Alzheimer: uma doença, diversas visões, múltiplas histórias

outubro 1, 2020
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Algumas doenças são visitas: chegam sem avisar, perturbam a paz da casa e se vão.
É o caso de uma perna quebrada, uma apendicite, um resfriado, um sarampo.
Passado o tempo certo, a doença arruma a mala e diz adeus.
E tudo volta a ser como sempre foi.
Outras doenças, vêm para ficar, e é inútil reclamar. Se vem para ficar
É preciso fazer com elas o que a gente faria caso alguém se mudasse definitivamente para a nossa casa: arrumar as coisas da melhor maneira possível para que a convivência não seja dolorosa.
Quem sabe se pode até tirar algum proveito da situação?
Não brigue com a doença. Trate de aprender o que ela quer ensinar.
Ela quer que você fique sábio.
Ela quer ressuscitar os seus sentidos adormecidos.

Sobre o Tempo e a ETERNAidade
Rubem Alves

Introdução

A Doença de Alzheimer (DA) foi descrita em 1906 por Alois Alzheimer, psiquiatra e neuroanatomista alemão. Embora sua causa não tenha sido encontrada, os conhecimentos sobre ela aumentaram, assim como sua prevalência em uma população que envelhece. Mais de um século depois permanecemos com o desafio de cuidar das pessoas acometidas pela demência – uma doença do cérebro incurável, degenerativa e progressiva. 

Há dificuldades intrínsecas em se chegar ao seu diagnóstico, pois este só é certificado após a morte. Mas, uma vez que tenhamos concluído o processo investigativo e chegado a esta possibilidade, o diagnóstico é difícil de ser dado, devido ao seu impacto não só sobre o paciente e sua história de vida, mas em todas as vidas e histórias ao redor dele. Exige de todos um olhar compassivo e generoso no contexto de um convívio intenso e, muitas vezes tenso, com os familiares do portador da DA.

O foco atual, como grande diferencial no tratamento das demências, mudou da tentativa de curar para a excelência no cuidar. Para tanto, é necessário informar e conscientizar sobre esta patologia tão presente em nosso meio. O mês de setembro foi nomeado como “roxo” para aumentar a consciência sobre a DA. Longe de adotarmos os meses coloridos como slogans que incentivam a “medicina do medo” , o Movimento Slow Medicine propõe uma reflexão que venha a valorizar os conteúdos humanos que permeiam o complexo cuidado que ela exige.

Entendendo a demência

Quando uma doença é chamada pelo nome de quem a descreveu, provavelmente não sabemos muito sobre ela.

August Bier 1891-1949

A DA envolve a deterioração da função mental com declínio generalizado das habilidades intelectuais, acompanhado muitas vezes de mudança de comportamento, de forma a comprometer as funções e as atividades normais de seu portador. 

Geralmente, tem início após os 65 anos. Quando ocorre antes, está relacionada a herança genética (5% dos casos). Já a DA de início tardio, corresponde a 95% dos casos e sua prevalência aumenta conforme a idade. 

A DA está associada ao sexo feminino e a baixa escolaridade. Outros fatores de risco de caráter mutável a ela relacionados são hipertensão, diabetes, obesidade, depressão, tabagismo, sedentarismo, uso abusivo de álcool, hipercolesterolemia e isolamento social.

O curso da DA pode ser compreendido em três fases. A inicial (demência leve) é caracterizada por déficits cognitivos como disfunção de raciocínio, aprendizado, julgamento, fala e, especialmente da memória. Na fase intermediária (demência moderada) há piora do quadro anterior, ocorrendo ainda perda de pensamento abstrato e o não reconhecimento dos familiares. O déficit cognitivo é combinado com sintomas psíquicos e orgânicos, como início de incontinência urinária e fecal. As pessoas necessitam de ajuda para executar as tarefas de rotina e higiene, exigindo contínua vigilância.  Na fase grave (demência avançada) observa-se transtornos de humor e sintomas paranoides, pensamentos delirantes, além de alteração de hábitos de sono. Chega-se a um estágio de dependência total.

Entre as doenças neurológicas em Cuidados Paliativos, a DA tem a sobrevida mais longa, numa evolução que pode chegar a mais de quinze anos, variando de paciente para paciente. O fato é que, com o avançar da doença os pacientes tornam-se cada vez mais dependentes e necessitam de atenção em tempo integral. Pode haver necessidade de contratação de cuidadores, enfermeiros, internação em casa de repouso ou institucionalização – o que não é possível para a grande maioria das famílias brasileiras. 

Sem políticas públicas de apoio, o cuidado recai sobre o familiar, que tem de arcar com custos diretos e indiretos da DA, além do comprometimento da sua saúde física, mental e emocional. É outra pessoa, em geral uma mulher de meia idade ou idosa, que também necessita de cuidados.

