Um mundo cinza 

outubro 3, 2023
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Por José Carlos Campos Velho:

“É melhor abrir para ventilar 
Esse corredor” 

Marisa Monte 

Natalia Pasternak, co-autora do livro “Que bobagem! ganhou grande destaque na mídia por ocasião da Pandemia pelo Novo Coronavírus, quando foi uma voz contundente na defesa da ciência e  no combate ao obscurantismo e ao negacionismo que vicejava na época. Dona de um extenso currículo acadêmico, fundadora do excelente Instituto Questão de Ciência, vem prestando um grande serviço ao país no que tange à divulgação científica. Seu companheiro, Carlos Orsi, jornalista, escritor consagrado pelo prêmio Jabuti e experiente divulgador científico, divide com ela a publicação da obra. 

Trata-se de um livro importante nestes tempos em que a informação é tão abundante e, paradoxalmente, as pessoas cada vez estão mais mal-informadas. O advento das redes sociais e dos aplicativos de mensagens tornou a velocidade da informação muito mais rápida do que jamais  podíamos imaginar. Porém, a qualidade da informação é discutível. Portanto, um livro que proponha um olhar científico para inúmeras práticas, cujo suporte teórico é muito frágil, chega em um bom momento. 

E então são elencadas várias atividades ou saberes, chamadas pelos autores de pseudociências. Ali estão escrutinadas a astrologia, a acupuntura, a psicanálise, ufologia, curas quânticas, constelações familiares, auto-ajuda,… ou seja, uma salada de frutas – uma mistura de alhos com bugalhos

“Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.”

Clarice Lispector.

O tom do livro não é delicado. Também não é consciencioso ou ponderado. Na maior parte do livro, no afã de tornar suas ideias preponderantes, os autores esbanjam de ironia e agressividade. Na voz dos autores a ciência é tratada de uma forma arrogante, quase totalitária, elevando-se a  um patamar superior à qualquer outra forma de conhecimento ou saber. A ciência perde uma virtude que lhe é característica – a humildade.  “Outros saberes” são tratados de uma forma desrespeitosa e sarcástica, de maneira que a possibilidade da existência de uma sabedoria que não se submeta aos cânones do conhecimento científico e tenha outro olhar para o mundo,  é considerado ”pseudociência” – “uma bobagem”. Creio importante salientar que o olhar que os autores tem da ciência é trespassado por sua visão pessoal. A rigidez e a soberba não deveriam fazer parte da ciência. Provavelmente a flexibilidade e a humildade lhe cairiam melhor. 

Uma questão interessante. No primeiro capítulo do livro, os autores explicam uma série de conceitos que serão abordados ao longo do livro. Um deles é o viés de confirmação, que é também conhecido como coleta seletiva de evidências. “Viés de confirmação, também chamado de  viés confirmatório ou de tendência de confirmação, é a tendência de se lembrar, interpretar ou pesquisar por informações de maneira a confirmar crenças ou hipóteses iniciais. Também se aplica quando se concorda com uma frase usada anteriormente mas reapresentada com uma nova roupagem, gerando um tipo de viés cognitivo e um erro de raciocínio indutivo. As pessoas demonstram esse viés quando reúnem ou se lembram de informações de forma seletiva, ou quando as interpretam de forma tendenciosa. Tal efeito é mais forte em questões de forte carga emocional e em crenças profundamente arraigadas.” Paradoxalmente, algo muito presente no livro é o próprio viés de confirmação – quase todas as referências e citações dão embasamento aos pontos de vista defendidos pelos autores. E a ciência, dentro da perspectiva da obra, é erguida à altura de uma crença – uma espécie de Positivismo atualizado.

De erro em erro, vai-se descobrindo toda a verdade.

Sigmund Freud.

