse amor a medicina ..que hj está tão tecnológica…

Nina uehara
Nina uehara
2 dias atrás

Muito bom! Muito humano! Precisamos de mais inspirações assim pra reaquecer nossa sensibilidade adormecida!

Jaciane
Jaciane
1 dia atrás

Achei lindo o texto!
Nas UTIs percebemos o quanto as coisas simples são valiosas. Pentear os cabelos, escovar os próprios dentes, sentar numa poltrona, andar até o banheiro, se alimentar sozinho… São coisas que os pacientes sentem falta, a ausência da independência e da autonomia deixam os pacientes tristes. Posso citar sobre um plantão, há poucos meses atrás, uma paciente nos relatou que estava com vontade de comer batata em conserva. Ela estava em cuidados paliativos, com sonda nasoenteral e não poderia se alimentar via oral.
Infelizmente, em meio a correria do dia a dia, não nos damos conta do quanto é maravilhoso poder comer o que queremos, quando queremos, de poder ir ao mercado comprar alguns ingredientes e preparar nossas próprias refeições.
Desejo muito sucesso ao Dr Diego, sei o quanto ele é humano e o quanto se dedica aos pacientes.
Parabéns pelo excelente trabalho e pelo texto!

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