Consciência da morte e tecnologia

novembro 3, 2020
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                        “E aquilo por que ansiamos e de que temos necessidade

é alma – alma de peso e substância.

Unamuno, M. (Tragic sense of life) in Hillman (2010, p.319)

Em um dos Diálogos de Platão (427 – 347 a.C.), intitulado Protágoras, Sócrates discute com o sofista Protágoras sobre a arte política que se destina a formar bons cidadãos. Nessa conversa, Protágoras traz como resposta a Sócrates o mito de Epimeteu e Prometeu, transcrito abaixo:

“Chegado o momento determinado pelo Destino, os deuses plasmaram nas entranhas da terra, utilizando-se de uma mistura de ferro e fogo, as criaturas mortais. E no tempo certo de tirá-las para a luz, incumbiram Prometeu e Epimeteu de provê-las do necessário e conferir-lhes as qualidades adequadas a cada uma. Epimeteu pede ao irmão que deixasse a seu cargo tal distribuição e depois disso concluído, Prometeu faria a revisão final.

Aplicando sempre o critério da compensação, Epimeteu atribuiu força sem velocidade, dotando de velocidade os mais fracos; a outros deu armas; para os que deixara com natureza desarmada, imaginou diferentes meios de preservação: deu asas aos pequenos de corpo, ou proveu de algum refúgio subterrâneo; enquanto os corpulentos salvar-se-iam nas próprias dimensões. Estas precauções foram tomadas para evitar que alguma espécie viesse a desaparecer, cuidando primeiro para que assim não se destruíssem reciprocamente. Para protegê-los contra as estações de Zeus, deu a alguns pêlos abundantes e pele grossa, para defendê-los do frio ou adequá-los para tornar suportável o calor. Dotou alguns de cascos nos pés; outros, de garras, e outros ainda, de peles calosas e desprovidas de sangue.

Em seguida determinou para todos, alimentos variados, de acordo com a constituição de cada um; e limitou a capacidade de reprodução para assegurar a conservação das espécies. Porém, como Epimeteu carecia de reflexão, sem o perceber, esgotou todas as qualidades que dispunha, tendo ficado sem ser beneficiada a geração dos homens.

Quando Prometeu foi inspecionar a divisão verificou que os homens encontravam-se nus, desprovidos de calçados ou coberturas e sem armas. Para assegurar ao homem a salvação, Prometeu roubou dos deuses Palas Atena e Hefesto a sabedoria das artes juntamente com o fogo, assim dando aos homens a techné (do grego: tecnologia), sendo posteriormente castigado por esse furto.

Logo começaram a coordenar os sons e as palavras, construíram casas, vestes e calçados; e procuraram na terra os alimentos. Providos desse modo viviam dispersos; não havia cidades e eram dizimados pelos animais selvagens.

Para poderem sobreviver, experimentaram reunirem-se fundando as cidades, mas como careciam da arte política (pertencente a Zeus), causavam-se danos recíprocos, voltando a se dispersar e sendo destruídos como antes.

Preocupado com o futuro da geração humana, Zeus determinou que Hermes levasse aos homens pudor e justiça, e que fossem distribuídos igualmente a todos, para que as cidades pudessem subsistir. E mais: que todo homem incapaz de pudor e justiça sofresse a pena capital (morte ou exílio) por ser considerado um flagelo da sociedade” (Platão, 2002).

Penso que o mito fala por si, dispensando explicações. As metáforas estão “de bandeja” e ainda muito refletem o nosso tempo da pós-modernidade e da pós-verdade!

Tanto a vida quanto a morte constituem-se em grandes mistérios para mim. Por não podermos dizer exatamente o que são, usamos critérios definidores, que mudam ou já mudaram de acordo com algumas situações.

 Do ponto de vista da Bioética, questiona-se: quando a vida começa? Por exemplo: é na ideia de se ter um filho ou quando há o encontro de gametas formando o zigoto, ou no feto, ou no nascimento? Questões que surgiram em função das fertilizações in vitro, nos processos de reprodução assistida. A mesma questão se coloca para a morte: quando ela ocorre? Em dado momento da história, um dos instrumentos necessários à constatação da morte por um médico era um espelho para verificar se a pessoa estava respirando; caso não, então, estava morta, sendo a parada respiratória o critério definidor. Após um tempo, com relatos de casos de pessoas enterradas vivas, o critério passa a ser a parada cardiorrespiratória. A partir de 1988, por conta dos transplantes, o critério passa a ser a morte cerebral. Atualmente, o psiquiatra Dr. Claudio Cohen (2012) propõe uma revisão desse conceito em função dos processos de criopreservação (Souza, 2018).