Os capítulos, no geral, tem ideias consistentes e são embasados em extensa bibliografia (talvez até demasiado extensa, como se houvesse uma permanente necessidade de demonstração de erudição), pois se trata de profissionais respeitados na área de divulgação científica. Mas em alguns momentos, como ao falar da Psicanálise, o tom de desrespeito e escárnio se acentua. Inicialmente, ao colocar na mesma cesta psicanálise, astrologia, ufologia, paranormalidade, dietas milagrosas, existe uma evidente manifestação de má-fé. Colocar Freud como uma fraude é um desserviço prestado à coletividade e uma agressão à história e à cultura. A comparação da Psicanálise com as Terapias Cognitivo-Comportamentais – TCC – pouco cabe. Enquanto a psicanálise busca a compreensão da estrutura psíquica do sujeito, em um processo permanente de construção e reconstrução do ambiente psíquico por meio de técnicas frequentemente individualizadas, através da interação entre terapeuta e paciente, a TCC de certa maneira empobrece o indivíduo, tentando entender comportamentos e pensamentos, definí-los como certos ou errados, inadequados ou não, buscando a “cura” através de técnicas de treinamento, tabelas  e planilhas. Nem todos se adaptam à esta abordagem, muito apreciada por aqueles que só acreditam “em evidências” – pois se trata de fenômenos mensuráveis . Uma rápida revisão da Iniciativa Cochrane sobre as TCC, mostram efeito apenas modesto em algumas situações clínicas. A pseudociência que divide o capítulo com a psicanálise são as “constelações familiares”. Não parece ser uma coincidência, mas intencionalmente macular a mais que centenária psicanálise comparando-a com uma técnica recente e controversa, cuja identidade com a psicanálise é praticamente inexistente. A Psicanálise é colocada na mesma dimensão de discos voadores. Freud é apontado como um impostor. É a (pseudo) ciência dando voz ao discurso de ódio. 

Ao autores abusam de sofismas: dizem que as constelações familiares fazem parte das PICs – (Práticas Integrativas e Complementares do SUS) – e a informação é correta  – porém algo importante não foi citado: a ampliação das PICs, abrangendo as Constelações  Familiares, Reiki – que é uma prática espiritual e não terapêutica, e portanto obedece à uma dinâmica diferente – e várias outras, ocorreu no apagar das luzes da gestão do Deputado Ricardo Barros frente ao Ministério da Saúde, em uma manobra francamente eleitoreira. Anteriormente, as PICs abrangiam a Homeopatia, a Medicina Antroposófica, a Acupuntura/Medicina Tradicional Chinesa, a Fitoterapia e o Termalismo. A discussão sobre estas questões deveria tomar outra complexidade, no que tange ao seu financiamento público, aos pontos de vista dos usuários, dos trabalhadores e gestores da saúde. O que testemunhamos foi um decreto que abriu as portas para uma miríade de práticas, várias realmente questionáveis, como a ozonioterapia, recente objeto de polêmica após a sanção de uma lei que regulamenta sua prática . Em relação à Homeopatia, cujas evidências científicas relativas aos medicamentos homeopáticos são realmente muito pobres, ela é reconhecida como especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina desde 1980, quando a Medicina Baseada em Evidências ainda engatinhava. Posicionamento recente do CFM mantém a Homeopatia como especialidade médica. Embora isso não signifique que hajam evidências que dêem suporte à esta especialidade, um olhar mais cuidadoso permite que se observe que alguns aspectos da homeopatia são caros à prática médica, como a escuta e a menor frequência de intervenções. Um dos grandes problemas na medicina contemporânea são o sobrediagnóstico, o sobretratamento e a polifarmácia – assuntos sobre os quais os autores praticamente não se atém. Da mesma maneira, o livro somente tangencia a relação promíscua da ciência (pelo menos daquela que prepondera na medicina contemporânea) com o complexo médico-industrial.

O sábio não tem conceitos inflexíveis. Adapta-se aos dos outros.

