Pandemia de Covid-19: como pensam e decidem os médicos?

julho 23, 2020
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Por Régis Rodrigues Vieira e Carla Rosane Ouriques Couto:

                                              “Toda certeza pode ser considerada como um todo divisível em tantas probabilidades quantas se quiser”. Jacques Bernouilli

 

O desenvolvimento do raciocínio clínico e consequentemente o tratamento das doenças está fortemente enraizado no pensamento anátomo-fisiopatológico. Apesar da evolução do pensamento probabilístico, da Medicina Baseada em Evidências (MBE) e do fato de todas as Escolas Médicas de alguma forma incluírem a Epidemiologia Clínica nas suas grades curriculares, o fato é que a maioria dos médicos raciocina apenas fisiopatologicamente.

Quando nos deparamos com os debates sobre a utilização ou não da Hidroxicloroquina e outros medicamentos/procedimentos, no curso da pandemia de Covid 19, observamos claramente dois pontos de vista antagônicos que na verdade deveriam ser complementares. Percebemos médicos defendendo o uso da medicação baseado na sua experiência, no histórico da droga, na fisiopatologia das infecções e possíveis casos exitosos.Por outro lado, há colegas questionando a eficácia, efetividade e segurança no tratamento à COVID 19. Quem está certo? Por que esta dicotomia? É uma questão ideológica?

Precisamos investigar o contexto histórico da formação médica para entendermos como pensa o médico, em especial o brasileiro. O raciocínio clínico remonta o período de Hipócrates (± 460 aC – ± 370 aC) com sua teoria humoral na qual sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra seriam responsáveis por alterações cardiológicas, respiratórias, hepáticas, influenciadores do próprio temperamento e personalidades.

Hipócrates e Galeno (131–216) foram provavelmente os pioneiros no detalhamento dos sintomas e sinais como indicativos de alterações desses fluídos corporais e concomitante raciocínio de onde estaria o problema. O tratamento adviria de forças da natureza e seu papel curativo de acordo com as alterações dos fluidos.  Essa teoria se consolidou e durou praticamente dois milênios (TEN CATE; DURNING, 2018).

Somente no século XII o raciocínio clínico deixou de ser um campo teórico, sendo aliado ao exame físico à beira do leito. O precursor foi o famoso Dr. Herman Boerhaave  (1668 – 1738) da Universidade de Leiden – Holanda, que trazia os alunos à beira do leito e realizava palestras tentando integrar teoria e experiência clínica. Entretanto não havia uma linha de raciocínio para refutação de hipóteses, eram poucos pacientes e o ensino terminava quase sempre em diagnósticos fechados e tratamentos baseados em sua experiência. Esse modelo se expandiu por toda a Europa e América do Norte (KYLE; STEENSMA, 2018).

Em 1776 na Faculdade de Medicina da Pensilvânia o Dr.Thomas Bond  sistematizou o ensino à beira do leito com grande número de pacientes, integrando o conhecimento científico produzido até o momento e levantando hipóteses acerca dos possíveis diagnósticos. Bond abriu espaço a William Osler (1849 – 1919) reconhecido por muitos como o pai da medicina clínica.

Osler abandonou a teoria hipocrática-galênica que já vinha em declínio e adotou o que conhecemos como medicina moderna. A partir de então o entendimento do raciocínio clínico se baseava no fato de que haveria uma homeostase e que as doenças eram causadas por desorganizações deste equilíbrio interno. Aliado aos avanços de exame físico como palpação e ausculta, Osler foi capaz de observar padrões de doenças semelhantes, descrevê-las, levantar hipóteses e criar o que até hoje entendemos como diagnósticos diferenciais (TEN CATE; DURNING, 2018). É de William Osler a célebre frase: “Medicina é uma ciência de incerteza e uma arte da probabilidade”. Entretanto a consolidação do raciocínio fisiopatológico e tratamento baseados na experiência pessoal se consolidava, persistindo de certa forma, até os dias de hoje.

Michel Foucault em sua obra “O Nascimento da Clínica”, reconstrói o processo no qual a medicina clássica, que tinha como objeto a doença considerada de forma abstrata, evolui para a medicina clínica, que busca olhar para o indivíduo no corpo doente em sua singularidade. E alerta para um movimento paralelo: o nascimento de uma medicina do espaço social, exigindo a consciência do médico que considere a doença como um problema político, e exerça sua autoridade administrativa fundada em seu saber científico. Esta visão nos auxilia a pensar no papel médico em situações de pandemia. Diz Foucault: “os milagres não são assim tão fáceis: a mutação que permitiu, e todos os dias ainda permite, que o “leito” do doente se torne campo de investigação e de discursos científicos não é a mistura, repentinamente deflagrada, de um velho hábito com uma lógica ainda mais antiga, ou a de um saber com um esquisito composto sensorial de um “tato”, em “golpe de vista” e um “faro”. A medicina como ciência clínica apareceu sob condições que definem, com sua possibilidade histórica, o domínio de sua experiência e a estrutura de sua racionalidade”. Foucault falava do surgimento de uma nova experiência de doença, e com ela uma nova clínica, focada no ser humano conservando a racionalidade científica e reconhecendo a incerteza (FOUCAULT, 1963).