A “era do cérebro grande” (Morin, 1973) começa com o homem de Neandertal; já sapiens. Quando aparece, o homem já é socius, faber e loquens, trazendo como novidade ao mundo a sepultura e a pintura.

 Há aproximadamente 100 mil anos, relatam-se os primeiros rituais fúnebres sendo realizados pelos sapiens. Morte: um estado de ser, um processo, um evento, um fato?

Os túmulos neandertalenses não eram simples enterramentos para proteger os vivos da decomposição dos cadáveres. O morto encontrava-se em posição fetal, sugerindo a crença no renascimento. Foram achados, também, despojos protegidos com pedras e, mais tarde, armas e alimentos que acompanhavam o morto – indicando uma provável crença na sua sobrevivência sob a forma de espectro corporal e com as mesmas necessidades dos vivos. 

            A morte tanto é reconhecida como um fato também para os animais capazes de se fingir de mortos para enganar seus predadores, como é ressentida como perda, desaparição ou lesão irreparável, assim percebida por símios, elefantes, cães e aves. Além disso, é “concebida como uma imposição inevitável que pesa sobre todos os vivos, e como uma transformação de um estado em outro” (ibidem, p.94). A consciência realista da transformação e a crença em outra vida, mantendo a identidade do transformado pelo renascimento ou sobrevivência do “duplo”, indicam o surgimento do imaginário e do mito na percepção real e na visão de mundo. Os funerais são ritos que contribuem para possibilitar a passagem para outra vida de forma conveniente e proteger os vivos contra a decomposição da morte. Assim, encontra-se no “sapiens um aparelho mitológico-mágico mobilizado para enfrentar a morte” (Morin, 1973, p. 95, itálicos do autor). 

Varanasi – India

Portanto, a consciência da morte, que emerge no sapiens, constitui-se da interação entre uma consciência objetiva, que reconhece a mortalidade, e uma subjetiva, que afirma a imortalidade ou a transmortalidade. Os ritos conhecidos de morte e funerais das sociedades sapientais traduzem, frente à crise da morte, tanto a dilaceração e a angústia, por um lado, como a esperança e o consolo, por outro. 

            Tais consciências, objetiva e subjetiva, formaram-se nos Homo sapiens a partir de uma somatória de eventos, como: o retorno dos mortos nos sonhos, o canibalismo dos Homo erectus – a fim de apropriarem-se das virtudes dos mortos, comendo o parente ou o inimigo, que vai ganhando outras significações afetivas – e, por fim, a preocupação contraditória em se livrar do cadáver, mas guardar, junto de si, o morto afeiçoado, por exemplo, por meio da conservação das ossadas (Morin, 1973).

Infere-se daí o início da consciência de nossa mortalidade e, portanto, da fragilidade perante os fenômenos da natureza. Somos seres sem defesa (como grandes garras ou dentes), mas, com a ajuda dos dotes da techné de Palas Atena e Hefesto, iniciamos o desenvolvimento da tecnologia para nos protegermos da morte.

 Uma pedra passa a ser afiada transformando-se numa faca para cortar a carne da caça dos caçadores coletores da nossa pré-história; depois, essa pedra ganha um cabo e vira um machado. Muito tempo após, cria-se a foice para trabalhar a terra. Inventa-se a roda e assim por diante até a fissão nuclear, que nos dá as bombas atômicas. 

Vivemos um momento cultural no qual as pessoas, muito ansiosas, angustiam-se com o instante seguinte ao “aqui-agora”, pois tudo pode acontecer na sequência, inclusive nossa morte (experiência humana aguçada atualmente pela pandemia do Coronavírus). No entanto, como que por uma capacidade de ilusão saudável, planejamos atividades e compromissos, às vezes com anos de antecedência. Precisamos de um sentido protetor para a vida e uma sensação de pertinência a algo, desse modo, a vivência de imortalidade nos protegeria, possibilitando nossa própria existência (Souza, 2018). 

