O medo e o exagero na medicina

novembro 24, 2022
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Por André Islabão

“’Medo’ é o nome que damos à nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito.” (Zygmunt Bauman)

Um dos conceitos que vêm sendo cada vez mais aplicados à medicina é o de cuidados de saúde baseados no valor. Ele se refere à relação existente entre os possíveis benefícios de uma intervenção e seus potenciais riscos e custos. Um dos fatores que levaram à adoção do conceito de valor dos cuidados é a percepção crescente de desperdício de recursos na saúde, com algumas análises sugerindo que até um terço dos gastos em serviços de saúde podem ser inadequados ou desnecessários. 

A ideia da necessidade de um melhor aproveitamento dos recursos não é nova na medicina. Na década de 1970, o próprio Archie Cochrane salientava a importância de otimizar a utilização dos recursos dentro do sistema de saúde inglês – o NHS – que apenas engatinhava na época. Além disso, iniciativas mais recentes como a Choosing Wisely, o movimento Less is more e a própria Slow Medicine batem com frequência na tecla da parcimônia e do bom senso na utilização dos recursos, lembrando que fazer mais nem sempre é fazer melhor e que, em qualquer sistema de saúde, o excesso ou desperdício de alguns fatalmente incorrerá na escassez de recursos para outros.

Reconhecendo que o setor dos exames de imagem é uma das áreas onde existe muito desperdício em medicina, um grupo de pesquisadores da Noruega realizou recentemente uma extensa revisão da literatura para tentar identificar, caracterizar e quantificar o uso de exames de imagem de baixo valor na prática clínica, publicando seus resultados na BMC Medical Imaging. Os exames de imagem de baixo valor foram definidos como aqueles que (1) têm pouco ou nenhum impacto sobre as decisões clínicas terapêuticas, (2) aumentam desnecessariamente os custos dos cuidados ou (3) impõem riscos desnecessários aos pacientes (p. ex., por exposição a radiação ou a agentes de contraste).

A lista de exames considerados como de baixo valor é enorme e foram identificados 84 exames e situações clínicas onde isso acontece. Algumas dessas situações são muito comuns, como no uso da tomografia computadorizada de crânio após trauma crânio-encefálico leve ou na realização de radiografias de tórax em revisões de saúde em pessoas assintomáticas. Um aspecto importante do estudo é ressaltar que o mesmo método de imagem pode ter um valor alto ou baixo dependendo da situação clínica em que é utilizado. Um exemplo é a ressonância magnética de coluna lombossacra, a qual pode ser bastante inadequada na maioria das lombalgias agudas de caráter postural ou mecânico, mas pode ser fundamental em um paciente que apresente, além da dor, as chamadas “bandeiras vermelhas”, como as alterações neurológicas progressivas. Assim, não é o exame que é adequado ou não, mas, sim, o uso que se faz dele.

O estudo finaliza com algumas sugestões sobre as possíveis causas para a perpetuação do uso de exames de imagem de baixo valor na medicina, entre elas os incentivos financeiros para que os profissionais realizem mais exames, a prática da medicina defensiva e algumas crenças inadequadas que médicos e pacientes podem ter em relação aos supostos benefícios dos recursos diagnósticos. Além disso, um fator que pode alimentar o uso exagerado de recursos na medicina é o medo, e este é o assunto de outro ótimo artigo.

Em 2014, a médica e escritora britânica Iona Heath escreveu um belo artigo em forma de ensaio sobre o medo para o BMJ. Neste artigo, a autora descreve as várias maneiras como o medo pode ser explorado pela nova ótica neoliberal que trata a saúde como mercadoria e contribui para a crescente mercantilização da saúde. Também são analisados os aspectos existenciais do medo, aqueles que nos afetam a todos, como o medo de adoecer e o medo da morte. Além deste medo existencial, existiriam ainda aqueles medos específicos da condição de “paciente”, como o medo de não ser compreendido pelo médico, o medo de que o diagnóstico esteja errado ou não seja feito em tempo hábil e o “medo nosso de cada dia” alimentado pela mídia e pelas redes sociais. Os médicos também teriam seus próprios medos, como o medo dos processos por má prática ao deixar de fazer um diagnóstico, o medo de sanções e de constrangimento público, além do medo das incertezas inerentes à aplicação dos conhecimentos científicos na prática clínica diária e no paciente individual. Para Iona Heath, também é evidente que os medos dos pacientes alimentam os medos dos médicos e vice-versa, em uma espiral de custos, riscos e desperdícios que faz com que a medicina moderna se caracterize cada vez mais pelo sobrediagnóstico dos saudáveis e pelo subtratamento dos doentes.

É preciso reconhecer que uma parcela significativa do que fazemos pode representar exagero ou desperdício, que isso contribui para uma parcela não menos significativa de racionamento ou escassez e que isso tudo pode ser prejudicial não apenas à saúde das pessoas como também à sustentabilidade do próprio sistema de saúde. Também é importante lembrarmos que o medo pode ser um fator preponderante na perpetuação deste comportamento hiperbólico da medicina. Neste caso, a melhor receita contra o medo e o exagero pode estar nos quatro pilares da Slow Medicine: o tempo (para a transformação do conhecimento em sabedoria e para o cultivo de uma relação de confiança mútua), o compartilhamento de decisões (para informar nossas decisões com honestidade em relação a nossas certezas e incertezas, além de ajustar as condutas às expectativas e preferências do paciente), a parcimônia tecnológica (para refletir a boa ciência e a sobriedade diagnóstica e terapêutica) e a relação médico-paciente (forte, profunda e longeva para embasar nossas melhores decisões e reconhecer as suas consequências). 


André Islabão: Sou médico internista formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com três anos de residência em Clínica Médica pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Depois de vários anos dedicado ao atendimento de pacientes hospitalizados, decidi reduzir o ritmo e me concentrar no atendimento ambulatorial, domiciliar e em consultório próprio. 

O tempo disponibilizado possibilitou que me dedicasse a outras atividades igualmente importantes, como a vida em família, a música, a tradução de livros médicos, o estudo de saberes diversos e o acompanhamento de pessoas em clínicas geriátricas, onde realizo um trabalho informal de musicoterapia tocando piano regularmente e levando um pouco de alegria aos moradores idosos. 

Para mim, a medicina é tanto arte quanto ciência. A fim de humanizá-la e de reduzir alguns excessos, acredito na filosofia slow, em uma relação médico-paciente longeva, na transdisciplinaridade do conhecimento e na análise crítica da ciência. Meu novo ritmo ainda me possibilita compartilhar ideias próprias em meu blog (www.andreislabao.com.br) e em dois livros publicados: Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro e O risco de cair é voar – mors certa hora incerta

Imagem: John Lund / Getty Images

2 Comentários

  1. Grande Marcus Ferrer, esta é certamente uma admiração mútua. Um grande abraço!

  2. O orgulho de ter-me formado médico junto com o André Islabão agora une-se ao sentimento de fã. Excelente texto, como todos por ele escrito.

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