A Medicalização da Vida

março 19, 2019
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Por Jaqueline Doring Rodrigues:​

Nunca se deu tanta importância, em outro momento histórico, para os diagnósticos como se tem feito na atualidade. Fato este corroborado pelo aumento progressivo do número de códigos da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), associado a necessidade de resoluções rápidas, exames complementares cada vez mais complexos e de tratamentos medicamentosos em detrimento das medidas comportamentais.Muito dessa busca associa-se ao desejo de uma solução comprimida a ser tomada em horários específicos, com pouca ou nenhuma consciência do que ocorre em seu corpo por trás do sintoma que surgiu.O centro de Pesquisa de Cuidados Primários em Erros de Diagnóstico, da Harvard Medical School, considerando o processo implicado na excessiva realização de diagnósticos como um problema de saúde pública, visto que podem gerar sofrimento e estigma de doença na população, desenvolveu um projeto com este tema. No dia 6 de novembro de 2018 foi publicada uma Declaração daquele estudo nos Anais de Medicina Interna, intitulada “Dez princípios para um diagnóstico mais conservador e cuidadoso”. Sabe-se que erros de diagnósticos e atrasos são as principais queixas de negligência médica. Por outro lado, conforme traz o texto, a Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos sugere que todas as pessoas experimentarão pelo menos um grave erro de diagnóstico durante sua vida e isso, em parte, pelo excessivo uso de testes diagnósticos dispendiosos e/ou potencialmente prejudiciais. Assim, recentemente iniciativas como a do “Choosing Wisely” bem como do “Movimento “Slow Medicine” encorajam de forma responsável os médicos e os pacientes a usar menos testes diagnósticos quando não esclarecidos o verdadeiro impacto no tratamento. Ainda, retomam a reflexão que deve ser realizada a fim de equilibrar o subdiagnóstico e o rastreio excessivo de doenças, os quais mais estigmatizam um problema do que o solucionam. Para isso há que se ter um conjunto de princípios gerais que apoiem a tomada de decisões e auxiliem na educação continuada dos profissionais. Dessa forma, esses princípios podem orientar as decisões de políticas de saúde trazendo melhora dos resultados e, naturalmente, redução de custos, pautadas na segurança do paciente e do profissional.Assim como dois dos fundamentos da Slow Medicine, Tempo e Uso Parcimonioso da Tecnologia, um dos princípios abordados refere-se a promoção do cuidado com base na escuta atenta da história clínica e com menor ênfase na necessidade do resultado do exame. Exemplificam que o paciente ao procurar o atendimento tende a querer solucionar o problema que o aflige, o qual nem sempre se relaciona a obter um diagnóstico. Temos de explicar que muitas vezes o diagnóstico é o processo e não o resultado, pois evolui com o tempo. Sendo assim, nem sempre é necessário o exame para confirmar. O médico na ânsia de querer definir o agente, denota uma importância aos exames e passa essa informação, ainda que indiretamente, ao paciente. Desta forma, perde-se o paciente como um parceiro neste diagnóstico de maneira colaborativa, o qual poderia manter-se atento aos sintomas sentindo-se responsável pela sua saúde, afirmam os autores. Ressaltam ainda que, neste momento, instala-se um fluxo de raciocínio em que o paciente somente entende como se seus sintomas somente estivessem sendo levados a sério caso fossem solicitados exames, sobrevalorizando um diagnóstico em presumidamente mais preciso em detrimento de suas preocupações. Torna-se mister a necessidade de desmistificar a crença de que o cuidado e o rigor estão associados a solicitação de testes complementares ou encaminhamentos para especialistas. O autor salienta que utilizar os testes como atalhos, soluções alternativas ou substitutos para o esforço humano, expresso no diagnóstico baseado na anamnese e no exame criterioso, constitui numa receita tanto para o subdiagnóstico quanto para o diagnóstico excessivo.Foi avaliado também a importância do desenvolvimento da ciência da incerteza. Muitos exames ampliaram a complexidade e a ambiguidade diagnóstica. O custo, não monetário, envolvido com a proliferação de novas tecnologias, como por exemplo genéticas, que tem baixo valor preditivo pode ser muito alto para o