O ato de morrer, verbo intransitivo, parece não dar conta do substantivo morte, esse universo intraduzível e incognoscível, que continua sem definição. A morte, ao nos dar consciência de que esta vida é findável, torna possível o uso de nossa capacidade de escolher isto a despeito daquilo, uma vez que ambos não caberiam numa mesma vida, propiciando um sentido à existência. Embora a vida valha a pena, não só por se poder dar um sentido a ela, mas pela experiência de nela estar, lembrando Rubem Alves, que declara: “um único momento de beleza e de amor justifica a vida inteira, pois cada momento de beleza vivido e amado, por mais efêmero que seja, é uma experiência completa que está destinada à eternidade” (Alves, 2012).

            Até onde vai a vida e quando começa a morte? Limite este que parece borrado na atualidade, na qual a morte e o sofrimento “precisam” ser evitados, banidos da nossa “pós-modernidade líquida”, como denomina Zygmunt Bauman (1998), em busca da felicidade a qualquer preço, considerando-a como um estado eterno e que, além disso, necessita ser legitimada pelos outros nas redes sociais. Lembremos de que, se fôssemos felizes o tempo todo, nem saberíamos o que é felicidade e, talvez, não a valorizássemos como o fazemos.

            Podemos não saber o que é a morte, mas sabemos o quão difícil é o encontro com ela, momento geralmente cheio de dor, tanto para quem vai como para quem fica. 

            Chegamos à Lua. Enviamos satélites ao espaço que nos permitem reconhecer fosfina na superfície de Vênus. E nos últimos anos, presenciamos um “boom” do desenvolvimento da tecnologia da informação, contando, entre as várias inovações, com as redes sociais, criadas ingenuamente para nos conectar: um lugar onde todos poderiam compartilhar suas experiências e se sentirem menos sozinhos.

 Entretanto, como nos mostram os documentários produzidos pela Netflix: The Great Hack (o título em português: Privacidade Hackeada, 2019) e Social Dilemma  (Dilema nas redes, 2020) não demorou muito para que esse “novo mundo” se transformasse em nosso cupido (Tinder, por exemplo), verificador de fatos, animador pessoal (com as curtidas), guardião de nossas recordações. E de repente, todos os dados das nossas atividades online se transformam em rastros digitais sendo extraídos para uma indústria de trilhões de dólares ao ano.

 Agora nós somos o produto e nossos dados valem mais que petróleo; monitorar o que fazemos nas redes, com nosso consentimento, mesmo que muitas vezes inconscientes dele, para predizer e manipular nossos comportamentos. Todas as nossas interações, uso de cartão de crédito, pesquisas na web, nossa localização, curtidas dadas são coletadas em tempo real e ligadas à nossa identidade, traçando um perfil psicológico e dando a qualquer anunciante o acesso direto aos nossos impulsos emocionais. Armados por esse conhecimento, os anunciantes competem por nossa atenção e oferecem-nos um fluxo constante de conteúdos criados para cada um de nós, individualmente. O que gostamos, o que tememos, o que chama nossa atenção, quais nossos limites e o que é preciso para transpô-los.

Ficamos tão apaixonados por esse presente da livre conectividade que não nos detivemos a ler os termos e condições. Mas, se não pagamos por ela, quem paga? Os anunciantes e nossos dados são os produtos vendidos. Assim, dando origem a religião dos dados, o “dataísmo”, como nos conta Yuval Harari (2016, p.370).

O pior cenário aconteceu com essa tecnologia: adição às redes, manipulações ideológicas, fakenews, intervenção em eleições, polarizações extremadas entre as pessoas, ódio e medo sendo alimentados; interferência séria na saúde mental, principalmente entre crianças e adolescentes – trazendo, por exemplo: a tristeza por falta de curtidas, a necessidade de cirurgias plásticas para se parecer com as fotos com filtros, sem falar na felicidade “sempre dos outros”, vistas pelas fotos em viagens, em restaurantes, com pets e “famílias Doriana”. 

            Retomando o tema da morte, quero citar também outras produções exibidas pela mesma Netflix: o episódio 1 da segunda temporada da série Black MirrorBe Right Back e o documentário Hope Frozen: A Quest to live twice (título em português: Contornando a morte, 2018). A primeira produção supracitada, ainda como ficção científica, conta-nos a estória de um casal jovem que tem uma briga e logo após o marido morre num acidente de carro. A viúva recebe de uma amiga a indicação de um serviço que a ajudaria a vencer a tristeza da perda e superar o luto. Era uma empresa que coletava todos os dados do falecido: fotos, e-mails, mensagens de voz etc e configuraria um perfil dele para entrar em contato com ela. Com valores cada vez maiores, os serviços prestados começariam com o recebimento de emails como se fossem dele, depois telefonemas, até que por último – o serviço mais caro – enviariam uma caixa contendo uma cópia do próprio falecido. Após ficar de molho numa banheira com um produto especial, ganharia vida e ela teria seu marido de volta. Isso seria realmente elaborar a perda e superar a tristeza?

