Desdiagnosticar: quando menos é mais

março 11, 2024
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Por José Renato Amaral:

É um erro terrível teorizar antes de termos informação.

Arthur Conan Doyle

Uma das maiores satisfações de um médico é fazer um bom diagnóstico. Quando pensamos num bom médico, sempre imaginamos (sobretudo se formos médicos) alguém capaz de estabelecer diagnósticos corretos. Joseph Bell, um professor da escola de Medicina da Universidade de Edimburgo no século XIX, gostava de enfatizar a importância da observação dos pacientes, porque julgava isso essencial para se chegar a um bom diagnóstico. Em suas aulas, ele costumava já antes de iniciar a conversa com um paciente procurar deduzir, apenas a partir da sua observação, qual sua procedência, seus hábitos e sua ocupação. Isso impressionava muito seus alunos; um deles, Arthur Conan Doyle, inclusive fez muito sucesso como escritor (mais que como médico, aliás) ao criar, inspirado no professor Bell, o célebre detetive Sherlock Holmes.

Embora a importância da elaboração de diagnósticos corretos continue fundamental para a boa prática da Medicina, muita coisa mudou do século XIX para cá. Com a disponibilidade de exames complementares que revelam praticamente todas as alterações bioquímicas, estruturais e funcionais do corpo, a verdade é que toda essa habilidade sherlockeana já não é mais necessária e, provavelmente, a capacidade de discernir o que é relevante daquilo que é apenas uma alteração insignificante é mais importante para garantir bons desfechos para os pacientes.

Outro grande problema contemporâneo é a inflação da nosografia – a 11ª edição da Classificação Internacional de Doenças propõe quase 55 mil códigos. A tendência de elevação de condições pré-clínicas, fatores de risco e determinadas situações da vida mental ou psíquica à categoria de doenças não para de crescer, tornando virtualmente impossível alguém que seja detalhadamente avaliado escapar de algum diagnóstico. Provavelmente, Machado de Assis quis apenas ser irônico ao escrever “o Alienista”, mas se considerarmos que, de acordo com alguns psiquiatras, com a última versão do DSM poderíamos enquadrar 70% da população em algum transtorno mental, agora sabemos que aquilo foi profético.

De uma maneira simplificada, um diagnóstico consiste na identificação de uma condição somática ou mental que implica em uma desvantagem ou risco para a saúde de um indivíduo. Diagnósticos podem desencadear diferentes efeitos sobre seu portador, desde os mais óbvios e desejáveis, como um tratamento ou maior atenção da equipe de saúde até situações como estigmatização ou ansiedade com o prognóstico. Outro efeito que me parece muito importante, mas pouco valorizado é a influência do diagnóstico na construção da identidade pessoal (“sou hipertenso”, “tenho fibromialgia”, etc.), bastante variável em função de características da condição diagnosticada e da personalidade do paciente. Determinadas doenças ou condições podem também conferir a seus portadores alguns direitos, geralmente associados à assistência à saúde, de modo que, a depender da natureza do diagnóstico e do direito, o que seria uma desvantagem pode ser desejável, consoante o interesse preponderante do paciente.

Não é difícil, portanto, imaginarmos o quão problemático pode ser o excesso de diagnósticos, sobretudo se considerarmos que os recursos para assistência à saúde vêm sendo já bastante pressionados pelos custos dos tratamentos de doenças inquestionavelmente ameaçadoras.

Ademais, o desenrolar do processo terapêutico pode não ser necessariamente positivo para o paciente, como nas condições em que há o chamado sobrediagnóstico (o diagnóstico de uma condição cujo tratamento ou não tratamento não interfere na saúde geral de seu portador). Em tais casos, o paciente ganha o rótulo, a preocupação, o tratamento, a despesa, e o desfecho não se altera.

Entre o universo dos diagnósticos “adequados” e o dos sobrediagnósticos há muitas situações de diagnósticos úteis, mas que geram tratamentos desproporcionalmente onerosos ou complicados, sempre “na melhor das boas intenções”. Evidentemente, a economia do setor saúde baseia-se mais em intervenções que em estratégias conservadoras, o que torna a busca por escolhas mais sensatas algo semelhante a remar contra a correnteza. Nesse sentido, proliferam campanhas de rastreio de condições assintomáticas, mesmo sem haver evidência clara de benefício, e já há uma escassez de cores no arco-íris das doenças, de modo que algumas delas se repetem em diferentes moléstias, que também há tempos já não  cabem nos doze meses do ano.

Felizmente, tem ganhado mais espaço o conceito de desdiagnosticar. Para quem se interessar, recomendo a leitura do artigo de Marianne Lea e Bjorn  Morten Hoffmann, de Oslo (Noruega): “Dediagnosing – a novel frame for making people less ill” (European Journal of Internal Medicine; 95 (2022) 17-23). Os autores definem o desdiagnóstico como a “remoção dos diagnósticos que não contribuem para a redução do sofrimento da pessoa.” Nesse sentido, o desdiagnóstico vai além de deixar de listar condições já resolvidas ou reclassificar doenças, e envolve um processo ativo de remoção de diagnósticos cujo tratamento está sendo mais danoso que benéfico a um paciente.