paciente. Nas palavras dos especialistas, para fundamentar a práxis da incerteza necessita-se, essencialmente, da humildade do profissional. Humildade para recorrer a uma medicina mais reflexiva, cautelosa e, em última instância, mais conservadora. Sabe-se que ficar confortável diante da incerteza não é uma tarefa fácil, porém o desafio encontra-se em não ceder à complacência, resignação ou indiferença às preocupações dos pacientes.Uma possibilidade está em desenvolver maneiras sensíveis, atenciosas e eficazes de comunicar a incerteza aos pacientes, de forma que não seja compreendida como falta de expertise ou interesse no cuidado por parte do profissional. Interessante salientar que, conforme evidenciaram, em casos de negligência grave normalmente ocorreram a falta de diagnósticos diferenciais adequados. Sendo assim, pode-se minimizar esses danos ao estabelecer-se de forma precisa as síndromes associadas com as possíveis hipóteses clínicas. Além disso, sugere-se associar o retorno precoce, orientação de possíveis sintomas que necessitam de reavaliação de urgência ou contato por telefone para acompanhar a evolução do quadro. Ademais, necessita-se repensar os sintomas que levam os pacientes a procurar atendimento médico.Mais da metade das consultas são motivadas por sintomas comuns. Geralmente são autolimitados e com melhora em 4 a 12 semanas. Além disso, alguns pacientes preenchem critérios para transtorno depressivo, de ansiedade ou somatoformes. Conforme o artigo, os sintomas pouco específicos são o tipo de atendimento que mais cresce nos Estado Unidos. Estão enraizados em circunstâncias sociais, problemas financeiros, estresse familiar e estresse no trabalho. Mesmo quando identificado esses problemas, os médicos recorrem ao repertório limitado de testes e tratamentos medicamentosos, com pouca resposta. Schiff et al descrevem a importância de afastar, exaustivamente, a tendência de descartar múltiplas doenças raras e, assim, entender as causas biológicas, que conduzem para abordagens mais ponderadas.A continuidade do cuidado é a base da prática clínica criteriosa, dizem os autores, que norteiam essa filosofia num princípio fundamental para o diagnóstico cuidadoso. Se não houver uma relação-médico paciente confiável, a prática clínica torna-se defensiva e menos produtiva. Sistemas de saúde que otimizam a continuidade relacional e informacional têm melhor desempenho e menos custos. Os pacientes valorizam o vínculo e, para o médico, ter o conhecimento prévio sobre o estado normal de saúde de uma pessoa, facilita a estratégia diagnóstica, principalmente quanto à restrição de exames.Baseado no texto, constitui-se fundamental ter tempo para ouvir, observar, discutir e pensar , sendo estes fatores decisivos para um bom diagnóstico, sua ausência ou excesso: “O tempo é a moeda do atendimento clínico”. A equipe pode montar agenda de anotações de recados dos pacientes, ter a rotina de ligar para saber da evolução do quadro em casos especiais, e ter uma rede de profissionais que possam dividir as demandas, como enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, assistentes sociais e fisioterapeutas. Nessa estrutura, operacionaliza-se o tempo, otimizando a observação clínica e vigilância, reduzindo a sensação de negligência e aumentando a satisfação.O medo traduzido por uma preocupação desproporcional com sintomas inespecíficos são encorajados pela divulgação na mídia de estratégias para diagnóstico precoce e da triagem preventiva de doenças como o câncer, nem sempre baseadas em boas evidências científicas. Existem controvérsias sobre os esforços no rastreamento para muitos tipos de câncer, como no teste de antígeno específico da próstata, na detecção precoce de câncer de mama, da tireóide, do pulmão e do ovário. Sendo assim, Schiff et al., sugerem avaliar, cuidadosamente, os pacientes e seus riscos para identificar quem pode ser melhor abordado de forma conservadora.Outra questão, porém não abordada no artigo, consiste na falta de transparência, de maneira geral, das indústrias da saúde e nos estudos tendenciosos envolvidos. De forma primordial urge a necessidade das agências reguladoras governamentais verificarem a qualidade das pesquisas, especialmente dos laboratórios de medicamentos, e exigir, de forma criteriosa, os dados completos e imparciais das pesquisas. Diversas empresas