Lao Tsé

A acupuntura, ou, de forma mais adequada, a Medicina Tradicional Chinesa e outras tantas Medicinas Tradicionais, como a Tibetana, Japonesa, Ayurveda, a Medicina Árabe – Unani, a Medicina Tradicional Indígena brasileira, são “sistemas de cura” reconhecidos pela OMS como práticas de cuidado, profundamente enraizadas na cultura, na história, nos valores e na cosmogonia dos povos de onde surgiram. Estas práticas frequentemente são a única alternativa de cuidado que a população dispõe. Tratá-las com absoluta desconsideração, onde as palavras “ancestral” ou “milenar” são sempre vistas de maneira jocosa, pois a ancestralidade não determinaria eficácia, revela pobreza intelectual. Estas formas de praticar a medicina detém uma enorme riqueza histórica e  revelam as maneiras como estes povos lidaram com o sofrimento humano ao longo de milênios. 

A palavra cura, citada inúmeras vezes pelos autores, evidencia que os mesmos carecem de algo fundamental para que possam ampliar seu olhar para o binômio saúde-doença. Um é jornalista, outra é microbiologista: lhes falta o olhar e a prática clínica. Qualquer médico, bem-intencionado, que paute sua prática pelas evidências científicas, o faz de forma relativa. A medicina é fragmentária – ela se vale da ciência, mas a ciência não a contém. Quando o médico se defronta com um outro ser humano à sua frente, são dois universos que se abrem buscando compreender-se, com valores, expectativas e desejos por vezes não confluentes. A cura é pouco frequente na medicina contemporânea, exceto em algumas doenças infecciosas ou outros quadros mais agudos. Na maior parte do tempo, os médicos estarão lidando com doenças crônicas, onde vale a frase já tanto repetida: “Curar algumas vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre”. E nem o alívio, nem o consolo, são baseados em evidências e podem ser mensurados em fórmulas, gráficos ou tabelas. A MBE é uma ferramenta poderosa disponível para as profissões da área da saúde, mas é de uma miopia atroz acreditar que ela é suficiente para preencher a vastidão da prática clínica. A acupuntura, em várias revisões da Biblioteca Cochrane tem resultados “negativos”. Mas, se lermos com um pouco mais de atenção e isenção, veremos que, em diversas condições clínicas, particularmente relacionadas à dor, o relato de melhora obtido através da acupuntura , se comparada com placebo ou acupuntura sham, é real . Sim, certamente os trabalhos carecem de qualidade metodológica (por enquanto), mas existe um esforço evidente de melhorar a qualidade das publicações (algo relativamente novo para a MTC) .  

Por outro lado, se observarmos publicações em revistas médicas de referência de poucas décadas atrás, veremos quantas drogas ou intervenções utilizadas universalmente  mostraram-se ineficazes ou mesmo perigosas. Uma droga, por exemplo, a Nimodipina, foi usada extensivamente em Neurologia e hoje seu uso praticamente inexiste. Outra droga foi a Pentoxifilina, largamente utilizada em múltiplas afecções clínicas, particularmente relacionadas ao sistema cardiovascular por sua ação “hemorreológica” e hoje praticamente em desuso. Sem falar de drogas como Rofecoxib (Vioxx®), Rosiglitazona (Avandia®), Cerivastatina (Lipobay®) que, lançados no mercado com uma “sólida base científica”, foram descontinuados posteriormente por aumentarem seriamente o risco de adoecimento e morte. A ciência, nestes casos, não se prestou à melhoria da atenção à saúde das pessoas, mas sim às necessidades comerciais dos laboratórios, que frequentemente eram refratários à retirada dos produtos do mercado. 