Em 1910, o professor americano Abraham Flexner (1865–1959) coordenou uma avaliação de todos os cursos de Medicina dos Estados Unidos e Canadá num total de 155, levando ao fechamento de inúmeras escolas e padronização de 33, que puderam permanecer abertas. Flexner sistematizou o curso de Medicina em ciclos básicos com ênfase na anátomo-fisiopatologia e os dois últimos anos eminentemente práticos que persistem como modelo em muitas escolas médicas brasileiras até os dias atuais (FLEXNER, 1910); (PAGLIOSA; ROS, 2008).

Em contraponto ao que denominamos modelo flexneriano de ensino e atenção, houve um movimento em direção a um modelo biopsicossocial, entendendo que outros múltiplos e complexos elementos estão envolvidos no processo saúde doença, para além das alterações anatômicas, tissulares e fisiopatológicas. É consenso de que a famosa frase de Bichat: “abram alguns cadáveres e logo verão desaparecer a obscuridade que apenas a observação não pudera dissipar” (1801), foi uma profecia não realizada e hoje superada. Precisamos sim retornar à beira do leito, ouvir, observar, ouvir de novo, observar mais uma vez, para um atendimento integral e resolutivo. Nesse sentido, no Brasil há dois marcos importantes: as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Saúde, editadas pelo Ministérios da Educação e Saúde, em 2000 e 2014. Os documentos reconhecem a necessidade de desenvolver o pensamento médico, no sentido de seu papel social, político, cidadão e educador, apto a resolver os problemas prevalentes de uma comunidade ou população, utilizando as melhores evidências disponíveis, com foco no contexto de vida do paciente e sua família. Praticamente todas as escolas médicas iniciaram reformas curriculares relevantes desde então, buscando a formação desse novo perfil, mais próximo das pessoas (ênfase na Atenção Primária à Saúde) e consciente de seu papel social.

A evolução do raciocínio probabilístico, ao longo da história da medicina, caminha de forma mais lenta que o raciocínio anátomo-fisiopatológico. O pioneiro a demonstrar a importância de comparar grupos e diminuir vieses inerentes à experiência pessoal foi James Lind. Em 1747, Lind organizou três grupos de marinheiros e administrou frutas cítricas a um dos grupos evidenciando o tratamento ao escorbuto. Apesar do sucesso do rudimentar ensaio clínico, a comunidade científica não recebeu com bons olhos o experimento e por muito tempo sua descoberta que salvaria milhares de vida ficou esquecida.(O-LEGADO-CLINICO-DE-JAMES-LIND @ WWW.JORNALDENTISTRY.PT, [s.d.]).

O primeiro grande ensaio clínico com poucos erros sistemáticos ocorreu já no século XX. Em 1948 evidenciou-se o tratamento da tuberculose com estreptomicina colocando os grandes ensaios clínicos como padrão para refutar hipóteses em relação aos tratamentos e demonstrou a adequada condução para redução de vieses(WEITZMAN; DE WEND CAYLEY; WINGFIELD, 1950).

O raciocínio médico é condizente com a história da medicina, pois desde Hipócrates e Galeno acreditamos na evolução de alterações que podem ser corrigidas apenas pelo seu conhecimento prévio. Algumas iniciativas como a medicina baseada em evidências, termo cunhado na década de 90 por David Sacket, propõe aliarmos à nossa experiência pessoal as evidências e os valores do usuário na decisão clínica numa tentativa de incorporar à prática médica os conceitos de decisão baseada em probabilidade respeitando o conhecimento teórico consolidado (SACKET, 1996).

No Brasil temos visto florescer movimentos que trazem a discussão das escolhas baseadas nas melhores evidências, destacando-se a Oxford Brazil Alliance, o médico Luis Cláudio Correia, da Escola Bahiana de Medicina e seu blog Medicina Baseada em Evidências, os movimentos Choosing Wisely,  Slow Medicine, a Cochrane Brasil e seus afiliados. Todas são organizações que buscam trazer à academia e ao público leigo a criação de uma rede de discussão acerca das melhores escolhas em saúde.

A discussão sobre o uso ou não de medicações, mesmo que até o momento não tenham apresentado eficácia e segurança no tratamento à Covid 19 é o reflexo de um modelo milenar de raciocínio permeado por vieses cognitivos de reforço do que se sabe, vieses de disponibilidade e efeito moldura do raciocínio. O que se observa é a discussão entre o pensamento fisiopatológico versus o probabilístico quando na verdade não há essa dissociação, são complementares. Precisamos avançar neste “fla-flu” e enfrentarmos como profissionais da saúde e educadores o desafio de integrar nosso raciocínio clínico, sobretudo em períodos de crise como esta pandemia.

