Átomos, histórias, afetos e Slow Medicine

fevereiro 6, 2024
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Por Vera Anita Bifulco:

“Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me contou que somos feitos de histórias”.

Eduardo Galeano

Como você se sentiria se, numa primeira consulta médica, além da queixa que te levou ao médico, você ouvisse:

-Como você gostaria de ser chamado? Tem algum apelido?

-Como foi seu dia? O que mais gosta de fazer? E o que você não gosta?

-Você tem um animal de estimação? Qual o nome do bichinho?

E por aí vai…….

Esses questionamentos estão acontecendo bem mais do que se imagina, e não se trata de uma curiosidade pessoal do médico: vai muito além.

Trocando em miúdos, podemos entender nessas perguntas que o paciente é bem mais importante do que somente suas queixas.

Que motivos “ocultos” estão por trás dessa investigação?

Existe um conceito, não tão novo assim, mas pouco conhecido, chamado “Prontuário Afetivo” (PA). Apesar do nome, ele difere do Prontuário Médico, somando-se a ele para uma anamnese mais detalhada e integral. É um documento onde a equipe multiprofissional, contando com o auxílio do paciente e de seus familiares registram, de forma carinhosa e afetiva, os valores e as preferências do paciente.

Esse documento ou peça gráfica não é manipulada pelo paciente, serve tão somente para informar aos diversos membros da equipe multiprofissional que cuida do paciente, suas preferências, o time que torce, sua cor predileta, de forma a estimular a interação afetiva entre equipe, paciente, família e cuidadores formais e informais, tornando o atendimento mais humanizado e o ambiente de trabalho mais afetivo – e efetivo.

Do ponto de vista histórico, o trabalho da Dra. Isadora Jochims, do Hospital Universitário de Brasília, pode ser considerado o ponto inicial do Prontuário Afetivo. Em 2020, ela desenvolveu um novo formato de documento, que ultrapassava o objetivo puramente clínico, acrescentando um caráter biopsicossocial à estrutura da informação com foco na personalidade do paciente, levando em conta seus interesses pessoais, vislumbrando eventuais  demandas de um paciente crítico e sem um contato mais próximo com a família, como ocorreu na época da Pandemia pela Covid 19. Nesta ocasião este documento começou a tomar forma. Fez-se então uma transposição do prontuário padrão para outro – o Prontuário Afetivo, que incorporava as vivências e aspirações do paciente.

Vale ressaltar que esse tipo de documento pode e deve ser usado não somente na esfera hospitalar, como também em outros ambientes – a exemplo dos consultórios e centros de saúde. Eu, particularmente, faço todas as perguntas que possam me ajudar a avaliar holisticamente meu paciente. Certamente algumas afirmações não surgiriam espontaneamente – é nestas situações que o Prontuário Afetivo abre um espaço no qual o paciente se sente confortável para falar de si, pois o próprio terapeuta formula as questões e demonstra que efetivamente se interessa em saber mais detalhes de sua vida.

Eu trabalho há muitos anos com Cuidados Paliativos. As questões pontuadas no Prontuário Afetivo fazem parte da minha rotina diária há um algum tempo, na medida em que vejo o paciente como um todo, holisticamente, em sua integralidade. Se abordo Qualidade de Vida, preciso entender o que é qualidade de vida para esta pessoa em particular. Este conceito se encaixa perfeitamente no segundo princípio da Slow Medicine – a individualização do cuidado. Não existem duas digitais iguais, como não existem duas pessoas iguais. Este fato me obriga a ir além da patologia que trouxe o paciente até mim – é fundamental que eu valorize sua biografia. São dois lados da mesma moeda. São valores que confluem.

Outro princípio que se encaixa na elaboração de um Prontuário Afetivo é o terceiro princípio da Slow Medicine, que se debruça sobre a autonomia e o auto-cuidado. “A chave da questão são os valores, expectativas e preferências do paciente. Nesse princípio estão envolvidos o ambiente de cuidados do paciente, sua família, vizinhos, amigos e outras fontes de suporte ou apoio”. Nesse contexto posso estimular a verdadeira tomada de decisões compartilhadas, onde todos os envolvidos são cuidadosamente ouvidos e respeitados. Quanto mais eu conheço meu paciente e sua família, mais confortável essa situação se torna para todos os protagonistas. Eu afirmaria que o Prontuário Afetivo é um facilitador para o compartilhamento de decisões.

O  que significa a palavra afeto? Porque ela foi escolhida para designar um prontuário diferente das anotações tradicionais?

No dicionário a palavra afeto tem vários significados: sentimento de apego, ternura, afeição, demonstração de carinho. Vou optar por este: trata-se de um fenômeno emocional, agradável, produzido através de uma influência exterior.

O diálogo entre o paciente e o profissional de saúde cria um ambiente de troca, onde perguntas provocam reações em ambas as pessoas, por vezes alegres – e positivas, por vezes tristes – e negativas. A vida, a morte, a dor, o sofrimento e a esperança permeiam este diálogo.

