A ética das pequenas coisas

setembro 12, 2023
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Por André Islabão:

“A incerteza foi sempre o chão familiar da escolha.”

Zygmunt Bauman

A Medicina e a Ética

As discussões éticas parecem estar cada vez mais presentes na vida dos médicos. Afinal, se a ética trata dos nossos hábitos e da forma como nos comportamos no dia a dia da profissão, nada mais natural que a discutamos com alguma frequência. Contudo, costumamos associar essas discussões com as “grandes questões éticas”, aquelas de grande importância para a sociedade, mas com frequência relativamente menor em nossa prática. Isso inclui questões como a eutanásia, o aborto e os transplantes de órgãos. Porém, existem outras questões éticas menos glamurosas e aparentemente menores que se tornam gigantes por sua onipresença em nossa prática profissional diária. É sobre essas “questões éticas menores” – mas profundamente importantes! – que se debruçam os autores de dois artigos publicados nos últimos anos sobre esta ética das pequenas coisas.

Os médicos espanhóis Mercedes Pérez-Fernández e Juan Gérvas formam um casal simpático e interessantíssimo. Entre os seus interesses em comum está a busca incessante de maneiras criativas para melhorar a importantíssima área da Atenção Primária à Saúde e, para isso, uma de suas ferramentas são os chamados SIAPs (Simpósios de Inovação em Atenção Primária)[1], que são eventos itinerantes que percorrem o mundo e abordam diversos assuntos relacionados aos cuidados de saúde. Acredite: as ideias de Mercedes e Juan, assim como a proposta e a dinâmica de seus SIAPs, estão entre aquelas belas ideias que todo médico deveria conhecer melhor. Além disso, é muito bom perceber que tais ideias então em plena concordância com os valores que defendemos aqui na Slow Medicine Brasil. É exatamente por serem resultado desses SIAPs que esses artigos escolhidos e discutidos aqui têm um formato mais fluido e informal. Mas isso apenas os torna mais práticos e agradáveis de ler.

Incertezas

O primeiro artigo[2] começa por citar as chamadas “grandes questões éticas” e aproveita para fazer algumas críticas bastante pertinentes, como a crítica à classe política devido ao silêncio ensurdecedor adotado em relação à questão fundamental da eutanásia, ao lembrar das desigualdades sociais que envolvem o aborto e até mesmo ao apontar a habitual “elegância interna e irrelevância externa” de grande parte dos estudos que formam a nossa tão cultuada ciência médica. Tais críticas construtivas servem de contraponto para as quatro “pequenas questões éticas” escolhidas pelos autores: o manejo do tempo pelos médicos, a qualidade da relação clínica, o controle das incertezas e a resposta aos erros médicos.

O Tempo

Para os autores, o manejo adequado do tempo é de fundamental importância. Contudo, vivemos em uma época acelerada onde o mantra parece ser “não tenho tempo!”. Além disso, a arte de lidar com o tempo não é algo que se aprenda facilmente em livros. Há que se praticar diariamente. Não se trata apenas de reduzir o ritmo ou dedicar todo o tempo do mundo a cada paciente, mas sim de aprender a reconhecer quais são as pessoas e situações que demandam mais tempo e quais são as pessoas que ficariam igualmente satisfeitas com uma consulta rápida, efetiva e afetuosa. Como diz Mercedes: “o tempo é um tesouro!”.

Igualmente importante é a qualidade da relação clínica entre médico e paciente. Pessoas doentes precisam acima de tudo de acolhimento. É nesse momento que devemos esbanjar cortesia, amabilidade e empatia, qualidades que também dependem de treinamento constante. Coisas simples como receber o paciente na porta consultório, conduzi-lo à sala de consultas, apresentar-se adequadamente e perguntar como ele gostaria de ser chamado parecem coisas simples, mas podem fazer muita diferença como introdução para uma consulta, mas podem ser facilmente esquecidas na prática apressada da medicina moderna.

