Amor e Beleza na Saúde e na Doença, até que a Morte….

setembro 29, 2019
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                                             Reflexões sobre o filme “ELLA E JOHN“

Por Carla Rosane Ouriques Couto

                                                                         “Velho. É o que sou. Quero tudo e nada quero.  Posso? Permites-me tal ousadia? Subir a mais alta montanha, conhecer o algures e o nenhures; tocar o fundo de todos os mares e deitar-me com as estrelas e correr como o vento.”
E. Hemingway

Para a maior parte dos profissionais de saúde, os idosos representam um segmento da população que demanda cuidado, vigilância constante e estratégias de prevenção de intercorrências nas muitas doenças crônicas usuais nesta fase da vida. Neste afã, muitas vezes dedicam um longo tempo dos atendimentos para equilibrar a polifarmácia, solicitar exames de rastreio e aconselhar sobre as doenças em curso. Aos que apresentam algum grau de demência ou depressão, guarda-se um pouco mais do tempo para observar e discutir comportamentos, atitudes e menos frequentemente, sentimentos e afetos.

Por vezes, pacientes idosos desafiam essa rotina de cuidados, e nos obrigam a aprofundar o olhar sobre suas singularidades. Excessivamente teimosos? Excêntricos? Desobedientes? Interessantes, porém difíceis de “manejar”? Temos muitos rótulos para eles, e as vezes nenhum deles se adequa totalmente. Além disso, quando rotulamos, diminuímos nossa possibilidade de compreensão integral.

John e Ella, o casal do filme em pauta, poderia receber de suas equipes médicas, vários desse rótulos, ampliando as dificuldades de cuidado. John é um professor de literatura aposentado. Seu ídolo maior é o escritor Ernest Hemingway, de quem resgata frases e pensamentos a todo momento. John é doce, gentil, um cavalheiro brincalhão, magistralmente representado por  Donald Sutherland. Helen Mirren é Ella, dona de casa, briguenta, dona da razão e sem travas na língua. Ella está com metástases de um câncer, com propostas de cuidados paliativos em regime de internação. John está em fase avançada da Doença de Alzheimer. Os dois tem mais de setenta anos, e estão juntos por toda a vida.

Ao pensarmos nos dois agravos de saúde, o cenário que se desenha em nosso pensamento clínico é sombrio, no mínimo doloroso. Mas, a vida dos dois nunca foi sombria, e sim feliz e cheia de luz. E a narrativa que elegem é outra: decidem ir para a estrada, num velho trailer, modelo 1975, chamado “o caçador de lazer” (nome original do filme). É dessa jornada que trata o filme, um “road movie”, onde o ponto de partida é Boston e o destino final é um lugar sonhado pelo casal: a casa de Hemingway em Key West, Flórida. O casal praticamente foge de casa, pois os filhos adultos não concordam com sua decisão. Antes de fugir, Ella diz à filha: “os médicos decidiram por nós”. Will e Jane recebem periodicamente telefonemas com notícias dos pais, e refletem em casa sobre o comportamento dos dois, incompreensível para ambos.

E a aventura é cheia de percalços, desafios e revelações. No entanto em nenhum momento, a demência de John e o câncer de Ella, recebem licença para serem protagonistas das cenas. O que prevalece sempre são as escolhas do casal, baseadas em seus sentimentos e desejos. Situações que podem ser vistas sob uma ótica trágica, como o momento em que John, desorientado espacialmente, parte sozinho no trailer, esquecendo Ella num posto de combustível. Ou quando os dois são assaltados na estrada. As soluções são peculiares, e tudo sempre acaba em risos. Fazer rir é um dos bônus da película, expressando uma visão totalmente inesperada de dois idosos com doenças graves e terminais. Necessitam de cuidado? Proteção? Limites? Internações? Medicamentos contínuos? Em geral pensamos que sabemos do que precisa um casal de idosos com essas características.

Porém John e Ella não pensam assim. Querem viver como sempre viveram, juntos, livres, leves, felizes. Seria possível num hospital fazendo quimioterapia, ou com John utilizando medicações para retardar os sintomas de Alzheimer? Talvez. Ou talvez deixemos de perguntar aos pacientes idosos, o que realmente desejam.

Ella se habitua a mostrar a John, velhos slides com cenas familiares, no intuito de resgatar suas memórias. Há leveza diante da adversidade da confusão da mente de John. A cada familiar reconhecido, emergem lembranças doces, para os dois. Os dois estão sós e próximos da morte ou alienação, mas não sofrem de solidão. Segundo Hemingway, a “solidão da morte chega ao fim de cada desperdiçado”. No trailer nenhum dia é desperdiçado.

Sem tocar diretamente no sistema de saúde e sua voracidade diante de patologias graves como a do casal, o roteiro apresenta uma sistemática relutância dos personagens a se ajustarem aos planos terapêuticos. Ella recusa seguir a quimioterapia, e após, internada durante a viagem, por mau estado geral, foge do hospital assim que recupera as forças, antes que os filhos a localizem. Vale lembrar aqui o 10º princípio da Slow Medicine: as novas tecnologias devem servir para auxiliar a pessoa em seu autocuidado, ajudando o médico a tomar decisões com impacto na qualidade de vida. John e Ella estão fora de possibilidades de cura, cabendo então avaliar, o que seria qualidade de vida para eles.