Sobre as epidemias dizia Foucault, num convite a interação e integração entre as várias correntes da ciência: “contagiosa ou não, a epidemia tem uma espécie de individualidade histórica. Daí a necessidade de usar com ela um método complexo de observação. Fenômeno coletivo, ela exige um olhar múltiplo; processo único, é preciso descrevê-la no que tem de singular, acidental e imprevisto. Deve-se transcrever o acontecimento detalhadamente, mas também segundo a coerência  que implica a percepção realizada por muitos, conhecimento impreciso, parcial, incapaz de aceder sozinho ao fundamental ou essencial, só encontra seu volume próprio no cruzamento das perspectivas, em uma informação repetida e retificada, que finalmente envolve, no lugar em que os olhos se cruzam, o núcleo individual e único desses fenômenos coletivos”.

Não temos na atual crise sanitária, um manual de comportamento ou pensamento médico único. Diante de nós há toda a ciência produzida, de Hipócrates passando por William Osler e Foucault aos grandes epidemiologistas atuais, num cenário social, estrutural e político complexo, que muitas vezes pouco contribui para a serenidade na tomada de decisões.

O movimento Slow Medicine nos convida à integração. Integração de saberes, reconhecimento de vieses cognitivos do nosso pensamento (rápido e devagar como diria Daniel Kanheman), respeito ao conhecimento historicamente acumulado pela medicina e tomada de decisão baseada em evidências sólidas, respeitosas e justas. Integração do paciente à tomada de decisão com tempo de atendimento suficiente, respeito à sua singularidade, busca incessante pela decisão compartilhada com reconhecimento dos princípios dos Cuidados Paliativos ainda que em situações prementes. A empatia, a compaixão, o olhar humano, sob a luz da justiça social e da racionalidade científica, devem conduzir nosso pensamento e nossas decisões.  O movimento Slow Medicine deseja que nos desarmemos das discussões infrutíferas e nos aliemos no enfrentamento do grande desafio de cuidar das pessoas, sobretudo no cenário de incerteza desta pandemia.

“Quando a ciência se perde em seu propósito, a pesquisa deixa de ser meio e passa a ser o fim. O resultado de um estudo toma o lugar da verdadeira compreensão da natureza como o objetivo da ciência”.

Luís Cláudio Correia

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RÉGIS VIEIRA: Mineiro de Aiuruoca – MG. Médico de família e Comunidade. Mestre em Ensino na Saúde pela Universidade Federal Fluminense. Doutorado (em curso) pelo Programa de Pós-graduação em Saúde Baseada em Evidências da Unifesp – São Paulo. Pesquisador voluntário e membro do Cochrane Brazil Rio de Janeiro, Centro Afiliado da Cochrane Brazil Network. Membro Slow Medicine.

CARLA ROSANE OURIQUES COUTO: Pediatra, Médica de Família e Comunidade, especialista em Saúde Pública, Gerenciamento de Unidades Básicas, Educação Médica, Saúde do Trabalhador e Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Perita Médica Federal. Membro Slow Medicine.

 

 

Bibliografia utilizada:

PAGLIOSA, F. L.; ROS, M. A. O relatório Flexner: para o bem e para o mal. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 32, n. 4, p. 492-499, out./dez. 2008. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/rbem/v32n4/v32n4a12.pdf>. Acesso em: 21 mai. 2020.

FLEXNER, A. Medical Education in the United States and Canada. New York: Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, 1910.

FOUCAULT, M. O Nascimento da Clínica (1963). 6 ed. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2004.  Tradução de Roberto Machado.

KYLE, Robert A.; STEENSMA, David P. Herman Boerhaave – Master Clinician and Humanist. Mayo Clinic Proceedings, [S. l.], v. 93, n. 11, p. e119–e120, 2018. DOI: 10.1016/j.mayocp.2018.09.014. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.mayocp.2018.09.014.o-legado-clinico-de-james-lind @ www.jornaldentistry.pt. , [s.d.]. Disponível em: https://www.jornaldentistry.pt/news/artigos/o-legado-clinico-de-james-lind.

TEN CATE, Olle; DURNING, Steven J. Principles and practice of case-based clinical reasoning education: A method for preclinical students. [s.l: s.n.]. v. 15 DOI: 10.17223/15617793/399/27. Disponível em: http://www.springer.com/series/6087.

WEITZMAN, David; DE WEND CAYLEY, F. E.; WINGFIELD, Alec L. Streptomycin in the treatment of pulmonary tuberculosis. British Journal of Tuberculosis and Diseases of the Chest, [S. l.], v. 44, n. 4, p. 98–104, 1950. DOI: 10.1016/S0366-0869(50)80004-7.

https://oxfordbrazilebm.com/index.php/catalogo-de-vieses/

Sackett David L, Rosenberg William M C, Gray J A Muir, Haynes R Brian, Richardson W Scott. Evidence based medicine: what it is and what it isn’t BMJ 1996; 312 :71

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