Matando um leão por dia: a próxima quimera

agosto 8, 2023
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“Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!”

Augusto dos Anjos – Versos Íntimos

A humanidade acaba de enfrentar uma enorme tragédia, que provocou o adoecimento de milhões de pessoas no mundo, milhões de mortes, famílias destroçadas, um desafio para todos os países e para os serviços de saúde, tanto do ponto de vista humano, como do ponto de vista logístico: a pandemia pelo Novo Coronavírus, a COVID-19. Declarada Pandemia pela OMS em março de 2020, enfrentávamos uma doença até então desconhecida e sem tratamento específico, associada a uma baixa morbidade na maioria dos casos, mas que, em pessoas idosas ou portadoras de comorbidades como obesidade, hipertensão, pneumopatias ou doenças associadas ao comprometimento da imunidade (ou mesmo em pessoas sadias, por conta de alguma suscetibilidade individual) frequentemente evoluia para quadros muito graves, necessitando de hospitalização e suporte intensivo. Estes quadros graves cursavam com alta mortalidade.

O mundo parou frente à um vírus desconhecido, que provocava uma moléstia cujo tratamento era essencialmente sintomático. Aos poucos, foram surgindo atitudes terapêuticas voltadas para os quadros mais graves, como o uso de corticóide, em caso de comprometimento respiratório, a ventilação mecânica quando da necessidade de suporte invasivo, em particular com o decúbito em pronação, pouco habitual em situações clínicas usuais, a oxigenioterapia como uma medida quase salvadora, particularmente nos casos com comprometimento ventilatório moderado. Os cientistas trabalhavam incansavelmente em busca de alternativas que pudessem auxiliar no enfrentamento da Pandemia. Medidas coletivas como distanciamento social, a lavagem das mãos, o uso de máscaras e evitação de aglomerações foram aceitos como ferramentas capazes de reduzir a propagação do vírus. Foi então que a vacinação surgiu no horizonte como a medida (provavelmente) mais eficaz para a superação da doença, cuja disseminação no mundo alcançava níveis dramáticos.

Paralelamente a este panorama, dois fenômenos também cresciam de maneira virulenta: a Infodemia, definida pela Organização Mundial da Saúde como “…informação excessiva, incluindo informações falsas ou enganosas em ambientes digitais e físicos durante um surto de doença. A infodemia causa confusão e comportamentos de risco que podem prejudicar a saúde. Também leva à desconfiança nas autoridades de saúde e prejudica o trabalho de assistência pública à saúde. Uma infodemia pode intensificar ou prolongar surtos quando as pessoas não têm certeza sobre o que precisam fazer para proteger sua saúde e a saúde das pessoas ao seu redor. Com a crescente digitalização da vida cotidiana – uma expansão das mídias sociais e do uso da internet – as informações podem se espalhar mais rapidamente. Isso pode ajudar a preencher mais rapidamente os vazios de informação, mas também pode amplificar mensagens prejudiciais” . Por outro lado, a sugestão de utilização de múltiplas drogas, de eficácia desconhecida ou sabidamente ineficazes, passou a fazer parte do cotidiano da comunidade médica e científica e, pior, de maneira insensata, pelos políticos e a população em geral. O uso de tais drogas, das quais a Cloroquina foi o exemplo mais gritante (lembrando que o problema não é da substância, que tem indicações consagradas no tratamento da malária, da artrite reumatóide e do lupus eritematoso sistêmico – LES), devido a sua utilização inadequada, que naquele momento obedecia mais a critérios políticos, em um mundo demasiadamente polarizado, do que a critérios técnicos. O negacionismo tomava conta da mídia, dos discursos políticos e do imaginário popular. “O negacionismo vai além de um boato ou fake news pontual. É um sistema de crenças que, sistematicamente, nega o conhecimento objetivo, a crítica pertinente, as evidências empíricas, o argumento lógico, as premissas de um debate público racional, e tem uma rede organizada de desinformação. Essa atitude sistemática e articulada de negação para ocultar interesses político-ideológicos muitas vezes escusos(…)” , escreveu Luciana Rathsam, no portal da Unicamp. Portanto, a utilização política do sofrimento humano não é novidade e, ao contrário, continua trazendo em seu rastro proposições que ferem a ciência e as instituições que buscam, persistentemente, ferramentas  que promovam uma atenção à saúde que seja Sóbria, Respeitosa e Justa. Como propõe o Movimento Slow Medicine , cujo horizonte teórico é a Medicina Baseada em Evidências, interpretada de forma isenta, com bom senso e moderação.