O impacto do diagnóstico

A doença é da pessoa, mas o diagnóstico é da família.

Geralmente, o paciente e/ou o familiar buscam o geriatra ou o neurologista já apresentando sinais iniciais de demência ou são encaminhados por outros profissionais. Tanto o paciente quanto o familiar já passaram por sentimentos de medo, situações de stress e constrangimento. O sofrimento já começa na apresentação de sintomas e suspeita do diagnóstico. Por isso, a condução e o encaminhamento têm de ser cuidadosos, abordando com sensibilidade e respeito cada caso. 

Coisas ruins não fazem parte dos nossos projetos de vida, desta forma nos pegam despreparados para enfrentar um revés nos planos que elaboramos para nossa vida.

A tão apregoada humanização na área da saúde encontra respaldo nos princípios da filosofia Slow Medicine quando adota uma prática caracterizada pelo fator TEMPO, tempo para consultar e tomar decisões, tempo de atenção ao paciente e família, avaliando as expectativas e preferencias. INDIVIDUALIZAÇÃO, um cuidado particularizado onde o foco da atenção prioriza os valores do paciente, onde a história biológica da doença caminha em confluência com sua história biográfica do doente. AUTONOMIA E AUTO-CUIDADO dando ênfase a decisões compartilhadas onde os envolvidos são todos que fazem parte do ambiente de cuidado (família, amigos, vizinhos e outras formas de suporte ou apoio social). Nas demências esses fatores adquirem uma relevância ímpar para a condução do tratamento, proporcionando uma dose de segurança e confiabilidade onde resulta melhor adesão ao tratamento clínico e melhor resposta do paciente, além do cuidado a família que possui duplo papel – cuidadora e merecedora de cuidados.

No caso das demências é importante que, desde o momento do diagnóstico, a família entenda se tratar de uma doença crônica irreversível, que a evolução progressiva para piora é um aspecto clínico inquestionável e esperado, mesmo com os melhores cuidados dispensados, o que pode retardar mas não alterar a condução normal da doença. Que a mortalidade pela demência é alta, e em geral é consequência da desnutrição, de infecções secundárias e/ou outras doenças associadas, como cardiovasculares. 

Esses quesitos expostos de maneira humanizada e sensível por parte do médico e equipe de saúde que irão atender e acompanhar o paciente e família se tornam imprescindíveis para a ciência de decisões e reflexões acerca de um planejamento não só para o momento presente mas que perpasse um planejamento de cuidados a longo tempo.

Laços de família e os sentimentos que norteiam o cuidar

Os filhos estão no nosso projeto de vida.

Nós não estamos no projeto de vida de nossos filhos.

O diagnóstico da DA é uma surpresa que altera a vida da família de uma forma que vai além dos cuidados diários com o portador. Conforme a atenção ao doente vai se tornando cada vez mais intensa, o cuidador informal, aquela pessoa que desponta dentro da família como a disponível para a tarefa de prestar cuidados contínuos, vê-se com menos tempo e energia para se dedicar a ela mesma e ao marido/esposa, ou filhos, irmãos, pais ou seu trabalho, é como se sua vida ou o tempo dedicado a ela lhe fosse roubado, e sem a sua permissão, um ato involuntário do destino que lhe “pregou uma peça” .

Os papéis se invertem. Por exemplo, um pai ou uma mãe com Alzheimer, que talvez fosse uma pessoa importante na tomada de decisões na família, deixa de sê-lo. Um marido que era o mantenedor da família, deixa de poder exercer seu papel profissional. Muitos casais fazem planos para o futuro de gozarem férias numa viagem a longa data planejada, e um diagnóstico de Alzheimer pode mudar drasticamente a realização de um sonho acalentado, às vezes, durante toda uma vida.

Essas e tantas outras situações podem gerar tensões, sentimentos ambíguos, que vão desde a incredulidade do que estão vivendo com lampejos de esperança de voltar a ter uma vida “normal” como era antes do advento da doença.

Pauline Boss, terapeuta americana cunhou com muita propriedade o termo Perda Ambígua, como aprender a viver com um luto não terminado. Um fenômeno que ocorre quando a pessoa ainda não morreu (há a presença física) mas psicologicamente não está mais presente como era antes (ausência psicológica).

As pessoas que vivem perdas ambíguas oscilam entre a esperança e o desespero, emoções que podem amortecer os sentimentos e impedir as pessoas de voltar a ocupar-se de suas vidas.

O luto do cuidador informal de um portador de DA pode ser definido como: “um trabalho de desconstrução da presença e reconstrução da ausência” ¹. 

