A dura vida de um conservador

junho 30, 2021
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Por André Islabão

“Oxalá eu não ande sem cuidado. Oxalá eu não passe um mau bocado.

Oxalá eu não faça tudo a pressa. Oxalá o meu futuro aconteça.”

Madredeus

Nem sempre é fácil adotar e manter uma postura moderada pela vida afora. É que a moderação pode ser mal-interpretada como sendo uma falha de caráter de alguém que não quer tomar partido ou que se regozija em criticar todo tipo de excesso. Na medicina isso não é muito diferente. Em um artigo publicado no The American Journal of Medicine, um grupo de ótimos autores faz um desabafo muito bem embasado na ciência em defesa da sua opção por uma posição mais conservadora. O fato de serem considerados por alguns como sendo demasiadamente críticos, descrentes ou niilistas os levou a defender sua posição de “médicos conservadores”. Em The case for being a medical conservative, John Mandrola, Adam Cifu, Vinay Prasad e Andrew Foy abordam o assunto de uma forma bastante clara e equilibrada.

Sem deixar de reconhecer vários avanços bem-sucedidos da medicina, como os tratamentos da AIDS e de vários tipos de cânceres, eles observam que o verdadeiro progresso científico é lento e difícil, e que muitas das descobertas científicas alardeadas como milagrosas na mídia e na própria literatura médica acabam trazendo benefícios apenas marginais para a maior parte da população. Esta escassez de benefício se expressa por uma relação que considera o custo das intervenções e o número de pessoas que precisam ser tratadas para que alguém se beneficie (NNT). Assim, algumas intervenções que têm custo baixo ou que beneficiam grande parte dos pacientes tratados (NNT baixo) – como vacinas, saneamento básico e intervenções coronarianas para IAM – acabam tendo um perfil de benefício adequado. Por outro lado, as intervenções de alto custo ou que trazem benefício a uma minoria dos pacientes tratados (NNT alto) – como a realização de RM para investigação de dor lombar ou o rastreamento para câncer de próstata – acabam por sobrecarregar o sistema de saúde e trazer benefícios pífios.

Segundo os autores, um médico conservador também deve demonstrar parcimônia em relação às novidades terapêuticas, deixando para adotá-las apenas quando as evidências favoráveis ao seu uso forem realmente fortes e livres de vieses. Mesmo no caso da adoção de terapias novas, os autores lembram que não se deve nunca esquecer que as evidências se referem a efeitos médios em grupos bem definidos de pessoas, o que deve ser levado em conta ao se considerar uma intervenção para um paciente individual. Um exemplo disso é o uso disseminado de estatinas para prevenção primária de eventos cardiovasculares: o médico conservador reconhece que este uso amplo pode evitar algumas mortes em populações, mas faz questão de explicar esta relação entre risco e benefício para o paciente individual a fim de que possa ser tomada uma decisão conjunta, equilibrada e baseada nas melhores evidências, o que pode até mesmo contrariar uma recomendação geral estabelecida. Assim, o conservador reconhece a importância das melhores evidências científicas, mas também valoriza os outros pilares da Medicina Baseada em Evidências (MBE): a experiência do médico e as preferências do paciente.

Aliás, o conservador defende com veemência a MBE e a avaliação crítica das evidências científicas, mas reconhece que esta avaliação deve considerar cada vez mais a possibilidade de vieses nas pesquisas devido ao interesse comercial da indústria farmacêutica e a relação nem sempre proporcional entre o custo e o benefício das intervenções avaliadas. Embora considere que o poder econômico da indústria possa trazer benefícios para a pesquisa clínica e a própria ciência, o conservador também reconhece que uma influência excessiva da indústria na pesquisa clínica pode não apenas comprometer a qualidade das evidências, mas também minar a confiança da população em todo o complexo médico-científico.

