A curva ascendente de mastectomias: onde estamos errando?

novembro 5, 2021
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Por Érica Motroni

Saber não é o bastante; precisamos aplicar. Querer não é o bastante, precisamos fazer.”

Bruce Lee

Se há 30-40 anos falássemos em uma cirurgia para o tratamento do câncer de mama que retirasse uma área de 2 a 3 centímetros e um único linfonodo axilar, muitos diriam que era impossível controlar a doença dessa forma. Afinal de contas Halsted, o pai do tratamento cirúrgico do câncer de mama, e todos os que vieram depois, tinham a cirurgia – e apenas a cirurgia – como opção terapêutica. Pensando com a mentalidade da época, quanto maior fosse a cirurgia, quanto maior a área retirada, maior era o controle do câncer de mama e, consequentemente, maior o tempo de vida da paciente. Com o tempo, entretanto, percebemos que mesmo realizando a cirurgia considerada adequada, extensa, mutilante e supostamente definitiva, a doença insistia em voltar. Começamos então a entender que o câncer de mama era uma doença sistêmica e que pensar apenas em controle local era pouco. 

Muitos e muitos anos se passaram. Atualmente nos deparamos com tanta, mas tanta evolução nessa área, com novas drogas quimioterápicas, radioterapia altamente precisa, imunoterapia, terapias-alvo, entre outros tratamentos revolucionários no cenário do câncer de mama, que nem nos seus sonhos mais ambiciosos Halsted poderia imaginar como conduziríamos (ou deveríamos conduzir) as tratamentos e as nossas relações com pacientes hoje em dia

Menos passou a ser mais

A cirurgia considerada adequada é cada vez menor e não temos mais dúvidas sobre a segurança da cirurgia conservadora – aquela que preserva a mama da paciente – associada à radioterapia adjuvante. Essa cirurgia oferece excelentes resultados estéticos, é altamente eficaz do ponto de vista oncológico e tem poucas taxas de complicações, tanto a curto quanto a longo prazo. 

Diante de tudo isso, a mastectomia definitivamente perdeu a majestade – ou deveria ter perdido. Ela não ganha em controle local nem em taxas de sobrevida, e perde ‘de lavada’ no que diz respeito a taxas de complicações, sequelas motoras e sensitivas, além da possível diminuição em qualidade de vida – especialmente pelo impacto causado pelo resultado estético muito aquém do desejado (fato frequentemente subestimado por pacientes e médicos). E é justamente nesse ponto que os médicos, especialmente os mastologistas, talvez estejam tropeçando, resultando nesse vertiginoso aumento do número de mastectomias, inclusive bilaterais.

Qualquer um que trabalhe com oncologia sabe que cirurgia oncológica com reconstrução nada tem a ver com cirurgia estética. Muitas vezes é necessário abordar nas consultas esse tema inúmeras vezes para desconstruir o imaginário do leigo, que traz a ideia de ‘matar dois coelhos numa cajadada só’: trato meu câncer (ou diminuo meu risco de câncer no futuro) retirando logo a mama toda e aproveito pra fazer aquela plástica que sempre quis.

Seria tão bom se fosse simples assim… mas não é. Os benefícios da mastectomia são claros em alguns subgrupos, especialmente nas pacientes com mutações genéticas de alta penetrância, como BRCA 1 e 2, PALB 2, etc. A cirurgia mais radical também é corretamente indicada em casos em que a cirurgia conservadora não é possível, como por exemplo em doenças multicêntricas ou naqueles em que a relação mama/tumor não permite o tratamento oncológico ideal aliado a um resultado estético satisfatório. Nesses grupos o benefício da mastectomia supera o risco, mas esses casos estão longe de ser a maioria. Para todo o resto, a mastectomia deveria ser exceção. Então, onde estamos falhando? Por que tantas mulheres desejam uma mastectomia, acreditando de fato ser a melhor opção, e acabam sendo submetidas a uma cirurgia que não as beneficia?

As raízes do problema

O problema está na comunicação com as pacientes? Será que estão ficando realmente claros os prós e contras dessa escolha? Ou será que estamos diante de um negacionismo em relação as evidências científicas, que perpetua essa crença anacrônica de que a mastectomia é mesmo melhor?  Seria por motivo ainda mais grave, como, por exemplo, o “incentivo” financeiro atrelado a uma cirurgia de maior porte, com equipes, materiais e custos maiores? 