Surgem sintomas emocionais como: solidão e angústia, esperança e desesperança, culpa, remorso, pensamentos negativos e indesejáveis, acessos incontroláveis de raiva até a somatização de distúrbios físicos como: exaustão, distúrbios do somo e gastrointestinais, dispneia, diminuição da libido, humor depressivo, inapetência, e tantos outros.

Quem acompanha um paciente em Cuidados Paliativos morre devagarinho todo dia, é um luto diário, são pequenas perdas que vão acontecendo no cotidiano. O cuidador de um portador de demência está em luto, mas não se percebe em luto, com isso todas as emoções e sentimentos ambíguos que permeiam o cuidar ficam desprotegidos. As pessoas entendem por luto apenas o luto físico final, quando o corpo morre, porém existem mortes no processo de adoecimento até se chegar à morte física derradeira.

A Psicologia dá o nome de luto antecipatório a todo esse processo de perdas que advém do adoecimento quando cuidamos de alguém que amamos, quando há vínculos que permeiam esse cuidar. ​

O tratamento, ampliado e revisitado

Médico, cura a ti mesmo.

Lucas 4:23

A Medicina não consegue curar uma gama considerável de doenças. Desta forma, é difícil para a Medicina conseguir cumprir suas promessas de cura, a tão almejada cura que todos procuram quando frente a um profissional da saúde, mais especificamente, o médico. 

Nossa sociedade, até culturalmente, deifica a figura do médico, colocando uma aura que pode não responder a essa expectativa. É o que ocorre com as demências, que podem ser tratadas, mas onde a cura ainda está longe de ser uma realidade tangível.

Nesta situação, é exigido do médico uma postura de humildade e humanidade. Na tradição médica somos treinados para curar. Quando não podemos curar, podemos nos sentimos impotentes. É quando o médico tem de evocar sua PAIXÃO pelo trabalho e o motivo da escolha de sua profissão. Resgatar ou reiterar sua COMPAIXÃO, lembrando que podemos e devemos aliviar o sofrimento, prevenir agravos, investir na qualidade de vida – sempre respeitando os desejos dos pacientes e em DECISÕES COMPARTILHADAS com ele e/ou seus familiares.

Atualmente, ainda que existam medicamentos que possam, eventualmente, ajudar a retardar os sinais da DA e controlar as alterações de comportamento, é o tratamento não farmacológico que pode dar assistência ao paciente e seu familiar.

O principal objetivo do tratamento é fazer com que sejam maximizadas e asseguradas ao paciente intervenções e medidas que proporcionem conforto, segurança, melhora ou manutenção de sua condição física, mental e emocional, retardando o declínio de funções e aumentando a auto-estima e bem estar do paciente.

É importante lembrar que os profissionais de uma mesma equipe podem ter experiencias diversas e níveis de conhecimento variados sobre a doença, fazendo-se necessário um entendimento comum sobre o caso e o acompanhamento. Cada um tem seu papel no desafio de assistir o paciente que precisa de cuidados progressivos. 

Tanto o cuidador como a equipe multidisciplinar têm papel fundamental na implementação de técnicas e cuidados, que beneficiam não só o paciente, mas também todos os familiares, além de continuamente apoiar, informar, solucionar dúvidas, discutir os melhores encaminhamentos. Em muitas situações, o cuidador não tem a formação adequada. E, sendo quem está mais presente ao lado do paciente, precisa de informação e orientação. Porque ele só pode cuidar do que conhece que deve ser cuidado. Precisa estar atento aos sinais, aos sintomas, aos agravos, e saber a quem reportar qualquer problema.

Respeitando as decisões e valores

Decisões de fim de vida, jamais deveriam ser deixadas para o fim da vida.

Esta é uma regra de ouro de deve servir a todos, independente do advento de uma doença. Uma responsabilidade que cabe a cada um se queremos assegurar, com um certo conforto, nosso futuro. É a parte que nos cabe fazer com responsabilidade e seriedade.

Vivemos numa sociedade mortal que nega a morte e não possui uma educação para o envelhecimento. Em consequência desta postura ficamos despreparados para enfrentar nossa própria finitude e a morte de pessoas próximas, queridas, das quais jamais gostaríamos de nos afastar. Esse despreparo cria uma lacuna que pode gerar inconformismo e desorganização para lidar com questões relativas a doenças, envelhecimento e morte.

Contudo, o ideal imaginário dos homens de uma vida longa, sem limitações causadas pela idade avançada ou qualquer enfermidade incapacitante está longe de ser realidade. Aceita-se o fato do envelhecimento, mas não se tolera a ideia de suportar os danos impostos por ela. É assim que o ser humano vive e é assim que se desprepara para a vida. 

