O pêndulo

junho 2, 2025
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8 min de leitura

Por Ana Coradazzi

“O pêndulo da mente oscila entre sentido e absurdo, não entre certo e errado.” (Carl Jung)

A palestra começou com uma fala supostamente comovida, seguida de uma pausa que sugeria a iminência de uma lágrima. O palestrante, médico famoso, homem de sorriso fácil e milhares de seguidores em suas redes sociais, falava sobre o impacto dos pacientes sobre ele mesmo, do quanto se emocionava ao ter contato com essas pessoas que lhe confiavam a vida com tanto carinho e fé. Citou uma história pessoal, comentou sobre uma cena que presenciou pouco antes, embargou sua voz. Uma fala bonita. Exceto pela sensação incômoda de que algo nela não parecia real. Havia ali um descompasso, uma distopia até. Olhando com um pouco mais de cautela, parecia performance. E era. Numa sessão anterior, uma especialista em redes sociais para médicos falava animadamente sobre as técnicas para ganhar seguidores e convertê-los em “clientes”. Ela falava sobre o figurino, a iluminação, a dicção, os horários ideais para publicação de stories, as estratégias de engajamento. Falava sobre convencer as pessoas de que realmente nos importamos com elas, e sobre como vídeos emocionantes podem ajudar a impactá-las. Analisava em tempo real as redes sociais de médicos da plateia, dando dicas para performarem melhor. Ah, sim, em algum momento mencionou que era importante ter um bom conteúdo técnico. Ou será que nem mencionou?

Nossos tempos atuais têm sido assim: profissionais performáticos em busca de reconhecimento, fama e, claro, retorno financeiro. Há performances tão bem-feitas que deveriam ser merecedoras de prêmios (da área de marketing, não necessariamente da área médica, que fique claro). Em algum momento do nosso passado recente, a Medicina foi finalmente assumida como uma transação comercial e, portanto, exposta às leis do mercado. Nossa atividade hoje é passível de ser negociada com estratégias de marketing: identificar o público-alvo, compreender o que engaja esse público, e adotar estratégias que o convençam a adquirir seu produto (uma consulta, um procedimento, um curso, o que seja). E, para surpresa de ninguém, “perdemos a mão” no caminho. Porque não é errado divulgar nosso trabalho, permitir que as pessoas conheçam nosso perfil, nossas ideias, nossa ética profissional. O erro está em afastar-se de si mesmo para adequar-se ao que o mercado exige, e que às vezes (sempre?) está tão distante do que acreditamos quanto o Polo Sul e o Polo Norte. É assim que assistimos, meio zonzos e perplexos, a profissionais da saúde agindo como apresentadores de TV, como estrelas de cinema (leia-se: atuando). Nós os vemos fingindo que se emocionam, fingindo que dedicam todas as horas dos seus dias aos interesses dos pacientes, fingindo que são experts em assuntos que mal conhecem, fingindo que são excelentes profissionais. Seu conteúdo é, muitas vezes, medíocre, se não for mentiroso. Para o mercado, a regra é clara: não é necessário ser bom, o que vende é parecer que é.

Eu, aqui de dentro da caverna onde às vezes tenho me escondido (por vergonha alheia), penso que isso é triste. Eu entendo os motivos, compreendo os caminhos que têm nos impelido a esses tempos estranhos, mas ainda acho profundamente triste. A tristeza vem da falta de profundidade disso tudo. Do desprezo pela beleza que é o cuidado, a relação com as pessoas, a sobriedade na tomada de decisões, a honestidade entre o profissional e o paciente. A Medicina como uma profissão extraordinariamente humana tem dado espaço a uma atividade pautada pela performance, onde o valor do profissional é definido por sua capacidade midiática. A tristeza vem de pensar que o marketing não cuida das pessoas. O que cuida das pessoas são outras pessoas. O alívio é promovido por conhecimento científico impecável, pelo olhar empático e pelo respeito à necessidade do outro. O reconhecimento público deveria ser consequência direta disso, e não a meta profissional. Sucumbimos ao mercado, e faz tempo.

Certa vez o finado Steve Jobs declarou que as pessoas não sabem o que querem até mostrarmos a elas. Gênio do marketing (entre outras coisas) que era, Jobs não poderia estar mais certo. A questão, na Medicina de hoje, é que nós mesmos não sabemos o que as pessoas querem. Mal sabemos do que elas precisam. Nosso olhar voltado para a imagem que desejamos ter perante o mundo vem apagando nossa capacidade de acessar as necessidades de quem cuidamos. A sensação é de que os valores estão invertidos: criamos necessidades que não existem para vender tratamentos/procedimentos desnecessários. Mas, e as necessidades que efetivamente existem? Quem vai cuidar delas? Se temos médicos mais preocupados em parecerem bons do que em serem bons? Se temos uma estrutura social toda montada para a ilusão? Se o sofrimento humano real tem sido escancaradamente varrido para debaixo do tapete, porque não dá audiência?