A Pandemia pelo COVID-19 parece superada. A Vacinação mostrou-se como uma medida extremamente bem sucedida no enfrentamento da doença, estratégia que também padeceu de grande polarização e debates apaixonados, que felizmente foram confrontados com a firme defesa de sua eficácia pela Organização Mundial da Saúde e outras instituições sérias de saúde em todo o mundo. Movimentos antivacinas, teorias conspiratórias e negacionistas buscaram de todas as maneiras criticar desfavoravelmente a utilização das vacinas, felizmente sem sucesso. A humanidade respirou aliviada. A tragédia, embora tenha deixado profundas marcas, parece estar no passado, como ocorreu com outra grave pandemia, a gripe espanhola, no início do século XX.

Porém, no dia 8 de agosto de 2023, a sociedade brasileira é surpreendida pela sanção de uma lei, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, normatizando a prática da controversa Ozonioterapia no Brasil. A lei caiu como um balde de água fria nas cabeças das pessoas que alimentavam uma expectativa positiva do novo governo, em relação à sua postura frente à ciência e à comunidade científica. A ozonioterapia é conhecida desde o século XIX, quando o ozônio foi descoberto e passou a ser utilizado no tratamento de ferimentos causados pelas guerras nos soldados alemães. Desde então, vem sendo utilizada em vários lugares do mundo, particularmente desde a segunda metade do século XX, com inúmeras e surpreendentes indicações clínicas. Conforme o site da ABOZ, (curiosamente, um de seus presidentes anteriores, o Dr. Arnoldo de Souza, faleceu em decorrência de complicações causadas por infecção pela COVID 19) na seção OZONIZE-SE,  “a Ozonioterapia é indicada em condições clínicas cujas alterações no equilíbrio oxidativo-antioxidante endógeno desempenham um papel crucial, pois é um recurso terapêutico que modula o sistema antioxidante endógeno. Além disso, estudos demonstram que o ozônio medicinal tem capacidade de melhorar a oxigenação dos tecidos e ativar células imunocompetentes. Topicamente, apresenta atividade antimicrobiana de amplo espectro, podendo ser um recurso auxiliar nestas condições.  Sua aplicabilidade, portanto, é ampla e suas  indicações estão baseadas nestes mecanismo de ação moleculares.” Interpretando grosseiramente o enunciado, qualquer coisa pode ser tratada com Ozônio. Bem, a busca pela Panacéia Universal remonta aos alquimistas, que almejavam a descoberta de uma substância capaz de curar todos os males. A fantasia humana de um remédio que curasse tudo é um desejo ancestral, e continua presente nos devaneios das pessoas. E frequentemente, para a pessoa desavisada, ele existe. Não será a ozonioterapia uma candidata?

É interessante circular pelo mundo da ozonioterapia na internet. Existem duas sociedades internacionais, com expressiva participação de médicos brasileiros, a WFOT , cujo atual presidente, Antônio Teixeira, é brasileiro, e a IMEOF, sediada na Espanha. É digno de nota que os entusiastas da Ozonioterapia organizam-se em níveis nacional e internacional, com uma dedicação quase religiosa ao objeto de seu trabalho. Pode-se fazer um paralelo com o intrigante  e trágico episódio da Fosfoetanolamina, “a pílula do câncer”, quando a crença na sua capacidade de curar todos os tipos de câncer espalhou-se de forma incendiária no Brasil e, em determinado momento, chegou a ter características de um culto, o “fosfoculto”. Sobre este episódio, o podcast “Ciência Suja” fez um belíssimo trabalho de jornalismo investigativo, “A farsa da pílula do câncer”.

A imprensa está noticiando a sanção da lei e explorando seus múltiplos aspectos e possíveis consequências. Em excelente matéria publicada no portal BBC, Ozonioterapia: os riscos da prática sancionada por Lula – BBC News Brasil , temos uma informação qualificada que esclarece vários pontos controversos que vieram à tona com a publicação da lei.