Despido de autocrítica e de autopercepção, John faz coisas inusitadas, mas conserva uma sutil dignidade e carisma, que seduzem o expectador rapidamente. John não é caricato, é realmente engraçado em suas façanhas, algumas com interessantes menções a cultura norte-americana. Não sentimos pena, mas uma suave compaixão, e muitas vezes comunhão com suas atitudes.

A viagem segue, ao som de “Me & Bobby McGee“, de Janis Joplin. Há beleza nisso. Como há beleza na fotografia e na predominância das cores amarelo e azul, que remetem às cores associadas à obra-prima “O Velho e o Mar“, uma das prediletas de John.

A idade avançada com frequência é vista como um tempo de resignação, sem muitas novidades. Mas a viagem de John e Ella traz revelações significativas para o casal. Ella pensava que sabia de tudo sobre o esposo, mas ao tomar conhecimento de um evento do passado, decide internar John numa clínica de repouso, no meio da viagem. Mas, logo se arrepende e parte para resgatá-lo da clínica, onde John já estava subvertendo a hegemonia do lugar.

O movimento contínuo da estrada, o inesperado na próxima parada, coloca em questão a imobilidade, a impossibilidade e a rigidez relacionadas ao envelhecimento. No lugar dessas adversidades, o que surge nas cenas do casal, é uma surpreendente beleza.

Segundo o gerontologista Pedro Paulo Monteiro, “envelhecer é verbo, ação, continuidade. Envelhecer é transformação: ação além da forma.” A beleza dos dois personagens desafia o conceito prevalente de que ela é prerrogativa apenas da juventude. Umberto Eco escreveu “A História da Beleza”, e nela não há menção ao envelhecer. No entanto do mesmo autor, “A História da Feiura”, faz uma extensa relação entre o “velho” e o “feio” a partir da literatura e imagens. A partir de imagens de mulheres velhas, Baudelaire comentou: “esses monstros já foram mulheres um dia”. Vale refletir quanto desses preconceitos prevalentes em tantas culturas, incluindo a brasileira, vive em nós, e como podem se manifestar no cuidado médico.

The Leisure Seeker

A beleza que quem tem “olhos de ver e coração de sentir” enxerga em Ella e Jonh, em seus momentos de amor e de encontro, é a beleza de Platão. É a beleza da alma, onde ética e estética caminham juntas. Essa beleza desconhece nascimento e morte, nem aumenta nem diminui, não depende de perspectivas. É a que nos comove e nos deixa elevados. Essa é sensação que temos em muitas cenas de Ella e John, que nos levam a um tempo mais lento, mais leve, mais contemplativo, que nos enche de perplexidade, pois são a antítese das lentes do senso comum sobre os idosos.

A decisão final de Ella, diante da iminência de submeter a si e a John aos cuidados da família e de serviços de saúde é uma escolha que parece bem consciente, como se durante toda sua jornada na estrada, fosse sendo construída. É um desenlace shakespeariano, Ella é Julieta, John é Romeu. A realidade não mais permite que desfrutem do amor que traz significado e luz às suas vidas. O que há na sociedade, nas instituições de saúde e na própria família que reproduz de alguma forma o impedimento, a negativa, a impossibilidade, a exemplo dos valores das famílias Capuletto e Montechio? Será que ofertamos liberdade para pacientes tão especiais como Ella e John? Será que profissionais de saúde são capazes de enxergar nos casais idosos, a essência do que os faz felizes, para além de diagnósticos, sintomas e sinais de doença? Poderíamos permitir com mais plenitude, em ambientes hospitalares, a vivência desse amor?

Para que o cuidado de idosos seja realmente integral, pode ser necessária a ampliação de nossa visão sobre o envelhecer, em especial sobre nosso próprio envelhecer. Diz Pedro Paulo Monteiro: “Somos e seremos formas diferenciadas na travessia do tempo. Somos passagem, transcendência. Somos poesia; portanto, potência de criação. Ser diferente daquilo que sempre fomos só pode ser possível porque envelhecemos. Essa é a dádiva do processo inexorável do envelhecer. Envelhecemos para sermos agraciados de meios necessários para compreender a nossa existência. Sem percorrer a estrada é impossível deslumbrar lembranças, porque são elas que nos dão condição plena de podermos tecer a trama do sentido da vida.” O resgate dos profissionais pela paixão no cuidar, e a prática da compaixão (como afirma o 9º princípio da Slow Medicine), possibilitam que ao lado dos pacientes, possamos sentir a beleza desta jornada, que é inexorável e universal.

Ella e John nos mostram que esse processo pode ser pleno, rico e belo, até a última viagem, como a deles, a bordo do “caçador de lazer”. E o fim será digno de Shakespeare: “quantas vezes, logo antes de morrer, um homem fica alegre? É o que chamam de fagulha mortal. E será isto tal fagulha? Meu amor, minha esposa, a morte que sugou-lhe o mel dos lábios, inda não conquistou sua beleza. Não triunfou”.

“Estas são as mudanças da alma. Eu não acredito em envelhecimento. Eu acredito em alterar para sempre o aspecto de alguém para a luz. Eis meu otimismo.”

Virginia Woolf

Bibliografia consultada:

A beleza do corpo na dinâmica do envelhecer. Pedro Paulo Monteiro, Belo Horizonte. Gutemberg. 2008.

Romeu e Julieta. William Shakespeare.  Tradução de Bárbara Heliodora.

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Carla Rosane Ouriques Couto: Pediatra, Médica de Família e Comunidade, especialista em Saúde Pública, Educação Médica, Saúde do Trabalhador e Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Aprendiz recente da arte de envelhecer buscando beleza e significado todos os dias.

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