A aceitação de um certo nível de incertezas também é de fundamental importância. Como diz Mercedes, nem mesmo o aparecimento do Sol amanhã é algo certo, mas acreditamos nisso com base em uma probabilidade muito alta de que ele apareça. O mesmo acontece com várias coisas em nossas vidas. Porém, às vezes temos uma dificuldade imensa para lidar com algum grau de incerteza na prática clínica. Isso pode fazer com que exageremos nas solicitações de exames para tentar confirmar um diagnóstico em situações nas quais um diagnóstico sindrômico como “gripe” ou “gastrenterite” poderia ser suficiente para o manejo adequado do caso. Essa tirania do diagnóstico de certeza pode levar não apenas ao desperdício de recursos como também pode representar riscos desnecessários para os pacientes. Como lembra a autora, uma boa maneira de lidar com as incertezas é lançar mão da “demora permitida”, situação em que se explica a conduta expectante ao paciente e se marca uma reavaliação para depois de alguns dias a fim de observar a evolução clínica e reavaliar a conduta.

Não existe médico que não tenha “uma coleção de erros horrorosos” e, como diz Mercedes, os piores erros são aqueles que nem mesmo são percebidos, pois estes são os erros que insistiremos em repetir. De fundamental importância é a comunicação adequada dos erros (o que pode ser feito mesmo de forma anônima), a sua comunicação honesta e empática para pacientes e familiares, bem como reuniões periódicas da equipe clínica onde se possa discutir os erros ocorridos e desenvolver maneiras de evitar a sua repetição. Como dizem os japoneses: os erros são como tesouros, pois eles podem iniciar um novo ciclo no qual se evita a sua repetição.

Os conflitos de interesses

O segundo artigo[3] é um convite à reflexão e traz uma compilação de situações clínicas que ocorrem no dia a dia de qualquer médico e nas quais essas pequenas questões éticas podem nem mesmo ser percebidas, como quando se prioriza o atendimento a representantes de laboratórios em detrimento dos pacientes que ficam aguardando na sala de espera, quando agimos com base em uma suposta superioridade moral da classe médica (a famosa húbris ou arrogância médica), quando não enxergamos o impacto clínico negativo dos conflitos de interesse de relações indevidas entre médicos e a indústria farmacêutica ou quando achamos normal que as pessoas com mais necessidade de atenção médica sejam as que têm menos acesso aos recursos (a chamada lei de cuidados inversos[4]). Todas essas situações tão comuns em nossa rotina diária podem até ser a norma em nosso ambiente de trabalho, mas Juan Gérvas nos lembra de que ser a norma não significa ser normal ou mesmo aceitável.

Juan Gervás e André Islabão

O filósofo Epícteto já dizia que só deveríamos nos ocupar daquelas coisas que dependem de nós e que estão sob o nosso controle. A ideia de uma ética das pequenas coisas parece estar diretamente relacionada com essa ideia. Costumamos atribuir uma importância desproporcional às grandes questões éticas, mas elas não estão sob nosso controle nem são elas que determinam se seremos bons como médicos e pessoas. Sermos bons depende apenas de nós mesmos e das pequenas ações que realizamos em nossa rotina diária ou dessa ética das pequenas coisas de que nos lembram Mercedes e Juan. E isso é fundamental não apenas para vivermos de forma serena, mas para prestarmos cuidados médicos de alta qualidade científica e humana.

[1] http://equipocesca.org/wp-content/uploads/2019/09/Qu%C3%A9-son-los-SIAP-2019.pdf

[2] http://equipocesca.org/new/wp-content/uploads/2010/11/etica-pequenas-cosas-oporto-2010-octubre.pdf

[3] https://www.espaciosanitario.com/opinion/el-mirador/no-siempre-es-normal-parece-norma-ejemplos-etica-pequenas-cosas-en-clinica_2002157_102.html

[4] https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S014067367192410X

André Islabão é médico clínico geral, formado em Pelotas, RS. Exerce seu trabalho na Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, e em consultório privado. Além disso, é escritor – a obra “Entre a Estatística e a Medicina da Alma – Ensaios Não-Controlados do Dr. Pirro”, livro cujas ideias se entrelaçam de maneira muito natural à filosofia da Slow Medicine. Recentemente publicou o livro “O risco de cair é voar“. André é também autor do blog andreislabao.com.br

2 Comentários

  1. E exatamente o que eu como paciente espero do meu medico!!!
    Ainda bem que tem médicos que pensam da mesma maneira.
    Os pacientes desde sempre esperam em atendimento medico mais humano.

  2. Maravilhoso, o livro deles está sempre em cima da minha mesa , Sa e Salvos , livres procedimentos desnecessários.obrigada Andre

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