A perna quebrada e as muletas do coração

abril 14, 2021
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Por Suzana Vieira

“Dai-me um ponto de apoio e levantarei o mundo.”

(Arquimedes)

Desde quando eu caí, fico refletindo sobre o processo do adoecer e da cura. Faz pouco mais de dois meses que escorreguei na sala da minha casa, na pequena correria do dia a dia, e ainda não entendo completamente como e por que isso aconteceu. Acho que muitos doentes se perguntam a mesma coisa. A queda foi tão caprichosa que tive várias pequenas fraturas no tornozelo, uma lesão considerada grave. Em termos técnicos, tive uma fratura trimaleolar do tornozelo direito. Fico imaginando se eu aceitaria melhor o ocorrido se tivesse sofrido esse acidente fora de casa e com um terceiro fator envolvido, algo como um atropelamento de bicicleta, cair em um bueiro, algo assim. Mas eu simplesmente caí, e caí feio. Poderia ter sido melhor, poderia ter sido pior. Algumas pessoas morrem de quedas em casa. Resolvi classificar minha queda como uma pequena fatalidade. Mas e agora? Eu só sabia que a recuperação era longa, e que eu teria que ser (duplamente) paciente. Ser slow agora não era alternativa, mas a única opção. 

A fratura precisava de cirurgia, não havia dúvida. Mas foi necessária uma etapa intermediária entre o primeiro atendimento e a cirurgia definitiva, na qual coloquei um fixador externo. Para quem não sabe, é aquela parafernália metálica que fica por fora da pele, circundando a perna, com o objetivo de estabilizar o membro fraturado. Um fixador externo não é algo muito bonito de se ver (e menos ainda de se conviver), mas precisei dele para que a pele aguentasse a cirurgia definitiva mais para frente. Foram dez dias de fixador, durante os quais fiquei absolutamente dependente de terceiros, quase como um bebê. Eu precisava de alguém para trazer o alimento, para me levar ao banheiro, me dar banho. Como a maioria das casas, a minha não tem acessibilidade (e quem de nós escolhe sua casa prevendo que ficará com sua mobilidade comprometida?). Além da dependência, senti a impotência diante das circunstâncias, e a falta de controle que temos sobre esse tipo de acontecimento, sobre os acidentes domésticos e sobre algumas doenças que parecem cair como um raio na cabeça de algumas pessoas. Fazer coisas básicas como andar, trabalhar e dirigir parecia longínquo. Mas, ao mesmo tempo em que pensava na minha “pequena fatalidade”, eu sabia que seria transitório, e que eu voltaria a fazer tudo o que fazia antes. Sem dúvida essa perspectiva de que a limitação não seria definitiva ajuda muito, mas nem por isso o processo deixa de ser doloroso para quem estava, há um minuto, em sua plena forma física. 

Passei meu aniversário com fixador externo e nesse dia foi postado na página do Facebook do Slow Medicine, um depoimento do médico Adib Jatene em que ele dizia “todo indivíduo é um ser aflito, angustiado e com medo; e o contrário de medo não é coragem, mas fé. Ele precisa acreditar em quem o trata”. Ele estava falando dos médicos, que certamente fizeram uma diferença enorme na minha recuperação. Mas eu extrapolei suas palavras à toda equipe de saúde, de A a Z, e incluí no pacote as pessoas comuns que cuidaram de mim. Essa fé de que as coisas correriam bem vinha de todas essas pessoas. Eu saía da posição de cuidadora para a de pessoa cuidada, e esse era um papel que eu há muito tempo não desempenhava. Eu me dei conta de que mesmo quem se propõe a cuidar pode estar ferido, e nem todas as feridas são assim tão evidentes quanto uma perna quebrada

Chegou o dia da segunda cirurgia, e tudo correu muito bem, com a recolocação de todos os fragmentos ósseos nos seus locais originais com a ajuda de uma haste e de alguns (vários) parafusos. Não cheguei a contar os pontos que levei, mas confesso que contei os parafusos, no RX (foram nove!). Um amigo meu, ortopedista, comentou que a reconstrução lhe parecia uma verdadeira obra de arte e, surpreendentemente, essa frase brincalhona foi um grande alento para mim. De verdade. Na fragilidade, as palavras assumem um significado diferente.

Agora os desafios eram outros. Uma neuropatia traumática, já presente desde a fase do fixador, agora exercia o papel de protagonista dos meus dias.  Queimação, formigamento, dormência, dor, frio, pressão, repuxo, e algumas outras sensações que eu não nem saberia nomear, passaram a participar de todos os momentos do meu dia. Eram meus nervos respondendo às agressões que sofreram, e tentando se adaptar ao processo das duas cirurgias. Sim, essas sensações seriam “normais” no processo, diziam meus cuidadores dedicados. Assim como a dor que eu sentiria quando a fisioterapia se iniciasse. E novamente as palavras dos outros me trouxeram uma perspectiva diferente para a minha vivência. O ortopedista fez uma analogia de quando a gente está no mar, na beira da praia, levando aquele “caldo”, e para ficar confortável a gente tinha que passar a arrebentação das ondas. Eu teria que ultrapassar a dor. Naquela hora, eu olhei para a parede ao lado pensei “Aff, vou ter que passar ainda por isso?” Ele, novamente usando as palavras para guiar, disse: “Olha nos meus olhos, avestruz é que põe a cabeça para dentro da terra para fugir dos problemas”. Simples assim: encare o processo. Confesso que não deixei de desejar que o tal processo simplesmente desaparecesse do meu caminho, mas saber que era possível passar por ele, e que eu não estaria sozinha nos meus passos, me fez “tirar a cabeça do buraco”. 

