Uma outra ciência é possível!

abril 2, 2024
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Por André Islabão:

“Não há lugar para a sabedoria onde não há paciência.”

Santo Agostinho

O título nos remete direto àquele mote que ficou famoso desde a primeira edição do Fórum Social Mundial em Porto Alegre no já distante ano de 2001. Naquela época, ouvia-se em todos os cantos a ideia de que “Um outro mundo é possível”, e a cidade se encheu de gente de etnias e culturas diferentes, todas elas com essa mesma ideia de mudar o mundo para melhor. Não é coincidência que o movimento acontecia paralelamente ao Fórum Econômico Mundial de Davos, como uma espécie de contraponto humanizante ou como um grito daqueles que se sentiam excluídos por essa visão de desenvolvimento que coloca os aspectos econômicos à frente das questões sociais e existenciais, como se a própria razão de existir da ciência econômica não fosse a melhora das condições de vida das pessoas. Da mesma forma que ocorre com a economia, é evidente que a razão de existir de todas as ciências é melhorar a vida das pessoas. E, se um outro mundo é realmente possível, então é claro que uma outra ciência é possível!

Em seu belo livro que acaba de ser lançado no Brasil com o título de “Uma outra ciência é possível – Manifesto por uma desaceleração das ciências“, a filósofa belga Isabelle Stengers oferece uma reflexão interessantíssima sobre a necessidade de desacelerar a ciência, algo que já foi abordado aqui mesmo na Slow Medicine Brasil[1] e está em plena concordância com essa visão mais humana de mundo que permeia o movimento Slow em todas as suas vertentes. Antes de mais nada, é preciso reconhecer que Stengers é uma das mais importantes pensadoras da atualidade na área de filosofia da ciência, tendo entre os admiradores de suas ideias gente do calibre de Edgar Morin (o pensamento complexo) e Ilya Prigogine (as leis do caos). Além disso, é fundamental a nossa compreensão de que desacelerar ou reduzir a velocidade de uma empreitada como a ciência não significa de forma alguma reduzir sua importância nem muito menos seu tamanho efetivo. Muito mais que isso, desacelerar significa oferecer tempo para uma reflexão adequada, reduzir o desperdício de recursos e aumentar os benefícios para a sociedade. E, para isso, algumas ideias trazidas por Stengers no livro são fundamentais.

Isabelle Stengers

Uma ciência democrática

A reconciliação do público com a ciência é uma das primeiras ideias trazidas por Stengers. Isso significa tornar a ciência menos hermética e reconhecer que as pessoas comuns também podem ter condições de compreender a lógica do pensamento científico e, principalmente, de contribuir com uma visão distinta e não menos importante para os problemas que a ciência tenta resolver. Um exemplo citado pela autora é o dos transgênicos: enquanto os cientistas estudavam em laboratório os possíveis efeitos da manipulação genética desses organismos em escala microscópica, a população tinha interesse em saber quais seriam os efeitos dessa nova tecnologia quando os organismos transgênicos deixassem o ambiente controlado dos laboratórios e fossem amplamente integrados à natureza. E isso pode incluir não apenas seus efeitos diretos sobre a saúde do homem, mas também o impacto ambiental de uma mudança na qualidade e quantidade dos agrotóxicos usados, os efeitos econômicos do uso de sementes protegidas por patentes e os efeitos nocivos diretos sobre os insetos e outros animais. É evidente que esse tipo de questionamento do público nunca interessou a uma indústria que visava lucrar o máximo e o quanto antes, da mesma forma que podia ser desconfortável para algumas visões políticas mais autoritárias e para a própria empreitada científica por aumentar sua necessidade de rigor, honestidade e transparência.

Uma ciência situada por outros saberes

Em que pese toda a importância dada à ciência atualmente, a verdade é que ela é apenas uma dentre várias formas de se obter conhecimentos que possam ser úteis à humanidade. Para Stengers, a ciência precisa ser situada em relação a outros saberes que respondem a outros tipos de perguntas. A ciência, de forma isolada, não pode resolver todos os nossos problemas. Precisamos de um tanto de sabedoria para colocá-la em prática e talvez mais ainda para saber quando ela é perfeitamente prescindível. Para isso existem outros saberes que podem não ser “científicos”, mas são de suma importância para a humanidade, como as grandes questões existenciais ou metafísicas, a espiritualidade ou religiosidade ou mesmo as tendências políticas de cada época e lugar. Saber se um determinado medicamento é eficaz em determinada situação clínica é algo que precisa ser definido pelo método científico. Porém, prever seus efeitos mais amplos na sociedade após sua eventual aprovação é algo que requer muito mais do que ciência, e é aí que outros tipos de conhecimento e a sabedoria entram em cena.