Em consequência desta falta de aprendizagem, o que vemos emergir é um sofrimento maior no fim da vida, sejam dos portadores de doenças crônicas e seus familiares, que infelizmente e tristemente “empurram com a barriga” questões pendentes para um tempo onde essas mesmas questões talvez não tenham mais tempo útil de serem resolvidas.

Daí a necessidade de se falar dela e sobre ela, aplacando os fantasmas que norteiam esse mistério tão desconhecido e que tanto intriga a existência humana. Somos os únicos animais a termos consciência de nossa finitude e, em virtude deste saber, temos como consequência o sofrimento. Por outro lado, a preocupação com a morte, a consciência de nossa finitude é o que nos torna essencialmente humanos.

Se queremos ser respeitados dentro de nossa individualidade, nosso ponto de vista e nossos valores, é preciso nos fazer conhecer, conversar a respeito do que realmente importa para nós num fim de vida. Conversas sobre a vida e a morte deveriam fazer parte de nossa rotina, não com um tom tenebroso de mal augúrio, mas com o entendimento que  somente o diálogo franco e aberto pode reparar a separação entre o que se “pode” e o que se “deve” fazer, colocando em seu lugar o “melhor” a ser feito.

Não será nas últimas semanas ou dias de vida que compomos a mensagem que queremos ver realizada, mas em todas as décadas que a precederam.

Conclusão

Com o envelhecimento da população, a demência vem se tornando um problema de saúde pública. No mundo todo, há quase 25 milhões de pessoas com DA, com mais de 4 milhões de casos novos a cada ano. Isso fará com que, em apenas 20 anos chegue em 81 milhões. 

Pensando além das dimensões epidemiológicas, temos a frente o desafio de não só desenvolver mais conhecimentos sobre a DA, mas de humanizar e melhorar os cuidados com os pacientes.  

Já sabemos que, dependendo da qualidade desse cuidar, o portador pode apresentar melhor evolução de seu quadro clínico e retardar a evolução dos estágios da doença o que, por si só já mostra um ganho considerável e positivo.

A angústia sentida pelos cuidadores pode ser mitigada por um bom tratamento, grupos de apoio e pela proximidade de amigos e da família. Dessa etapa tortuosa, o sentido do que foi ofertado ao ato de cuidar e o quanto crescemos como seres humanos nessa doação de amor são a grande lição que fica ancorada nas lembranças reconfortantes e enriquecedoras do que significamos uns para os outros. ²​​

PS: A imagem que ilustra o post é de Auguste D, a primeira paciente que tem o diagnóstico da doença que posteriormente ficou conhecida como doença de Alzheimer, quando ele descreveu as placas senis e os emaranhados neurofibrilares, observados na autópsia cerebral.

______________

Andrea Prates é médica geriatra e colaboradora do Movimento Slow Medicine Brasil. Tem seu foco de trabalho voltado para a Geriatria Preventiva , os desafios do envelhecimento feminino e as políticas públicas relativas ao envelhecimento populacional. Vive e trabalha em São Paulo.

Vera Bifulco
Psicóloga Clínica, Psicooncologista, Integrante da Equipe de Cuidados Paliativos do ICAVC – Instituto do Câncer Dr. Arnaldo Vieira de Carvlho (março 2020),  Integrante da Equipe Multiprofissional de Cuidados Paliativos do Setor de Cuidados Paliativos da Disciplina de Clínica Médica da Unifesp-EPM (Período 2002 a 2007). Aperfeiçoamento em Gerontologia Social e em Psico-Oncologia pelo Instituto Sedes Sapientiae. Mestre em Ciências pelo Centro Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde da Unifesp-EPM, Co-organizadora do livro Câncer: Uma Visão Multiprofissional, 2010,Co-autora do livro Cuidad os Paliativos – Conversas Sôbre a Vida e a Morte na Saúde, Co-organizadora do livro CuidadosPaliativos um olhar sobre as práticas e as necessidades atuais.Coordenadora do Grupo de Apoio a Cuidadores de Alzheimer do Hospital 9 de Julho e Sócia coordenadora do PROJETO CUIDADOR .
Acredito que a arte de cuidar de alguém é inseparável do processo do autoconhecimento e da arte de cuidar de si mesmo.

Bibliografia consultada:

¹ SOUZA ACR. O luto sem pressa. Disponível em www.slowmedicine.com.br, 1/11/2016

² BIFULCO VA, O luto do cuidador informal. In: Casellato G (org). Luto por perdas não legitimadas na atualidade, Editora Summus, 2020.​​​​​​​​​​​

1 comentário

  1. Que texto lindo e importante. Obrigada!

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