Poucos dias depois da cirurgia, eu poderia começar a fisioterapia. Recebi uma lista de profissionais do meu ortopedista e fiquei tão perdida que recorri a uma fisioterapeuta que já tinha cuidado de mim. Todo o trabalho é voltado a recuperar a amplitude do movimento e a função de andar, e eu não via a hora disso acontecer. Minha fisioterapeuta é mais baixa em estatura e lembro do momento em que fiquei pela primeira vez de pé, novamente com a ajuda dela. A sensação era que eu ia cair do alto dos meus 175 cm e quebrar mais alguma coisa, algo comum em quem fratura um pé ou perna. Mas ela foi firme, e disse para eu segurar em seus ombros. Por um momento, achei que não ia dar certo e que ela não aguentaria meu peso. Eu já me via caindo de novo, já quase podia sentir a dor de uma nova fratura.  Mas a convicção dela foi tamanha que, de repente, me vi de pé, segurando em seus ombros, sentindo a gratidão que as pequenas conquistas nos trazem. Seguimos com o treino do andador e, dias depois, as muletas vieram participar dos meus dias. Mais uma vez me surpreendi comigo mesma, tão acostumada a cuidar dos outros, sem perceber o quanto eu já não precisava do andador. Foi a fisioterapeuta quem me disse que eu já estava “levando o andador para passear”, ou seja, minha autonomia vinha voltando, e eu nem sequer me dava conta disso. E olha o cuidado alheio fazendo sua mágica novamente…

Agora estou usando as muletas, e penso nelas em sentido figurado. Penso nas muletas de que precisamos para transpor momentos difíceis. Podem ser terapias, medicações, substâncias, pode ser até comida.  Elas ajudam a tirar a carga de parte de você que está ferida por um tempo, seja esse tempo curto ou muito longo. No meu caso, minhas muletas servem para tirar a carga do pé machucado, mas existem muitas muletas para a alma. Usei todas essas outras muletinhas para tolerar a dor, para poder dormir, para diminuir as sensações desagradáveis da neuropatia no pé. Já não preciso mais de algumas delas, mas de outras ainda preciso. Acho, até, que muletas são parte dessa trajetória complicada que chamamos de vida.

Fico pensando como os profissionais de saúde podem ser as muletas do mundo nesse processo de acolhimento, de passar confiança, de estar presente, de estimular a fé no tratamento, de confiar. Penso no nosso papel enorme em ajudar alguém a seguir seu percurso até que as muletas não sejam mais fundamentais, mas sirvam para tirar a carga durante o processo de cura até chegar a hora que as levemos para passear conosco. Minha perna quebrada me mostrou que as muletas têm muitos formatos. Podem ser a comida quentinha trazida na cama, ou as mãos cuidadosas que ajudam no banho. Podem ser o comentário bem-humorado do amigo, ou o belo texto publicado numa rede social. Podem ser as palavras de coragem na boca do médico, ou os ombros firmes da fisioterapeuta. Muletas podem vir em vários formatos. Às vezes – vejam só – vêm até formato de muletas mesmo.


Suzana Vieira: Sou natural de Pernambuco, onde cursei a graduação em medicina. Mudei para São Paulo em 1999 para fazer as residências médicas em clínica médica e endocrinologia e metabologia no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Também na FMUSP concluí o doutorado na área de diabetes. Vivenciei muito da academia e tive uma breve passagem pelo mundo corporativo. Senti a necessidade de retornar à assistência e lidar mais com pessoas e menos com números. Como fruto dos estudos para retomada ao contato com paciente, comecei a escrever para meu blog. Em 2015, voltei às atividades de assistência em tempo integral. Atualmente, trabalho em consultório particular e no Sistema Único de Saúde. Gosto muito de viajar, contemplar a natureza e desfrutar o tempo com a minha filha, família, amigos e bichos de estimação.

1 comentário

  1. Muito interessante e verdadeiro. É tudo dentro de uma perspectivar de ” benignidade”. Todas as pessoas que passam por uma alteração de sua saúde integral e plena, física e psíquica, deveriam atentar para o PROCESSO. Ou seja, os tempos necessários e os procedimentos sequenciais exigidos para a volta à normalidade, quando pode ser total. Maravilha! Mas, nós médicos, precisamos lembrar disso, independente da especialidade! E vem a cirurgia ( procedimento pontual), recuperação……no caso de cânceres quimio…..radio……fisioterapia….nausea…..e muito mais! O primeiro procedimento, ficou lá atrás…….mas o paciente segue enfrentando-o, às vezes, por longo tempo. A busca do tratamento se dá para que se siga a vida, na melhor qualidade! Mas lembremos da dolorosa trajetória que, no mais das vezes, o doente passou. E, como ficará a vida desse em seu amplo sentido? Social, familiar, cultural e do trabalho? A vida não se constitui de atos pontuais. Os processos e os caminhos a constituem. Que sejam valorizados pelos profissionais de saúde e, claro, pelas pessoas e atores envolvidos! Retornar….

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