Desacelerar o cuidado

maio 6, 2024
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Por João Godoy

“Simplesmente permanecer e testemunhar nunca é fútil.” (Iona Heath)

A prática médica ocidental moderna propõe o cuidado em saúde pela via positiva – sempre fazer mais. Fazemos mais exames e procuramos mais doenças em pessoas assintomáticas com o intuito de detectar alguma alteração passível de uma intervenção que reduza os riscos de um desfecho ruim no futuro. Com mais tecnologia, ampliamos cada vez mais a nossa lupa diagnóstica. Nos tornamos muito bons em detectar pequenas alterações, muitas delas sem significado clínico algum, gerando mais intervenções, cada vez mais invasivas. Segmentamos progressivamente a pessoa em sistemas e subsistemas, na ilusão de estar promovendo saúde e cuidado. Por muito tempo, essa concepção imperou. No entanto, há que se reconhecer a necessidade de desatomizar o cuidado em saúde, reconhecendo uma prática baseada em incerteza, probabilidade e centrada na pessoa – não na doença.

Podemos identificar que esse processo de atomização dos pacientes talvez tenha se iniciado com o relatório Flexner, publicado em 1910. Este documento procurou estabelecer um ensino médico que tivesse bases científicas. Tratou-se de um processo de validação de um modelo de ensino em medicina que fragmentou o entendimento do indivíduo em meros subsistemas, valorizando um cuidado fundamentalmente biológico, mecanicista, tecnológico, designado às subespecialidades médicas. Vimos a desintegração do cuidado, que fora posteriormente importada à educação médica brasileira.

Tal modelo já mostra suas fragilidades, uma vez que falha em reconhecer o processo de saúde-doença em sua complexidade sócio-econômica-cultural, negligenciando a experiência de doença de cada pessoa. Nesse contexto, numa tentativa orgânica de recuperar uma visão integral da medicina, ressurge uma especialidade médica cujo objeto epistemológico não se subsidia exclusivamente nas características dos pacientes, como ocorre na Pediatria e na Ginecologia e Obstetrícia, nem em partes específicas do corpo, como na Dermatologia, ou condições estabelecidas, na Alergologia, nem em procedimentos, nas especialidades cirúrgicas, ou relação com máquinas, na Radiologia. Trata-se de uma especialidade médica que procura unir uma prática baseada em evidências científicas atrelada ao reconhecimento do paciente como uma pessoa em sua complexidade coletiva, histórica e cultural: a Medicina de Família e Comunidade.

O Médico de Família e Comunidade é um especialista em prevenir, diagnosticar e tratar as condições mais prevalentes da comunidade, acompanhando o paciente e sua família nos diferentes ciclos de vida, desde a vida intrauterina até o leito de morte. É um profissional que, segundo Gérvas, se move com naturalidade num mundo de incertezas, no qual os sinais e sintomas se manifestam de forma incipiente dentro do processo de adoecer. Nesse cenário, o MFC deve reconhecer a incerteza como uma ferramenta própria de um raciocínio clínico probabilístico. Assumir este paradigma faz-se imperativo na prática médica – não só na Atenção Primária à Saúde, mas também nos diversos cenários -, a fim de evitar intervenções médicas desnecessárias. Em se tratando de pacientes com baixa probabilidade pré-teste de doença, uma lógica de sempre fazer mais poderá levar o profissional a cometer erros diagnósticos, levando a cascatas de eventos não-intencionais, potencialmente ocorrendo dano.

Estamos falando de um cenário em que pacientes são prejudicados exclusivamente pela intervenção médica a eles proposta. Toda intervenção contém riscos, porém, apenas algumas geram benefícios. A prática baseada na prevenção quaternária, neste sentido, tem como finalidade primordial tornar adequadas as intervenções aos pacientes. Não nos enganemos, estamos diante de uma lógica contra intuitiva. Veja: pode parecer óbvio que a indicação de exames de detecção precoce de doenças para tratá-las antes que evoluam a ponto de manifestar sintomas seja algo plenamente indispensável e livre de riscos. Em se tratando de rastreamento de câncer, essa heurística é ainda mais complexa. A indicação de exames de rastreio opera numa mão de duas vias: ela possui benefícios e riscos. Infelizmente, neste cenário específico, os danos são mais prováveis de ocorrer do que os benefícios.

Para adensar ainda mais esse processo, temos uma formação cultural dentro da medicina que valoriza a intervenção sobre a demora permitida, endossa a medicalização e a ação imediata em detrimento do acompanhamento longitudinal a todo custo. Priorizamos a via positiva sobre a via negativa sob o imperativo de fazer sempre mais. Em muitas circunstâncias – como no rastreio de determinados tipos de câncer – o benefício da via positiva é futuro e incerto. Contudo, o paciente colhe os prejuízos dessas intervenções de forma imediata e real. Não é incomum nos depararmos com a banalização do desconforto e da ansiedade que um resultado falso-positivo gera. Subestimamos o sofrimento psíquico advindo da preocupação do paciente com um resultado de exame. Justifica-se tal incômodo sob o pretexto de “salvar vidas”. Ora, o cuidado médico deve ter a função de amenizar estresse psicológico. Mas, frequentemente, ocorre o inverso: ele cria o estresse. Surge, então, um questionamento: se um diagnóstico não trará benefícios ao paciente, então por quê diagnosticá-lo? É muito difícil melhorar quem já se sente bem, mas é fácil demais piorá-lo.