Quando esse assunto é tratado em congressos, muito se fala no desejo da paciente como força motriz desse fenômeno. De fato a solicitação por essa cirurgia é altíssima nos consultórios de mastologia, mas na prática conhecemos bem o impacto da opinião médica nas decisões dos pacientes. Sabemos que, quando se constrói uma relação médico-paciente/paciente-médico sólida, aberta e respeitosa, o paciente tende a acatar a opinião e orientação de quem o acompanha.

Acredito que não há atuação médica de alta qualidade sem esses questionamentos sinceros. Não há saber e fazer médico isolado da vida em sociedade e dos valores e culturas que nos permeiam. A medicina – e aqui a mastologia – não é apenas uma ciência médica, biológica. É também uma ciência humana: tanto médicos quanto pacientes se movem e tomam decisões a partir de coisas que vão além de células, de tecidos, da integridade do saúde do corpo. Podem, portanto, estar instrumentalizando sua saúde e seus corpos na busca de outras vitórias, que não aquela que vai garantir a cura do câncer de mama e uma saúde plena, equilíbrio emocional, um corpo são e uma mente sana.

É responsabilidade do mastologista conduzir um processo decisório íntegro, honesto, livre de vieses, e que tenha como único objetivo o benefício máximo das pacientes. Um processo que tenha suas bases fortemente alicerçadas nas evidências científicas, e que não se deixe influenciar por crenças pessoais infundadas, interesses financeiros ou protocolos institucionais pouco sensatos. No final de tudo, uma cirurgia que resulte de uma relação ética e honesta, seja ela uma cirurgia conservadora ou uma mastectomia radical, sempre traduzirá a beleza em seu mais amplo significado.


Érica Motroni: Sou carioca apaixonada pela minha cidade, médica graduada pela Universidade Estácio de Sá no Rio de Janeiro. Minha primeira residência de 3 anos foi no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/UERJ) em Ginecologia e Obstetrícia, já com foco desde o início nas doenças mamárias, especialmente no câncer de mama. A segunda residência, em Mastologia, durou 2 anos e foi concluída no Hospital Federal da Lagoa, também no Rio. Em 2019 me tornei membro titular da sociedade brasileira mastologia. Desde os primeiros plantões, ainda como clínica, depois como obstetra, me senti inadequada aos moldes da “fast medicine” atual e passei aos poucos a buscar o meu caminho dentro do universo da mastologia, mas de uma forma desacelerada, mais empática e completa no meu ponto de vista. Atualmente trabalho em clínica privada e no SUS e busco manter a prática slow em todos os meus atendimentos. Descobri recentemente as páginas da Slow Medicine Brasil nas redes sociais e me encantei com a quantidade de excelentes profissionais que passaram e passam por uma trajetória semelhante a minha e buscam resgatar a verdadeira arte do cuidar. Sou entusiasta da medicina integrativa e acredito muito nos benefícios das terapias não convencionais para o auxílio do tratamento de pacientes oncológicos. Como uma cirurgiã apaixonada, sigo medindo o peso da mão do bisturi, priorizando acima de tudo a medicina baseada em evidências, sem exageros ou práticas desnecessárias e a promoção da saúde e da qualidade de vida mesmo no contexto das doenças.Para lidar com as angústias e cansaço do dia a dia, faço exercícios físicos dos mais variados possíveis mas é no surf que encontro a maior identificação e recompensa. Moro no Rio de Janeiro com meu marido Felipe e minha filha Gabi, que dão mais significado à minha vida e formam minha base acolhedora e afetuosa. Meus pais e irmão formaram minhas sólidas raízes que me permitem crescer cada vez mais em busca de uma vida plena e com propósito.

3 Comentários

  1. Parabéns à Dra. Erica Motroni. Em 1976 fiz o internato no INCA, em Ginecologia.

  2. Texto excelente, esclarecedor e atual! Também sou médica, ginecologista e obstetra e tive câncer de mama. Sem dúvida nenhuma, uma relação clínica adequada, respeitosa, confiança no saber técnico mas também afetuosa nos trás, como pacientes, a serenidade de poder adoecer em paz. Acreditando que a equipe nos apoiam e compreendem. Como médica e paciente sempre me perguntava e às minhas pacientes “para que se faz tudo isso, afinal? Não é para viver bem depois de todo o duro tratamento?” Assim, o cuidado integral e integrativo é fundamental, pontuando com a mulher as suas vulnerabilidades e fortalezas e, visando o todo por um tempo bem longo!!!! Fazemos todo o tratamento pontual, mesmo que longo, vislumbrando, no futuro, uma vida com
    qualidade nos âmbitos psicosocial, familiar, pessoal e no trabalho!

  3. Lindo depoimento…
    E , sim precisamos de mais mastologistas com essa visão da medicina e de mundo!!

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