Já o documentário Contornando a morte nos conta a história de uma família tailandesa budista, na qual o pai, um cientista, recusa-se a aceitar como o fim, a morte de sua querida e muito esperada segunda filha, que aos dois anos de idade é diagnosticada com um câncer cerebral. Após percorrerem vários caminhos para salvá-la e sem sucesso, decidem recorrer à criopreservação da filha, na esperança de que um dia ela volte a viver.  Uma das primeiras frases do filme é: “A morte é um problema ainda sem solução”. Como assim? A morte faz parte da vida, é natural e já sabida de há muito! O documentário nos mostra a família com seus dilemas sobre como conciliar crenças conflitantes como o budismo (que crê na reencarnação e imortalidade da alma) e a ciência, além das questões éticas e filosóficas. Para quem ainda não assistiu, recomendo. Seria essa opção também outro modo de lidar com a perda? 

Associo a temática dos filmes citados acima ao “Transhumanismo”, também citado por Harari em seu livro Sapiens (2015). O transhumanismo é um movimento cultural que visa transformar a condição humana por meio do desenvolvimento de tecnologias para aumentar as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas. Por meio da nanotecnologia todo nosso sistema imunológico poderia ser aperfeiçoado, por exemplo, além da manipulação genética, tornando-nos imbatíveis, quase imortais! E segundo Harari, a morte no futuro seria uma escolha de cada ser humano. Entendo que a questão está na dificuldade de aceitarmos que somos natureza, fazemos parte da natureza e por mais que tentemos nos iludir, não podemos controlá-la.

A criopreservação é uma tecnologia que se faz após ser constatada a morte da pessoa. Então, seu peito é aberto, retira-se o sangue e promove-se a circulação nos vasos de um fluido crioprotetor para evitar a formação de cristais de gelo que danificariam irremediavelmente as células. Depois, o cadáver é submetido, gradualmente, a baixas temperaturas (- 196° C), até ser levado para um tanque de nitrogênio líquido. Mas, ainda não se conhece sobre a possibilidade de ressurreição (?) após o processo de descongelamento. 

Bem, paralelamente, na medicina não temos uma história muito diferente a das redes sociais. Um ingênuo início do desenvolvimento das indústrias alimentícias e farmacêuticas, como de demais tecnologias, mas, que em pouco tempo, passam a ter suas decisões influenciadas pelos poderes econômicos e financeiros, numa desmedida e abandono dos valores éticos humanos. E atualmente, muitas dessas empresas manipulam a saúde em vida e ferem a dignidade na morte.

Enfim, por essas questões, considero de extrema importância atentarmos para o movimento da Slow Medicine e dos Cuidados Paliativos, que tentam resgatar e resguardar os direitos humanos na ação de cuidar das pessoas. Com um diálogo transparente, respeitoso e justo, alertando para a necessidade do uso das tecnologias (que sempre podem ser também nefastas) com bom senso, a nosso favor e não contra nossas vidas, promovendo a aceitação do inevitável, com a possibilidade de uma morte digna, que para mim, faz parte da nossa natureza e da vida.

Referências

Alves, R. Concerto para corpo e alma. Campinas: Papirus, 2012, p. 139.

Bauman, Z. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

Cohen, C. Bioethicists must rethink the concept of death: the idea of brain death is not appropriate for cryopreservation. Clinics, v.67, n.2, São Paulo, p.93-94,fev 2012

Harari, Y.N. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo, Companhia das Letras, 2016

Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre, L&PM, 2015

Morin, E. O Paradigma Perdido: A Natureza Humana. Sintra, Portugal: Publicações Europa-América, 1973, p.93

Hillman, J. Re-vendo a Psicologia. RJ: Editora Vozes, 2010.

Platão. Diálogos: Protágoras, Górgias, Fedão. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2002.

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Ana Célia Rodrigues de Souza, uma pessoa idealista, humanista, tentando manter as esperanças, para não desesperar e continuar acreditando na prosperidade da humanidade guiada por valores éticos e humanos, talvez, um tanto “démodé”!

2 Comentários

  1. Muito obrigada por compartilhar sua impressão, Silmara! Fico feliz que tenha gostado!

  2. Sensacional, muito bem elaborado.

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