É impossível não identificar as ideias deste conservadorismo médico proposto pelos autores com os princípios do movimento da Slow Medicine e da boa medicina em geral. É que, ao reduzir o ritmo, o médico conservador consegue reconhecer o poder de autocura do ser humano e alguns exageros e limitações da própria medicina. Além disso, ao abandonar a pressa, é possível exercitar da melhor maneira as virtudes da prudência, da temperança, da humildade e da compaixão, tão benéficas no cuidado com o próximo. Mas não se engane: esta não é uma posição defensiva, pois adotar uma posição moderada e cautelosa pode ser um ato extremamente corajoso numa época em que a pressa, o acesso fácil à (des)informação e a pressão pelo consumo das novidades terapêuticas tendem a levar muitos médicos ao excesso diagnóstico e terapêutico. Se para alguns esta posição conservadora soa como um niilismo enrustido, para o médico conservador trata-se de uma proteção contra nosso maior inimigo: a arrogância médica.

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André Islabão é médico clínico geral, formado em Pelotas, RS. Exerce seu trabalho na Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, e em consultório privado. Além disso, é escritor – a obra “Entre a Estatística e a Medicina da Alma – Ensaios Não-Controlados do Dr. Pirro”, livro cujas ideias se entrelaçam de maneira muito natural à filosofia da Slow Medicine e autor do blog andreislabao.com.br

5 Comentários

  1. Caro Geraldo. Tenho alguma dificuldade em entender este comentário. A única referência feita a vacinas neste texto é bastante positiva, salientando as vacinas historicamente como um exemplo de intervenção barata e efetiva. Talvez tenha havido algum mal-entendido. Se, por outro lado, o comentário se referir a um texto escrito alhures, em outro contexto de tempo e espaço, a expressão se referia, então, à necessidade de despolarizar a questão das vacinas, reforçando a necessidade de individualizar cada vacina e indicação em vez de sermos contra ou a favor de todas elas em todas as situações. Esta visão, aliás, é corroborada pelos próprios autores do texto acima (e John Mandrola é um cardiologista) quando defendem que a vacina anti-covid da Pfizer (uma excelente vacina na imensa maioria dos casos) seja usada com cautela em adolescentes do sexo masculino pelo risco aparente de miocardite. Ou seja, neste grupo ela talvez seja mesmo desnecessária e perigosa, havendo necessidade de clareza e cautela. Abraço!

  2. Caro Geraldo. Tenho alguma dificuldade em entender este comentário. A única referência feita a vacinas neste texto é bastante positiva, salientando as vacinas historicamente como um exemplo de intervenção barata e efetiva. Talvez tenha havido algum mal-entendido. Se, por outro lado, o comentário se referir a um texto escrito alhures, em outro contexto de tempo e espaço, a expressão se referia, então, à necessidade de despolarizar a questão das vacinas, reforçando a necessidade de individualizar cada vacina e indicação em vez de sermos contra ou a favor de todas elas em todas as situações. Esta visão, aliás, é corroborada pelos próprios autores do texto acima (e John Mandrola é um cardiologista) quando defendem que a vacina anti-covid da Pfizer (uma excelente vacina na imensa maioria dos casos) seja usada com cautela em adolescentes do sexo masculino pelo risco aparente de miocardite. Ou seja, neste grupo ela talvez seja mesmo desnecessária e perigosa, havendo necessidade de clareza e cautela. Abraço!

  3. Quais são, por favor, as “vacinas desnecessárias ou perigosas.”
    Desculpe-me, mas não estou informado sobre isso.

  4. Isso me faz lembrar quando do meu filho foi internado e os médicos se sentiam na obrigação de sair com um diagnóstico. … meu filho com febre foi submetido a ressonância com febre alta … não tinha nem 2 anos …. sou grata por esta experiência, pois percebi que preciso olhar para meu filho com calma e não com pressa ….. e me conectar com ele, não vai ser a medicina que fará isso….. será eu como mãe. Ele saiu com diagnóstico que não foi comprovado em exame algum…. não precisaria ter sofrido aquilo tudo….

  5. Muito bom, parabéns

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