E o que isso tem a ver com Slow Medicine? Sempre afirmamos – e continuamos a afirmar – que o horizonte teórico da Medicina sem Pressa é a Medicina Baseada em Evidências. Mas a Slow Medicine caracteriza-se por ser inclusiva e flexível. Como é a vida. Como são as pessoas. Uma medicina Respeitosa sabe que os valores, expectativas e desejos das pessoas são diferentes e invioláveis. O acolhimento, a comunicação honesta, cuidadosa e completa com os pacientes – e com outros profissionais, sejam eles da saúde ou de outras áreas, como também com os cidadãos – são alicerces da Slow Medicine. Ela propõe que as pessoas ajam com atenção, equilíbrio e educação. 

Frente a um mundo cinza, delineado por uma ciência que dele se afasta, escravizando-o, esta ciência que a ninguém pertence, mas à humanidade e à ela deve servir, a arte responde de uma maneira vibrante e colorida e saúda a vida e a diversidade. Felizmente a arte não precisa ser baseada em evidências. Certo, Marisa Monte? 

Portas 

Nesse corredor, portas ao redor 
Querem escolher, olha só 
Uma porta só, uma porta certa 
Uma porta só, tentam decidir a melhor 

Qual é a melhor? 
Não importa qual, não é tudo igual 
Mas todas dão em algum lugar 

E não tem que ser uma única 
Todas servem pra sair ou para entrar 
É melhor abrir para ventilar 
Esse corredor 

Portas Marisa Monte

José Carlos Aquino de Campos Velho é médico e editor do site Slow Medicine Brasil.

11 Comentários

  1. Adorei o texto. Perfeito! Reflete o que todos deveríamos ser: críticos sim, porém abertos a outros saberes com humildade buscando sempre novos conhecimentos.

  2. Caro, excelente aula!! Coincidentemente, comecei a ler este livro e não consegui ir até o final. Confesso não me lembrar de como cheguei a ele. Parabéns!!

  3. Maravilhosa reflexão. Penso da mesma forma, a medicina vai além da ciência. 

  4. Excelente a crítica do José Carlos Campos Velho. Alguns livros trazem desinformação à população. “Na voz dos autores a ciência é tratada de uma forma arrogante, quase totalitária, elevando-se a um patamar superior à qualquer outra forma de conhecimento ou saber. A ciência perde uma virtude que lhe é característica – a humildade.”

  5. Essa autora me lembra meus 25 – 30 anos de idade. Eu sabia tanta coisa…. tinha certeza de tudo. E, principalmente, tinha um orgulho enorme de ser melhor que as pessoas que eu atendia, tão primárias, tão crédulas, ingênuas.
    E eu com fome de mundo, cheio de viço, ungido com todo conhecimento da graduação, e iniciado nos estudos superiores da pós, me sentia superior exatamente pelas coisas em que eu acreditava, em oposição a toda essa gente.
    Agora fiquei velho. Vivi muito, cuidei de muita gente, passei por milhares de situações críticas, fiquei muito experiente e infelizmente tudo isso me fez mais estúpido e obscurantista.
    Ainda bem que existe gente como a Dra. Natália para me colocar no meu lugar: o de um velho que não sabe mais nada.

  6. Teu texto relata a mesma opinião que tenho sobre este polêmico livro.
    Grata por publicá-lo.
    Os autores do livro tiveram uma postura pedante e distante. Livro que pode até servir para cientistas, mas não para médicos.

  7. Excelente artigo.
    Em todos os sentidos.
    Te agradeço por colocar em palavras meu sentimento em relação ao que foi escrito neste polêmico livro. E escrito de forma bem distante ao ambiente clínico. À A léguas do paciente.

  8. Que texto lúcido. Agradeço a partilha da reflexão.

  9. Tocou no ponto principal. É muita soberba desdenhar de algo que não se conhece, pior, perder tempo destruindo. Lamentável. Parabéns pelo texto.

  10. Texto magistral. Parabéns!!!

  11. Parabéns pelo belo artigo. A digitalização da vida, demanda da financeirização, empobrece profundamente a experiência humana. A clínica médica é vida e a vida é analógica e a realidade é artesanal. 

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