A eficácia de Cochrane

dezembro 14, 2022
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Por André Islabão

Há exatos 50 anos, Archie Cochrane lançava seu livro mais famoso, Effectiveness and efficiency, no qual fazia uma análise dos problemas enfrentados pelo então jovem NHS – o ótimo sistema de saúde inglês que serve de exemplo para vários sistemas de saúde no mundo, incluindo o nosso SUS – e apontava algumas soluções possíveis. Uma das coisas que logo chamou a atenção de Cochrane foi a maneira como intervenções médicas sem nenhuma comprovação científica eram amplamente aplicadas pelos profissionais dentro do sistema de saúde. Após a publicação dessas ideias radicais para a época, o nome de Cochrane ficou mundialmente conhecido e ele foi homenageado com a criação da Colaboração Cochrane – certamente uma das grandes iniciativas na área da ciência médica – embora nem todos tenham se aventurado na leitura do livro. E é exatamente por isso que resolvemos compartilhar por aqui essas ideias que parecem bastante afinadas com a Slow Medicine.

Há dois dados biográficos que podem ter sido determinantes para que Cochrane percebesse que havia algo errado com a maneira como as intervenções médicas eram implementadas. Durante o período em que permaneceu como prisioneiro de guerra, Cochrane atuou como médico responsável por milhares de pacientes munido apenas de aspirinas e antiácidos. Apesar da escassez de recursos e dos frequentes surtos infecciosos, Cochrane percebeu que aquela população tinha uma mortalidade baixíssima (apenas uma morte por doença entre cerca de 20 mil pessoas). Em outras palavras, ele percebeu que talvez os medicamentos não fossem fundamentais em muitas situações e que grande parte dos recursos que teriam sido usados se essas pessoas fossem atendidas em outros cenários poderiam ser absolutamente desnecessários. Além disso, Cochrane sofria de uma forma hereditária de porfiria e tentou usar inúmeros tratamentos ao longo da vida, todos eles ineficazes. Neste caso, ele percebeu que grande parte dos recursos que eram usados como se fossem efetivos, eram na verdade ineficazes.

No livro, o termo “efetividade” é usado por Cochrane da mesma forma como usamos “eficácia” hoje, como o efeito de uma intervenção no ambiente controlado de um ensaio clínico. Já o termo “eficiência” é usado para definir o melhor uso possível dos recursos disponíveis, o qual considere não apenas a eficácia comprovada das intervenções, mas também os seus custos para o sistema de saúde. Assim, Cochrane sabia que tanto as intervenções ineficazes como aquelas que são eficazes, mas de custo exorbitante, poderiam ser fatais para os sistemas de saúde. É por isso que o livro de Cochrane já demonstrava na época uma preocupação com o que chamamos de “equidade” do sistema de saúde, pois em qualquer sistema com recursos finitos o exagero de alguns pode levar à escassez para outros. Cochrane sabia que era fundamental cuidar bem da sustentabilidade do sistema de saúde para poder cuidar bem de todas as pessoas atendidas por ele.

Para tentar separar o joio do trigo e definir quais são as intervenções eficazes e que deveriam ser oferecidas pelo sistema de saúde, a solução de Cochrane era o bom uso da ciência. Cochrane era um árduo defensor dos ensaios clínicos randomizados (ECRs) como melhor ferramenta na hora de avaliar as intervenções médicas e dizia que era necessário “randomizar até doer”. Apesar disso, ele reconhecia alguns problemas inerentes aos ECRs, entre eles a percepção de que estudos com grande número de pessoas tinham boas chances de encontrar efeitos estatisticamente significativos, porém clinicamente irrelevantes. Cochrane também defendia que a pesquisa clínica fosse conduzida com isenção, pois via a ciência como uma ferramenta fundamental que deveria servir à sociedade e ao próprio sistema de saúde. Ele sabia que, se os ECRs fossem conduzidos de forma honesta por pesquisadores independentes, apenas aquelas intervenções realmente eficazes seriam aprovadas e oferecidas à população. É neste ponto que nos afastamos das ideias de Cochrane.

A pesquisa clínica atual sobre medicamentos e dispositivos médicos é em grande medida patrocinada e/ou conduzida pela própria indústria, o que traz um risco inerente de resultados tendenciosos e se afasta muito dos ideais de Cochrane. Além disso, ao mesmo tempo em que reconhecemos a Colaboração Cochrane – com suas revisões cuidadosas e abrangentes – como uma das maiores realizações da ciência médica, na prática aprovamos medicamentos e dispositivos após apenas um ou dois ECRs de gosto duvidoso realizados pela própria indústria e passamos a utilizar essas intervenções de forma automática e imediata como se sua eficácia e segurança já estivessem adequadamente comprovadas. Assim, parece que esquecemos que a imparcialidade é fundamental na pesquisa clínica e que a boa ciência demanda tempo, tanto para a produção de uma base de conhecimentos robusta como para uma análise cuidadosa deste conhecimento. É interessante imaginar o que aconteceria com muitos medicamentos e dispositivos aprovados recentemente se eles fossem objeto de revisões sistemáticas sérias. Certamente as conclusões seriam bem mais comedidas do que as manchetes sensacionalistas dos jornais, provavelmente algo como “nosso grau de certeza é baixíssimo, pois os dados disponíveis são insuficientes para concluir sobre a eficácia da intervenção avaliada”. No final das contas, a decisão sobre aprovar ou não medicamentos com uma base de sustentação assim tão fraca é de toda a sociedade, mas temos que reconhecer que o modus operandi atual nos afasta dos ideais de eficácia, segurança e equidade defendidos por Cochrane.