farmacêuticas destinam um custo muito elevado para publicidade no intuito de influenciar as decisões terapêuticas dos médicos. Sabe-se que o custo em propaganda é, em média, superior a duas vezes o valor que gastam com pesquisas científicas. Muitas vezes, entramos nesse comércio de forma sutil e ingênua sendo cúmplices de manipulações que influenciam a tomada de condutas. A Slow Medicine propõem justamente o incentivo aos profissionais a participarem ativamente da modificação dos padrões atuais do exercício da profissão, despertando no médico a importância de se fazer uma análise crítica de sua própria atuação.Um medicamento não pode ser comparado com qualquer outro produto de consumo,assim como a realização de exames técnicos não pode ser desvencilhada da avaliação da real necessidade do paciente, deveriam ser indicados com base científica confiável, alheios ao comércio ganancioso. A manipulação de condutas em saúde e de pessoas vulneráveis de forma velada na sociedade não pode passar despercebida diante dos nossos olhos. Os prestadores do cuidado, em especial os médicos e seus conselhos representativos, precisam estar atentos e alinhados com base nos seus princípios morais e éticos para não serem influenciados por este marketing cruel.Afinal, são os próprios pacientes que ao comprarem o remédio ou serem reféns de exames diagnósticos, arcam com os custos desse processo. Precisamos proteger os pacientes, nesse sentido, para além do diagnóstico e tratamento. A intenção não é propor verdades, o movimento Slow Medicine acredita que é a partir das dúvidas que se aumenta o conhecimento. Nossa função, como agentes da saúde, consiste em estarmos atentos ao que realmente traz benefícios e melhorias para uma vida plena e saudável, numa prática médica equilibrada e ponderada.​Liquefazer o egoísmo institucionalizado é tão sério e urgente quanto o fomento ao altruísmo inerente à natureza humana. Enquanto vivermos medindo nossas ações no tempo cronometrado somente para satisfações de prazeres egoístas efêmeros, estaremos reduzindo nossa capacidade de desenvolvimento dos potenciais humanos em cifras de tijolos. E será através deste barro refeito e remoldado que as grandes empresas continuarão a dar o ritmo dos nossos passos enquanto caminhamos em círculos, cada vez mais doentes, julgando estar construindo algo para nós.As pessoas precisam sentir que há um propósito nobre e humano no trabalho que desenvolvem. Quando o foco é genuinamente no paciente e na arte da medicina, não há espaço para medicamentos de laboratórios específicos, exames onerosos de pouca resolutividade clínica, comprimidos no lugar de modificação do estilo de vida, bem como no rastreamento obstinado de doenças que não cabem serem investigadas. Como ouvi de um colega recentemente: “temos que trazer um pouco de pessoa para a doença.” Assim, naturalmente voltamos ao entendimento do extraordinário que é a natureza que nos é própria, em meio a medicalização da vida que por nós mesmos foi imposta. Como disse o indiano Swami Prajnanpad, “O altruísmo é a arte da precisão. Não consiste em dar desmesuradamente, mas sim em estar próximo do outro e de suas necessidades”. A mudança de padrão na saúde que necessitamos precisa estar vinculada à humanidade constante, ao desejo do bem público e de servir ao outro de forma transparente.Fala-se muito em ética na saúde, o que não se refere apenas ao que é correto fazer, mas principalmente ao que é bom ser, no trabalho ou em casa, em todas as instâncias da vida.​​

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Jaqueline Doring Rodrigues: Nasci em 4 de dezembro de 1985 em Viçosa, Minas Gerais; ainda criança mudei-me para o estado do Rio Grande do Sul, onde realizei parte de minha formação acadêmica. Formei-me na Faculdade de Medicina da Universidade de Passo Fundo, RS, em dezembro de 2011. Fiz Residência de Clínica Médica pela Universidade Fronteira Sul em Passo Fundo, e Residência de Geriatria na Santa Casa de Curitiba. Sou pós-graduada em Cuidados Paliativos pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e secretária da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames), regional do Paraná.

 

2 Comentários

  1. Texto incrível!!!!

  2. Jaqueline, reflexão necessearia para saborear no dia a dia… muito obrigada! ☺️

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