O afeto gera vínculo – e pretendemos que este vínculo seja positivo. O controle real que temos sobre os fatos da vida é muito pequeno. Um vínculo afetuoso e positivo pode ser muito relevante quando nos defrontamos com incertezas – e incertezas costumam ser a regra, mais do que a excessão, na atenção à saúde.

Essas respostas ativas podem criar vínculos entre os profissionais de saúde e seus pacientes, provavelmente resultando numa maior adesão ao tratamento e uma melhor resposta clínica, pois os vínculos afetivos positivos resultam em maior confiança, segurança e quiçá na diminuição do medo do desconhecido.

Você pode encontrar modelos de Prontuários Afetivos na internet, mas  eu sugiro que cada profissional elabore o seu. Explico. Há muitos anos atrás, no início de minha carreira, eu construí um questionário com questões que eu endereçava aos meus pacientes e às suas famílias, mesmo antes do surgimento do conceito de Prontuário Afetivo. Eu sentia necessidade de conhecer melhor a pessoa sentada à minha frente, que transcendia a um mero diagnóstico médico. Além das perguntas tradicionais, como por exemplo, o estado civil, caso o paciente respondesse casado eu lhe inquiria: “bem-casado, mal-casado ou mais ou menos”? Perguntando sobre sua crenças, eu acrescia – “de zero a dez, me dê uma nota para sua fé”, ou “como você vive a sua espiritualidade, ou a sua religião…” “Quem cuida de você? Você o escolheu?”. Em poucos minutos, eu tinha em mãos um perfil afetivo do paciente, de sua vida cotidiana, de sua inserção familiar, comunitária e social. Certamente a experiência e os anos de trabalho permitem uma maior agilidade na aquisição destas informações.

Ao praticar a ideia de um prontuário afetivo percebi que tais perguntas  abrandavam um clima muitas vezes tenso. Frequentemente surgiam sorrisos e risadas, descontraindo as pessoas  envolvidas em situações onde a ameaça à vida estava presente – toda e qualquer doença provoca o medo da morte. Talvez, pela primeira vez na vida, o paciente se dê conta de sua mortalidade.

O primeiro princípio da Slow Medicine privilegia o tempo dedicado ao paciente. Tempo é presença. É criar vínculos, é importar-se com o paciente para além de sua doença, tornando essa presença mais produtiva e significativa.

O nono princípio da Slow Medicine, que fala da paixão e compaixão, se encaixa como uma luva dentro do conceito de Prontuário Afetivo. Este princípio  sugere o resgate da paixão pelo cuidar e do sentimento de compaixão, bem como a busca incansável da humanização dos cuidados. O Prontuário Afetivo se insere como uma das ferramentas que concretizam a ideia da humanização da prática clínica.

O que fica  no final? São nossas ações, os papéis que desempenhamos na vida do outro. Independente do final, que nos escapa ao controle, as lembranças dos vínculos que criamos em nossa nessa jornada é aquilo que sustenta as relações humanas.

Somos feitos de memórias. Fazer-nos presença no tempo que compartilhamos com nossos pacientes faz toda a diferença. É como seremos lembrados, independente do fim que cada história nos reserva.

Vera Anita Bifulco é psicóloga, psicooncologista, mestre em Cuidados Paliativos pelo Cedess/ Unifesp. Teve a oportunidade de conviver e trabalhar com o Professor Marco Tullio de Assis Figueiredo no ambulatório de Cuidados Paliativos, fato marcante em sua trajetória profissional. É co-autora de três livros, “Câncer Uma Visão Multiprofissional” I e II, “Cuidados Paliativos, Conversas Sobre a Vida e a Morte na Saúde” e “Cuidados Paliativos – um olhar sobre as práticas e as necessidades atuais“.

‘….entendo a Espiritualidade como uma maneira de ver, sentir e viver um aspecto não material da vida que pressupõe uma transcendência, um significado e um propósito maior para nossa existência’.

*A pintura que ilustra o post é de Vassily Kandinsky.

5 Comentários

  1. Texto inteligente carregado de sensibilidade. Humanizador. Lembra-nos de que cada pessoa é única e guarda tesouros ocultos. Sendo considerada em sua individualidade, abrirá esse tesouro na forma e histórias, lágrimas, pedidos. Um autor que trabalhou muito nessa linha foi o suiço Paul Tournier – em seu livro Medicina da Pessoa.

  2. Devia ser matéria do primeiro período. Segundo dr Adib Jatene, médico tem que, primeiro, especializar em gente.

  3. Lindo texto. Uma fonte de aprendizado. Prontuário Afetivo com meus 47anos de Medicina nunca havia escutado. Só ouvia Prontuário Médico, que agora será “acrescido” pelo “Prontuário Afetivo”. Parabéns e óbvio vou compartilhar. 

  4. Belíssimo e necessário este texto!!! Parabéns Vera pelo trabalho primoroso. Vamos divulgar!!!!

  5. Belo texto! Precisa ser disseminado desde o primeiro ano da graduação, para que formemos médicos capazes de ouvir nossas histórias! Obrigada pelo presente, Vera!

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