Para isso funcionar, é preciso que se proceda à reavaliação do estado clínico do paciente, à luz dos exames adequados e diretrizes pertinentes, bem como que se avaliem tanto as preferências do paciente como  os efeitos que cada diagnóstico exerce sobre si (por exemplo: hipervigilância de familiares sobre a dieta de um indivíduo com glicemia de jejum marginalmente alterada e expectativa de vida limitada) e, finalmente, verificar se a elaboração de um determinado diagnóstico trouxe um efeito positivo, negativo ou neutro sobre a saúde do indivíduo.

Num mundo cada vez mais medicalizado, com a economia da saúde escalando gastos rumo ao insustentável e com as pessoas cada vez mais ansiosas acerca de sua própria saúde – e não mais saudáveis, como lhes fora prometido ao embarcar nessa “jornada do cliente da saúde” – o desdiagnóstico vem se juntar a outras iniciativas no sentido de se “fazer menos”, como as propostas de desprescrição. Na verdade, nem se trata de fazer menos, e sim, de fazer melhor. Nossa capacidade de análise foi ampliada para muito além do que o Dr. Bell conseguia avaliar, mas devemos permanecer capazes de discernir o que é relevante do que apenas confunde. Elementar, meus caros!

José Renato Amaral é geriatra,  graduado pela Faculdade de Medicina da USP, onde fez sua residência. É assistente do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas da FMUSP desde 2003. Paulistano, sempre sonhou em ser médico e morar numa chácara, no interior, mas SQN. Crê nos fundamentos do movimento Slow Medicine como princípios para a boa prática médica contemporânea, tanto no interesse de cada indivíduo/paciente, como para a sociedade como um todo.

10 Comentários

  1. Texto muito pertinente e que nos faz lembrar que medicina é também uma arte .Um pouco dali , um pouco daqui e buscar equilíbrio e o bem estar do paciente .Parabéns !

  2. Sou engenheiro e advogado. Aposentado com 78 anos de idade. 
    Gostei muito de ler e aprender com o texto- ao meu ver de leigo – do ilustríssimo professor doutor José  Renato Amaral.
    De fato tinha razão Arthur Conan Doyle quando disse “É um erro terrível teorizar antes de termos a informação.“, e isso vale para tudo e todas as profissões.
    Obrigado doutor pela ótima aula.

  3. Excelente reflexão! Muito pertinente inda mais nesses tempos de chegada da IA, em que já estamos caminhando cada vez mais mais entre protocolos e algoritmos, que tentam amarrar nosso raciocínio do diagnóstico e nos afastar da subjetividade e da intuição diante do nosso paciente.

  4. Espetacular, pois vejo e sofro julgamentos pelos colegas e famílias com certa frequência ao não valorizar alguns “diagnósticos”. Sou médica em clínica de transição e Hospices e me impressiona a frase – mas você nao diagnosticou? – em paciente que não irá modificar em nada o prognóstico. Compartilharei o artigo e seu comentário e continuaremos nessa jornada. Muito obrigada.

  5. O Prof. Luís Correia, livre-docente em Cardiologia, brilhante especialista em Medicina Baseada em Evidências, e um dos membros da iniciativa global “Choosing Wisely”, pondera que “Muito do sobrediagnóstico vem da falta de atenção para um bom resultado. Por exemplo, se um sujeito assintomático de 70 anos faz um cateterismo cardíaco que mostra uma obstrução de 70% no terço médio da coronária direita, esse exame é negativo. Esse exame é negativo para um diagnóstico que mereça preocupação. O exame é muito mais uma boa do que uma má noticia, pois é negativo para doença relevante. Mas em geral, com qualquer exame, a atenção é voltada para as informações ‘sim’, negligenciando as ‘não’.
    No entanto, acho que desdiagnosticar é muito mais dificil do que desprescrever. O diagnóstico é irreversível, no todo. Podemos reduzir danos (‘harm reduction’), mas não há como desfazer totalmente a perspectiva do paciente. E nós, médicos, também, ao tentar desdiagnosticar, podemos estar desdiagnosticando algo que, embora pareça fútil, pode gerar um evento futuro grave. Assim como a gente não tem certeza no diagnóstico, não teremos certeza no desdiagnóstico. Devemos então ter também o cuidado de não sobredesdiagnosticar.”

  6. Parabéns Dr. Jose Renato!
    Texto irretocável e tema fundamental a todos

  7. Muito pertinente, Zé… esses dias, uma paciente jovem que já tem o diagnóstico de uma doença neurodegenerativa, em seu longo processo de buscas de melhores tratamentos de sua condição, ouviu de algum profissional que teria o diagnóstico de “TDAH e, possivelmente, TEA leve”. Enquanto a mãe relatava o caso, a moça me olhou, cheia de razão e impaciência, e disse: “Dra., não quero ter isso, não. E já disse para minha mãe parar de repetir. Não muda nada na minha vida e não vou carregar uma outra condição nas costas. Já não bastasse essa (apontando as pernas)!”.

  8. Texto claro, objetivo e delicioso de ler. Adorei!

  9. José Renato, vc tem rede social para acompanhá-lo?

  10. Excelente!
    Compartilhando nos grupo de médicos

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