Diante desses questionamentos, elabora-se o conceito de sobrediagnóstico (overdiagnosis), que foi recentemente incorporado ao índice MeSH, trazendo à tona a importância desta área de pesquisa em franco crescimento. Woloshin e Kramer estabelecem que sobrediagnóstico é “a rotulagem de uma pessoa com uma doença ou condição anormal que não causaria mal à pessoa se tal condição não fosse descoberta, criando novos diagnósticos por meio da medicalização de experiências ordinárias da vida, expandindo diagnósticos já existentes por meio da redução de limiares ou pelo alargamento de critérios diagnósticos sem evidência de melhores desfechos. Indivíduos não obtém benefícios clínicos com sobrediagnósticos, embora possam experimentar danos físicos, psicológicos ou financeiros”. Aqui, é importante enfatizar que sobrediagnóstico não se trata de um resultado falso-positivo. Quando falamos em sobrediagnóstico, a anormalidade encontra critério para doença patológica (ex:. critério microscópico para câncer), mas a doença detectada não causará sintomas ou morte. 

Ora, se um diagnóstico falha em propor melhor qualidade de vida, significa que os cuidados em saúde ofertados são de baixo valor. O conceito de “Low-Value Health Care”, que se traduz como “cuidados de baixo valor em saúde”, pode ser definido como o cuidado que, na maioria dos casos, não leva a melhores desfechos ao paciente e pode engendrar danos desnecessários, que encontram raízes num sistema onde as decisões são tomadas rapidamente em consultas breves. Tanto a pressão assistencial, que leva a uma sobrecarga de tarefas, quanto os pedidos de pacientes por exames e/ou tratamentos são comuns e podem superar as intenções de evitar serviços de baixo valor. Temos um terreno fértil para que se sobressaia um tipo de pensamento “rápido” ancorado em heurísticas do que pensamentos “lentos” sobre evidências científicas.

Assim, especialistas de diversas áreas unem esforços para tentar balizar a prática médica com intuito de reduzir cuidados em saúde de baixo valor. A iniciativa Choosing Wisely se debruça sobre o tema, promovendo uma série de recomendações para a comunidade médica a fim de chamar atenção para excessos de intervenções em saúde, fomentando uma prática consciente acerca da proporcionalidade dos cuidados. No entanto, apesar da ampla disponibilidade de informações na literatura médica sobre recomendações do que não fazer, ainda observamos um volume expressivo de prescrições e recomendações potencialmente prejudiciais aos pacientes. 

Vejo que se faz impositivo apreender que a tomada de decisão é um processo complexo, que leva em conta por parte do(a) médico(a) uma análise probabilística e interpretativa que busca direcioná-la de forma individualizada ao paciente, levando em conta seus valores e expectativas, considerando-o como central na prevenção e promoção de saúde, inserido num contexto próximo e amplo específicos e ímpares. Essa está longe de ser uma tarefa simples ou fácil de ser realizada, pois nos encontramos com os sentimentos dos pacientes e, também, com os nossos…

Com o intuito de cuidar, muitas vezes nos deparamos com queixas advindas de problemas estruturais, que estão muito além da nossa capacidade de resolução dentro do consultório. Insegurança alimentar, falta de acesso à moradia, ao trabalho, ao lazer e ao saneamento básico são fatores que determinam diretamente o adoecimento físico , psíquico, social e espiritual das pessoas. Rapidamente, fica fácil de perceber que nosso escopo de atuação profissional está aquém das necessidades de muitos daqueles que nos consultam. 

Diante da frustração que a impotência gera, somos impelidos a fugir dessas situações. Às vezes, queremos fugir não dando a devida atenção: nos ocupamos com a tela do computador ou burocracias e papeladas, deixando o paciente em segundo plano. Às vezes, fugimos prescrevendo prontamente qualquer medicação para dispensar o paciente, nos esquecendo da potência terapêutica que existe em simplesmente permanecer. Nos esquecemos da importância de olhar e enxergar, ouvir e escutar. Da importância de estarmos dispostos e nos permitirmos sentir o encontro e a experiência daquele que nos consulta, dentro de um vínculo terapêutico seguro, necessário para o profissional e para o paciente. É um movimento que demanda esforço ativo, que vai contra o que nos é ensinado exaustivamente: “não se envolva emocionalmente.”

 Nesse momento, é impossível fazer e escutar ao mesmo tempo. Temos que desacelerar: fazer nada da forma mais ativa possível. Tomar a consciência de que, muitas vezes, tudo que pode ser ofertado é a escuta atenta, e que ela talvez seja muito mais do que os pacientes recebem por aí. Quando estamos presentes, atentos, evitando uma atitude estéril de meros espectadores para testemunhar os eventos das vidas daqueles que nos consultam, podemos repousar sobre a certeza de que menos é, de fato, mais.


João Godoy: Estou médico formado pela Faculdade de Medicina de Jundiaí (2021), com residência médica em Medicina de Família e Comunidade pelo PRMFC de Praia Grande, SP (2024). Atualmente estou cursando o ano optativo de residência em Gestão e Preceptoria pelo Programa de Residência de Medicina de Família e Comunidade de São Bernardo do Campo (2025). Me interesso por pesquisa em Prevenção Quaternária. Procuro exercer uma medicina centrada na pessoa, baseada em incerteza e probabilidade. Vejo a organização coletiva como potente ferramenta transformadora da realidade. Gosto de estabelecer vínculos vulneráveis, ambientes com luz indireta, apresentacões artísticas e comida caseira. Tenho um canal no instagram para divulgar Ciência, Medicina de Família e Comunidade e o que mais o desejo mandar, segue lá: @joaogodoy.mfc


Foto: Médico de Família, pintura de Grant Wood, 1940.

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