Na discussão acerca da utilização do ozônio como ferramenta terapêutica, faz-se presente o Oitavo Princípio da Slow Medicine, “Segurança em primeiro lugar”, que afirma: Primum non nocere et in dubio abstine. Em primeiro lugar não causar o mal. Em dúvida, abstenha-se de intervir. As intervenções médicas essencialmente procuram causar o Bem. Princípios bioéticos essenciais na prática médica são a Beneficência e a Não-Maleficência. Ou seja, as decisões clínicas projetam-se em direção à Beneficência. Mas não é infrequente que o tiro saia pela culatra. É relativamente consensual que a ozonioterapia não se assenta sobre evidências científicas robustas, contrariamente ao que afirmam seus defensores. E tampouco é isenta de riscos e efeitos adversos. Podemos apontar que alimentar a esperança das pessoas com promessas terapêuticas – e resultados clínicos improváveis, é uma atitude que beira a crueldade – e a irresponsabilidade. Problemas como abandonar tratamentos com resultados conhecidos por práticas duvidosas pode trazer graves prejuízos, sem falar da toxicidade financeira que eventualmente pode se associar a tratamentos ainda não comprovados. O Manifesto da Slow Medicine nos propõe uma Medicina Justa, “que presta cuidados apropriados, isto é, adequados às pessoas e às circunstâncias, e que provaram ser eficazes e aceitáveis, aos pacientes e aos profissionais de saúde”.

A politização de temas essencialmente médicos, neste caso uma lei elaborada no Congresso pelos deputados, aprovada pelos senadores e sancionada pelo Presidente da República, à revelia de inúmeros pareceres técnicos e do posicionamento de instituições tradicionais, como a Academia Brasileira de Medicina, a Associação Médica Brasileira e o Conselho Federal de Medicina, além de várias sociedades médicas, nos coloca frente a um questionamento: em breve teremos leis para determinar se um paciente deve ser encaminhado para uma Unidade de Terapia Intensiva? Se é o momento, frente a um quadro de insuficiência respiratória, de se proceder à intubação e ventilação mecânica? A quem cabe a decisão? Aos médicos ou aos deputados?

Mais uma vez se calou a voz da ciência em nome, possivelmente, de conveniência política. Parece que aprendemos pouco com a COVID-19. Muitos acreditavam que, uma vez superada a Pandemia, tudo seria diferente. Infelizmente não. A humanidade segue a mesma.

José Carlos Campos Velho é medico geriatra e clínico geral e editor do site Slow Medicine Brasil.

Post Scriptum:

No Dicionário Houaiss, existem vários significados para a palavra Quimera.

Na Mitologia Grega “monstro mitológico que se dizia possuir cabeça de leão, corpo de cabra, cauda de serpente e lançar fogo pelas narinas”; metaforicamente “produto da imaginação, sem consistência ou fundamento real ; ficção, ilusão” ; e por extensão, “fantasia, sonho, esperança ou projeto geralmente irrealizável; utopia, algo a que falta unidade, coesão ou coerência; despropósito, disparate, absurdo.”

6 Comentários

  1. Excelente texto e crítica pertinente! Pena, Presidente Lula, em meio a tantas coisas extremamente importantes para serem discutidas nesse país, ozônio (não)terapia, agora? Andava mais feliz, livre de ouvir tantas asneiras, no campo da saúde e da ciência! Não permita(m) que se volte a esses tempos obscuros e cruéis que nos faziam viver enorme ansiedade e angústia, dia após dia, com palavras saídas da boca de políticos, em aspectos que desconhecem e não lhe cabem discutir. Prudência, justiça, ciência bem feita, não maleficiencia…..nunca perderão o seu lugar! Pena, pensei que havíamos aprendido um pouco mais….

  2. Mylena, obrigado pelo comentário. A lei que foi sancionada não limita a ozonioterapia à procedimentos odontológicos ou estéticos. Somente sugere que sua aplicação seja feita por um profissional de nível superior (sequer sugere que seja da área da saúde), devidamente inscrito em seu conselho profissional, que se trata de um tratamento complementar e que seja executado em aparelho certificado pela Anvisa. O posicionamento da Anvisa e do Ministério da Saúde até podem ser diversos, mas a lei que foi promulgada – que pode ser encontrada na integra em link oferecido no texto, fala em termos genéricos, conforme comentamos anteriormente. O texto se restringe à interpretação da lei.

  3. Prezado José Carlos, meu xará. Muito bom texto. Gostei de como as coisas acontecem ao sabor da política, como bem meu amigo desenvolveu em seus comentários. Sempre bom ficarmos com os elementos principais de nosso “Slow medicine”. Grande abraço.

  4. Bom texto, mas alarmista. O governo Lula não autorizou a ozonioterapia para tudo, apenas para o uso na odontologia e outras indicações específicas, que já têm sido feitas há tanto tempo em caráter “experimental”, que talvez seja melhor estar regulada do que clandestina.

  5. Vale a pena ler o artigo da Vera Guimarães publicado no dia 9 de agosto no jornal O Globo. 

  6. Vale a pena ler o artigo “o negacionismo apenas complementar “ da jornalista Vera Magalhães no jornal O Globo de hoje.

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