Uma das surpresas que temos ao ler o livro é ver que Cochrane defendia o uso amplo de placebos na prática clínica, chegando a sugerir que a indústria fabricasse pílulas de placebo de cores e tamanhos variados para aumentar o seu efeito. A verdade é que Cochrane sabia que grande parte do que usamos é desnecessário e, neste caso, talvez fosse melhor usar uma pílula inerte colorida do que usar algum medicamento caríssimo ou cheio de efeitos colaterais. Longe de defender o uso de placebos como prática adequada na realidade atual, o fato é que essa ideia que de início soa estranha pode causar algum constrangimento ao percebermos que nossos NNTs gigantes atuais acabam fazendo com que boa parte dos medicamentos prescritos hoje tenha o mesmo efeito dos placebos coloridos de Cochrane. Enfim, o livro de Cochrane é uma reflexão provocadora fundamental para quem quiser entender a revolução que suas ideias causaram e que acabou gerando o movimento da Medicina Baseada em Evidências, o qual serve de referencial teórico para a Slow Medicine. Além disso, conhecer as ideias originais de Cochrane nos permite perceber o quanto estamos nos desviando de seus ideais. Ao lermos o livro, chegamos à conclusão de que Cochrane não estava certo em tudo, mas ele estava certo no fundamental. É interessante – e confortador – ver que as ideias de Cochrane já eram bastante alinhadas com os princípios da Slow Medicine, como aqueles que defendem a sobriedade terapêutica, a justiça na distribuição de recursos, a segurança em primeiro lugar e o uso parcimonioso da tecnologia. Se entendermos por eficácia a capacidade de algo produzir um determinado efeito, o bom e velho Archie Cochrane foi altamente eficaz ao abrir nossos olhos para a importância de protegermos as pessoas contra as intervenções ineficazes ou perigosas, o sistema de saúde contra os excessos ou inequidades e a boa ciência contra todo tipo de distorção que a descaracterize.

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André Islabão: Sou médico internista formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com três anos de residência em Clínica Médica pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Depois de vários anos dedicado ao atendimento de pacientes hospitalizados, decidi reduzir o ritmo e me concentrar no atendimento ambulatorial, domiciliar e em consultório próprio. 

O tempo disponibilizado possibilitou que me dedicasse a outras atividades igualmente importantes, como a vida em família, a música, a tradução de livros médicos, o estudo de saberes diversos e o acompanhamento de pessoas em clínicas geriátricas, onde realizo um trabalho informal de musicoterapia tocando piano regularmente e levando um pouco de alegria aos moradores idosos. 

Para mim, a medicina é tanto arte quanto ciência. A fim de humanizá-la e de reduzir alguns excessos, acredito na filosofia slow, em uma relação médico-paciente longeva, na transdisciplinaridade do conhecimento e na análise crítica da ciência. Meu novo ritmo ainda me possibilita compartilhar ideias próprias em meu blog (www.andreislabao.com.br) e em dois livros publicados: Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro e O risco de cair é voar – mors certa hora incerta

7 Comentários

  1. Agradeço imensamente os comentários até aqui publicados. Infelizmente só os vi publicados hoje e, por isso, a demora em respondê-los. Quanto à solicitação de Doralice Seixas, seria obviamente uma honra em ver as ideias de Cochrane por mim descritas publicadas em outros periódicos.

  2. Agradeço imensamente os comentários até aqui publicados. Infelizmente só os vi publicados hoje e, por isso, a demora em respondê-los. Quanto à solicitação de Doralice Seixas, seria obviamente uma honra em ver as ideias de Cochrane por mim descritas publicadas em outros periódicos da área.

  3. Dr André, sou jornalista colaboradora da revista social da AMBr ( associação médica de Brasília). Queria sua autorização para publicar nela seu extraordinário texto. Doracasabranca

  4. Muito bom esse texto.

  5. Suas observações são pertinentes e concordo plenamente.  Além de MBE  significar  medicina baseada em evidência, pode significar tb medicina  baseada em experiência. E esta depende de honestidade  de propósito. Com 55 anos de prática médica, acho que prático, com todo o rigor, a segunda.

  6. Excelênte texto, mente equilibrada
    Necessário divulgar maciçamente
    Muito obrigado 

  7. Sou médico há 47 anos formado na UFPE. Cirurgião por 25 anos e crítico costumaz dos medicamentos desnecessários assim como exames complementares também desnecessários para avaliar sintomas bem definidos pela anamnese e exame físico. Compartilho da maioria dos pensamentos de Cochrane. Obrigado 

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