Acupunturiatria e Slow Medicine: Convergências Filosóficas da Arte de Cuidar

agosto 20, 2018
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Por Paulo Fabrício Nogueira Paim:

Vivemos tempos sombrios em nossos dias. A complexidade advinda da evolução triunfante das ciências modernas, uma maravilha certamente, nos tem sequestrado em corpo e mente à uma sedutora dimensão teórica, que nos explica minuciosamente em frações ricamente mapeadas, mas esboça sua extrema fragilidade ao não conseguir manter seu foco na visão panorâmica de seu objeto de estudo.

No campo das ciências médicas, o médico canadense Willian Osler (1849 – 1919), conhecido como o “Hipócrates moderno”, profetizava sobre um horizonte futuro, onde as especialidades, tão necessárias e profícuas, colapsariam ao dissiparem-se em enumeras áreas de estudos sistêmicos, conduzindo seus pesquisadores a um profundo conhecimento das partes, e por consequência, a um fatal distanciamento da compreensão das pessoas como entes complexos e holísticos, dotados de dimensões abstratas que ultrapassam sua mensurável condição biológica.

Devemos lembrar que a medicina moderna teve seu berço na antiga Grécia, onde filósofos teóricos e humanistas práticos dedicavam-se a observar e interpretar o corpo e seu funcionamento, e a buscar soluções possíveis para os distintos males e infortúnios que os acometia. Evoluindo com a observação e identificação de diferentes padrões semiológicos que viriam futuramente constituir as bases conceituais da racionalidade biomédica que aplicamos hoje no exercício das inúmeras especialidades médicas e assistenciais que praticamos.

Na China antiga, o desenvolvimento filosófico e de sua racionalidade médica, iniciou-se antes mesmo do apogeu dos gregos. Tendo a acupuntura sua origem na Medicina Tradicional Chinesa (MTC) que evoluiu com métodos observacionais empíricos, e defendia a teoria de que o homem deve permanecer em equilíbrio com a natureza e seus princípios, pois é parte integrante desta. Segundo a MTC quando o homem desrespeita os princípios que regem a natureza, pode ocorrer perturbações fisiológicas originando disfunções e doenças diversas. Sendo assim, a atuação do antigo médico chinês consistia em harmonizar a relação dos pacientes com o meio, atuando preventivamente, através da orientação de hábitos para uma vida mais saudável, e utilizando técnicas e conhecimentos de herbanário, métodos físicos e procedimentos como a acupuntura, a aplicação de moxas, ventosas e práticas corporais, capazes de melhorar a qualidade de vida destes, seja controlando seus sintomas ou revertendo condições diversas, devolvendo o estado de harmonia orgânica, e consequentemente a saúde.

O mundo girou, e cá estamos nós na era contemporânea. A medicina dos antigos gregos incubou-se na Europa e se fortaleceu em uma sólida base cartesiana, conquistando o mundo, ganhando grande desenvolvimento tecnológico e sendo amplamente aclamada por sua precisão e seus resultados.

No mundo chinês, a Medicina Tradicional Chinesa manteve-se isolada do mundo ocidental, abrindo-se a partir da década de 50, quando passou a ser amplamente buscada e estudada pelos médicos ocidentais, sendo submetida à mesma lente científica que cunhou a medicina ocidental, criando uma aproximação entre as duas racionalidades.

Em nosso país, em 1988 a acupuntura foi introduzida no Sistema Único de Saúde, sendo reconhecida como especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina em 1995, e pela Associação Medica Brasileira em 1998.

Passaram-se 20 anos, e hoje a acupunturiatria é parte do arsenal diagnóstico e terapêutico da medicina moderna, permeando as academias e interagindo com as mais de 50 especialidades médicas reconhecidas em nosso país.

O médico acupunturiatra em sua essência é hoje um médico generalista, dotado de habilidades clínicas e intervencionistas, fazendo uso da racionalidade científica e de conhecimentos ancestrais, para auxiliar pacientes e apoiar diversas especialidades médicas a obter melhores resultados terapêuticos. 

