A alta hospitalar sem pressa: Slow Geriatrics

julho 7, 2021
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Por José Renato Amaral

“A rapidez, que é uma virtude, gera um vício, que é a pressa.”

Gregório Marañón

Os pacientes idosos, quando acometidos por qualquer enfermidade aguda que requeira internação hospitalar, frequentemente sofrem declínio em sua funcionalidade, de difícil (quando possível) recuperação. Por outro lado, a pressão por otimização dos custos de saúde não raramente resulta em internações que não contemplam esse desfecho, e que se encerram em altas hospitalares “apressadas”, considerando-se resolvido o caso assim que a condição que gerou a internação deixa de exigir cuidado hospitalar.

Infelizmente, as necessidades dos idosos frequentemente caem entre os dois modelos, com o indivíduo não estando doente o suficiente para justificar a internação hospitalar, porém muito incapacitado ou frágil para ficar em casa. Essa conclusão não é exatamente uma novidade, aparece em um artigo intitulado “O idoso na comunidade”, de 1951, escrito por ninguém menos que a inglesa Marjory Warren (1897-1960), a mãe da moderna Geriatria (ter uma mãe é um dos atributos que tornam a Geriatria especial; as outras áreas costumam ter muitos pais e nenhuma mãe, e mãe é uma coisa muito boa de se ter). É interessante, embora triste, que uma das preocupações que levou Warren a lutar pela distinção nos cuidados entre adultos e idosos (ou seja, virtualmente a criação da Geriatria) ainda nos deva atormentar setenta anos depois de ser publicada.

Embora os chamados cuidados de transição, definidos pela American Geriatrics Society como “um conjunto de ações destinadas a assegurar a coordenação e a continuidade dos cuidados de saúde enquanto os pacientes são transferidos entre diferentes níveis de atenção, podendo estes ocorrer dentro ou não do mesmo local” já sejam uma realidade em diversos países, no Brasil sua implementação acompanha a heterogeneidade da qualidade e do acesso aos serviços de saúde: em bons planos de saúde suplementar, existe, no SUS tende a ser bissexta. O que nos dá uma constante sensação de enxugamento de gelo, pois, no fim das contas, de pouco adianta a equipe nutrir um paciente, tratar a doença que o aflige, iniciar a reabilitação e adequar o tratamento das comorbidades se, após a alta hospitalar, mal se sabe quando será possível a reavaliação em ambulatório.

A sensação de ineficiência aumenta ao constatarmos que muitas situações que geram internações são precisamente o efeito de uma assistência (profissional ou mesmo familiar) extra-hospitalar insuficiente, perpetuando assim o ciclo. E a situação não é apanágio do serviço público: eu trabalho em um pronto-socorro de um hospital privado de São Paulo, onde, como em tantos outros serviços similares, podemos distinguir um grupo de pacientes idosos que nos procuram com uma frequência bem maior que a necessária caso contassem, de fato, com uma assistência ambulatorial ou domiciliar à altura de sua complexidade

Outro aspecto interessante é a disparidade crescente entre os cuidados hospitalares e a realidade após a alta. O idoso, tão logo admitido no pronto-socorro, é avaliado e tem seus riscos devidamente identificados, ganha pulseiras que o identificam como suscetível a quedas, delirium, alergias ou outras mazelas; é como se estivesse em um resort, só que ao contrário, pois cada pulseira identifica um risco (e a respectiva restrição que lhe assegura a prevenção), e não um benefício. Ora, no momento da alta as pulseiras vão-se embora, sem que os tais riscos necessariamente as acompanhem, afinal são muito mais inerentes ao sujeito que à situação. À família resta resignar-se que “será melhor assim”. É curioso que o indivíduo que mal podia levantar-se da cama desacompanhado ou usar a toalete sem alguém à sua espera, sob pena de repreensão (ou de alguns miligramas de algo que o acalme) possa, de repente, reassumir a vida que até então lhe fora habitual. 

Minha impressão é que os hospitais estão (como tudo na vida contemporânea) extremamente protocolares, por mais boa vontade e equipes de humanização que houver, até porque estas também são essencialmente protocolares. Cada vez mais os pacientes se relacionam com os profissionais através de protocolos institucionais, como os passageiros se relacionam com a tripulação de um avião. Na verdade, para o bem e para o mal nossa vida virou isso, basta solicitar algo a um banco ou adquirir um serviço qualquer para conferir que, como num avião, as falas são previsíveis. Evidentemente, há muito mais ganhos do que perdas na padronização do atendimento hospitalar – é muito melhor que o atendimento seja efetuado do modo mais correto que do “meu jeito”, seja lá qual for, pois a segurança do paciente é primordial (assim como no avião). Mas há perdas sim, como a perda da sensibilidade para as particularidades de cada caso e um certo descompromisso com o que houver fora do hospital, afinal os desfechos que a equipe precisa garantir são majoritariamente intra-hospitalares. Fora do hospital, na vida sem protocolos assistenciais, se o paciente não puder contar com um cuidado de transição adequado, resta contar com a boa vontade de quem lhe presta assistência e um tanto de sorte.

Enquanto Marjory Warren propunha a inclusão da Geriatria no NHS, o sistema nacional de saúde do Reino Unido (implementado em 1948), nosso país não dispunha sequer de uma estrutura assistencial que lhe fosse minimamente assemelhada (somente em 1953 foi criado um ministério exclusivo para a saúde). Na verdade, tínhamos alguma assistência para trabalhadores e à saúde materno-infantil. A saúde do adulto, no Brasil, iniciou-se com essas duas vertentes, trabalhadores e gestantes, a atenção a doenças crônicas e à população idosa é muito mais recente e está longe de ser satisfatoriamente estruturada no SUS, criado quarenta anos depois do NHS, que foi um de seus principais modelos. Na rede privada ou de saúde suplementar, a preocupação com os cuidados de transição engatinha, mas vem ganhando força muito em função dos custos desenfreados, e cada vez mais pressionados com o envelhecimento da população. Tomara que os próximos passos da assistência hospitalar ao idoso contemplem a humanização para além de sorrisos uniformizados e mais zelo com os cuidados após a alta, assim mamãe fica orgulhosa! 

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José Renato Amaral: sou geriatra,  graduado pela Faculdade de Medicina da USP, onde fiz minha residência. Sou assistente do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas da FMUSP desde 2003. Embora paulistano, sempre sonhei em ser médico e morar numa chácara, no interior, mas deu nisso. Acredito nos fundamentos do movimento Slow Medicine como princípios para a boa prática médica contemporânea, tanto no interesse de cada indivíduo/paciente, como para a sociedade como um todo.

2 Comentários

  1. Excelente texto!!!! Cabe a nós geriatras lutarmos pela melhoria dos cuidados de transição.

  2. Tão lúcido e verdadeiro este depoimento.
    Como a transição do cuidado é ainda uma prática distante na nossa assistência à saúde.
    E na população de idosos mais ainda.
    Os Protocolos Intra- hospitalares são necessários, e vieram para ficar. Mas todo o cuidado se perde se uma “linha de cuidado”, para a condição que gerou a internação, não existir fora do hospital. Em especial para o idoso.

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