Aqui cabe um suspiro. Ou muitos. Um suspiro de cansaço, talvez um pouco nostálgico. É bastante claro que, na história da Humanidade, tendemos a funcionar como um pêndulo: ora exageramos para um lado, ora para o outro. Migramos do bizarro ao sensato, e voltamos ao bizarro (quem não se lembra de já ter achado normal assistir algo como a Banheira do Gugu num domingo à tarde, com a família toda?). Muito do que achamos absurdo e inadmissível hoje já foi natural e aceitável um dia. Já estivemos num lugar, dentro da saúde, onde os profissionais se comportavam como se estivessem numa missão religiosa, cultivavam uma humildade quase tóxica, não tinham vida própria em nome de cuidar do outro. Um lugar impossível de ser sustentado. Também já visitamos um lugar de arrogância extrema, no qual pacientes eram tratados como um transtorno necessário, com os médicos na posição de deuses infalíveis. Já fomos ignorantes, num tempo em que a ciência mal existia e tudo o que médicos podiam fazer era usar sua criatividade e curiosidade para tentar promover algum alívio (fizemos barbaridades nessa época…). Hoje o pêndulo está num lugar inédito: o de profissionais cujas preocupações não precisam ter algo que ver com as necessidades humanas, e onde o foco é o reconhecimento (pelo público e/ou na conta bancária) por si só, independentemente de ter contribuído para a saúde de alguém. Para mim, um lugar bizarro, inaceitável. 

Minha esperança está na história: sempre retornamos o pêndulo a uma posição de algum equilíbrio (antes de impulsioná-lo para outro extremo novamente). Nossa evolução se dá assim: do esdrúxulo ao sensato, e de volta ao esdrúxulo. O problema são as vítimas que deixamos pelo caminho. Sim, porque há vítimas. Uma multidão que segue, curte, aplaude, interage, se diz fã. Muitos porque não têm ideia da realidade por trás disso, nem imaginam os muitos ganhos que o reconhecimento midiático promove aos profissionais que dela se beneficiam. Muitos acreditam que “É verdade esse bilete”. Crenças assim, imagino, vêm de necessidades mal atendidas e/ou de expectativas irreais. Gente que já se sentiu tão desrespeitada quando precisou de cuidados médicos que se encanta com a possibilidade de um médico tão agradável, simpático e que diz coisas bonitas no Instagram. Talvez a programação televisiva dominical estivesse tão ruim que só nos restava achar que a Banheira do Gugu era legal.

Eu, aqui da caverna, assisto. Vejo os aplausos inflamados, a aclamação das performances, os olhares empolgados, embebidos de esperança com tantas promessas que estão longe da realidade. Um espetáculo que não tem como se sustentar. Porque as pessoas, quando sofrem, não encontram alívio na mídia, no discurso emocionado, nos eventos coloridos e festivos que impulsionam tudo isso. O cuidado não precisa de mídia. Alimento a esperança de que encontraremos um caminho do meio, em que sejamos capazes de divulgar o que fazemos sem precisar de maquiagem, de equipes de audiovisual e de discursos vazios. Um caminho que contribua de fato para a saúde das pessoas e, também, para a nossa saúde (porque temos adoecido com toda essa loucura mercadológica). Eu sei, o pêndulo não vai parar. Depois do bom senso sempre vem a loucura. Mas que pelo menos a loucura de hoje não perdure por um tempo prolongado a ponto de não conseguirmos mais enxergar o caminho de volta.

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Antonio Angelo Rocha
Antonio Angelo Rocha
1 dia atrás

Maravilho texto Dra Ana Coradazzi. Compartilho exatamente das mesmas ideias e pensamento. Assim como voce, assisto e aguardo anciosamente o movimento do pêndulo. Até lá, vamos seguir firmes com propósito de continuar a exercer a medicina como ARTE. Gratidão.
Dr Antonio Angelo Rocha

Liliani Cardoso
Liliani Cardoso
1 dia atrás

Não sou médica, sou paciente me curei de um câncer do endometrio e estou tratando um câncer de mama. Admiro imensamente a postura e opiniões da Dra. Ana, adoraria ser paciente dela mas moro em São Paulo. Parabéns Dra. Ana Coradazzi pelos livros maravilhosos, li muitos, e por esse texto incrível. Minha admiração é respeito. Um forte abraço

Alessandra Budin Martins
Alessandra Budin Martins
1 dia atrás

Parabéns Ana! Reflexão muito pertinente! Saudades de você, e de pessoas que pensem assim!

Sabrina Chagas
Sabrina Chagas
1 dia atrás

Sempre cirurgica!
Que sorte a minha ter você como amiga!
Sempre conectadas!

Terry Medeiros
Terry Medeiros
1 dia atrás

Ana,

Que olhar preciso sobre a angústia do momento. A Medicina agoniza em amplo sentido. Começo a me achar um bicho estranho e acanhado neste cenário que você tão bem pontuou.
Quando o paciente deixou de ser PACIENTE e virou CLIENTE, a MEDICINA deixou de ser uma ARTE extraordinariamente humana e virou COMÉRCIO.

Obrigada por suas lucidas reflexões!

Última edição 1 dia atrás por Terry Medeiros
Nila Nascimento
Nila Nascimento
1 dia atrás

Mais uma vez se superou hein amiga do meu coração 🥰

Giselia Alves
Giselia Alves
1 minuto atrás

Texto excelente.

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