Na atualidade sabe-se que os antigos conceitos de Yin, Yang, Qi, meridianos, e tantos outros citados em clássicos chineses, encontraram suas explicações em bases biomoleculares e neurofisiológicas ligadas a trajetos nervosos, vasculares, tendíneos, musculares e suas relações com as complexas conexões do sistema nervoso central e periférico, e com o sistema nervoso neurovegetativo, onde se busca a regulação de suas atividades para corrigir disfunções orgânicas, psíquicas e emocionais, mediante o estudo aprofundado dos dermátomos, miótomos e viscerótomos, e da aplicação de diferentes frequências e amplitudes de ondas elétricas neuromoduladoras com finalidades especificas. Em síntese, há décadas a acupuntura vem caminhando de suas bases empíricas para uma robusta ciência neurofisiológica em progressivo desenvolvimento, sendo atualmente pesquisada em diversos países do mundo com ênfase nas metodologias fundamentadas em melhores desfechos conforme preconiza a moderna Medicina Baseada em Evidências. Não há mais misticismo, esoterismo ou energias magicas.   

Assim como a medicina contemporânea traz em seu arcabouço elementos ancestrais construídos pelos antigos médicos gregos, assimilando as novas tecnologias e novas explicações elucidadas pelos instrumentos tecnológicos, a acupuntura contemporânea também reconhece a ciência como um norte seguro e legitimo, atualizando-se ha cada nova evidencia científica, mas respeitando os conhecimentos observacionais acumulados nos 4.000 anos de experiência dos pensadores da Medicina Tradicional Chinesa, reconhecendo que para sabermos para onde vamos, jamais devemos esquecer de onde viemos. Analogicamente, poderíamos afirmar que para dirigirmos um veículo, devemos olhar para frente, nunca nos esquecendo de olharmos no retrovisor, tornando assim nossa trajetória mais segura e consciente.

Tendo sua prática clínica pautada nos princípios da individualização, no auto-cuidado, na prevenção, na busca por uma melhor qualidade de vida, na compaixão e no uso parcimonioso da tecnologia, a acupunturiatria tem em sua filosofia assistencial uma convergência inquestionável à filosofia Slow Medicine, corroborando junto a esta para a prática de uma medicina mais justa, sóbria e respeitosa, como nos ensinou o médico italiano Marco Bobbio em sua visita ao Brasil em 2016 quando o movimento foi formalmente fundado em solo brasileiro. Nesta confluência de princípios e valores, a Medicina Sem Pressa e a Acupunturiatria buscam de igual forma resgatar os antigos preceitos galênicos dispostos na máxima “Primum non nocere”, que por sua vez invoca o conceito da não maleficência e do cuidado como elementos indispensáveis na arte de cuidar, diagnosticar, tratar e explicar. 

Que nosso deslumbre com as novas tecnologias e com as novas áreas de conhecimento não nos entorpeça a ponto de nos cegar para nosso precioso legado universal, a ponto de amputar nossas raízes, fazendo-nos esquecer quem somos hoje e quem um dia fomos.

Que a filosofia Slow Medicine permeie todas as especialidades médicas e todas atividades assistenciais em saúde, nos lembrando sempre que as ciências médicas devem servir as pessoas, e não o contrario, e que a Acupunturiatria se fortaleça mais há cada dia nos consultórios, nos ambulatórios e nos hospitais mantendo sua constante evolução em pró a melhoria da qualidade de vida das pessoas, diversificando e enriquecendo a medicina contemporânea com sua arte de cuidar, confortar e amenizar o sofrimento humano.

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Paulo Fabricio Nogueira Paim é médico, poeta e guitarrero. Coordenador do Serviço de Cuidados Suportivos e Controle de Sintomas do Hospital São Vicente/FUNEF e do Programa de Medicina Hospitalar do Hospital da Cruz Vermelha Brasileira Paraná, foi presidente da Academia Brasileira de Medicina Hospitalar e participa entusiasticamente do Movimento Choosing Wisely Brasil.

1 comentário

  1. Grande Dr.Paulo Paim,
    seu texto é de uma lucidez difícil de ver igual. Contextualizou a MTC e a acupuntura historicamente, e num paralelo com o desenvolvimento da própria medicina hipocrática, mostrando um denominador comum entre os dois sistemas médicos, justamente na contemporaneidade da ciência. Na verdade, seja aqui ou qualquer parte do mundo, no oriente ou no ocidente, em qualquer tempo, somos nós médicos realizando a Medicina, e não outro profissional de saúde, com todo respeito às demais áreas da saúde. Porque, em se tratando de Medicina, nunca houve misticismo, esoterismo ou energias mágicas. Os antigos médicos chineses nunca recorreram a espíritos, e sempre buscaram na materialidade, no melhor sentido do termo, explicações racionais para as patologias e terapêuticas correspondentes. Slow medicine é uma abordagem que contempla tudo isso dentro da arte médica de cuidar. Obrigado por trazer para a Acupunturiatria uma abordagem tão importante como essa.
    Abraço.

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