Uma ciência responsável

Para Stengers, os pesquisadores são diretamente responsáveis pelo conhecimento que produzem e pelas consequências de suas descobertas para a sociedade no ambiente “bagunçado” da vida real. A fim de ilustrar de forma enfática essa ideia, a autora compara o avanço da fast-science atual com o avanço de um exército que dizima as cidades por onde passa. O problema, para a autora, é que muitos cientistas perderam a capacidade de pensar por si próprios e, dessa forma, nem mesmo estariam à altura de toda a confiança que a sociedade deposita neles. Stengers chega até mesmo a utilizar-se de uma expressão cunhada por Virginia Woolf e descreve o comportamento desses cientistas como uma forma de “prostituição intelectual” ou como “a docilidade daqueles que, sem serem obrigados como o são os assalariados, aceitam pensar e trabalhar onde e como lhes mandam”. Isso é bastante fácil de perceber em um mundo onde cada vez mais a ciência é patrocinada e comandada pelo poder econômico da indústria.

Uma ciência acima dos interesses econômicos

A autora faz uma crítica ferrenha do que chama de “economia do conhecimento”, essa indústria criada em torno da fast science e que visa produzir o máximo de conhecimento no menor prazo possível, mesmo que tal conhecimento seja de pouca valia ou até mesmo prejudicial para a sociedade. Para Stengers, a ética do “publicar ou perecer” que tomou conta do meio acadêmico estaria destruindo a academia – definida por ela a certa altura, como uma instituição moribunda – e a própria ciência. O tipo de conhecimento produzido por essa forma de estimulação artificial da produção científica deixa de beneficiar a sociedade e só interessaria à indústria que financia os estudos em busca do máximo de lucro e ao próprio establishment científico em busca da perpetuação de suas fontes de financiamento, por mais inadequadas que sejam.

Uma ciência sem pressa

Para Stengers, desacelerar a ciência pode ser a única maneira de resolver vários dos problemas atuais e voltar a fazer uma ciência séria e comprometida com as necessidades da sociedade. Além disso, em uma ciência sem pressa os cientistas voltariam a merecer a confiança que boa parte da população ainda deposita – até certo ponto de maneira indevida – neles. Para a autora, apesar de a ciência ter tanto poder atualmente, os cientistas nunca estiveram tão vulneráveis às leis impiedosas do mercado da ciência, onde eles não passariam de meras ferramentas. Desacelerar a ciência é permitir que os cientistas possam refletir sobre suas pesquisas e as consequências delas, garantir que cada pesquisa realizada tenha como meta trazer benefícios reais para a sociedade em vez de meramente aumentar os lucros da indústria e possibilitar que aqueles que analisam a ciência e dela se servem para exercer suas atividades – como nós, médicos – possam fazê-lo sem a sensação de estar sendo atropelados diariamente por uma quantidade infindável de estudos que nada acrescentam além de ansiedade e vã esperança para médicos e pacientes.

Stengers cita no livro o belo trecho final do “Slow Science Manifesto” (Manifesto da Ciência Sem Pressa), disponível na internet[2], e no qual o tempo, tão caro a nós todos da Slow Medicine, é merecidamente reverenciado:

“Precisamos de tempo para pensar. Precisamos de tempo para digerir [a ciência]. Precisamos de tempo para nos desentendermos uns dos outros, especialmente quando estivermos cultivando o diálogo perdido entre as humanidades e as ciências naturais. Não podemos seguir dizendo a vocês o que nossa ciência significa, o que ela traz de bom, simplesmente porque ainda não sabemos. A ciência precisa de tempo.

            – Tenham paciência conosco enquanto pensamos.”


[1] https://www.slowmedicine.com.br/por-uma-ciencia-medica-sem-pressa/

[2] https://www.perform-research.eu/wp-content/uploads/2016/07/SLOW-SCIENCE.org-%E2%80%94-Bear-with-us-while-we-think..pdf

André Islabão é médico internista formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com três anos de residência em Clínica Médica pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Depois de vários anos dedicado ao atendimento de pacientes hospitalizados, decidiu reduzir o ritmo e concentrar-se no atendimento ambulatorial, domiciliar e em consultório próprio. 

O tempo disponibilizado possibilitou que se dedicasse a outras atividades igualmente importantes, como a vida em família, a música, a tradução de livros médicos, o estudo de saberes diversos e o acompanhamento de pessoas em clínicas geriátricas, onde realiza um trabalho informal de musicoterapia tocando piano regularmente e levando um pouco de alegria aos moradores idosos. 

Para Islabão, a medicina é tanto arte quanto ciência. A fim de humanizá-la e de reduzir alguns excessos, acredita na filosofia Slow, em uma relação médico-paciente longeva, na transdisciplinaridade do conhecimento e na análise crítica da ciência. Seu novo ritmo de vida ainda lhe possibilita compartilhar ideias próprias em seu blog (www.andreislabao.com.br) e na publicação de dois livros: Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro e O risco de cair é voar – mors certa hora incerta

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