O paradoxo de Asher

julho 17, 2023
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Por André Islabão

“Ainda bem que chegamos a um paradoxo. Agora, há esperança de conseguirmos algum progresso.” (Niels Bohr)

Um paradoxo é aquele tipo de raciocínio que, embora pareça lógico e coerente, traz em si uma contradição. Assim, eles costumam causar um certo desconforto, principalmente para os seres excessivamente racionais. O paradoxo é um terreno escorregadio onde nos sentimos pouco à vontade, pois nos parece que quanto mais o exploramos, mais ficamos perdidos. A ideia de desenvolver paradoxos como forma de exercitar o raciocínio e de estimular uma certa criatividade cognitiva não é nova. Já os pensadores da Grécia antiga o faziam e há alguns deles que ficaram conhecidos pela beleza de seus paradoxos.

O médico e escritor britânico Richard Asher era um desses observadores argutos da medicina do século XX e não tinha papas na língua quando o assunto era provocar o pensamento crítico da comunidade médico-científica de sua época. Asher escreveu pérolas como Os pecados da medicina, descreveu quadros clínicos importantes como a síndrome de Munchausen e a loucura mixedematosa e alertou para a possibilidade de diversas doenças estarem sendo já naquela época provocadas pelo excesso de cuidados médicos. Mas um de seus textos mais interessantes e que tem importância fundamental para a nossa prática clínica diária é aquele onde ele descreve o que ficou conhecido como o “Paradoxo de Asher”.

Asher afirmava e todos devemos concordar que os médicos devem ter uma boa capacidade de discernimento em relação às novidades científicas com o intuito de separar o joio do trigo. No caso da medicina, isso se refere à capacidade de identificar entre as tantas novidades milagrosas que aparecem semanalmente nos periódicos científicos e na mídia leiga aquelas poucas que realmente trazem algum benefício clinicamente relevante para médicos e pacientes. Assim, o bom profissional deve manter sempre um elevado grau de ceticismo em relação à ciência – ceticismo este que serve de força motriz para a própria ciência.

Por outro lado, todos os profissionais que atendem pacientes na prática clínica já devem ter percebido que o efeito terapêutico de qualquer medicamento – ou de qualquer outra intervenção clínica – parece ser diretamente proporcional ao grau de confiança e otimismo transmitido pelo médico ao paciente. Esta capacidade de potencializar o efeito terapêutico dos medicamentos com uma relação médico-paciente forte e de colocar uma boa dose de confiança naquela intervenção específica é parte fundamental da arte da medicina. Asher chegava mesmo a defender algumas situações mais extremas nas quais estaria indicado o que ele chamava jocosamente de “iatromegalia terapêutica”, o que se refere ao autoengrandecimento do médico apenas com o intuito genuíno de potencializar uma determinada intervenção terapêutica.

O paradoxo descrito por Asher afirma que o efeito de um determinado tratamento é uma função da crença do médico em sua eficácia. Assim, médicos muito céticos tendem a não transmitir muita confiança nas intervenções prescritas. Apesar de estarem “cientificamente corretos”, eles podem não estar ajudando seus pacientes tanto quanto se esperaria. Por outro lado, os médicos menos preocupados com os aspectos científicos da medicina podem indicar intervenções menos louváveis de acordo com as melhores evidências, mas que ainda assim ajudarão de alguma forma muitos pacientes, nem que seja pelo efeito placebo que toda intervenção parece ter. O paradoxo está no fato de os médicos terem de transmitir confiança em relação a tratamentos que algumas vezes eles sabem que não funcionam ou que têm pouca chance de ajudar aquele indivíduo específico, sob pena de desmotivar seus pacientes e piorar os desfechos clínicos (além de perder a clientela!). Médicos céticos podem ser ótimos para a análise das evidências científicas, mas eles podem não ser os melhores para a prática clínica. 

Tal paradoxo deixaria o médico em uma situação desconfortável entre o ceticismo necessário à análise crítica da ciência e a credulidade otimista que deve acompanhar cada uma de suas indicações terapêuticas. Asher dizia também em tom jocoso que isto explicava o sucesso de expoentes da profissão que demonstravam pouca habilidade na análise crítica das evidências científicas. Da mesma forma, o mesmo paradoxo também parecia explicar algumas carreiras clínicas frustradas de profissionais com uma excelente capacidade de discernimento científico, mas com pouca habilidade para disfarçar sua desconfiança em relação às intervenções propostas. 

O que este conceito do paradoxo de Asher pode nos ajudar em nossa atividade médica é nos levar a perceber essa dificuldade e buscar um meio termo onde se consiga harmonizar de alguma forma o ceticismo necessário para a análise crítica da ciência com o otimismo necessário para uma atividade clínica bem-sucedida. Devemos evitar tanto o charlatanismo descarado de quem prescreve os mais exóticos bálsamos terapêuticos como cura milagrosa para todos os males quanto o cientificismo exacerbado de quem confunde a ciência pura com a prática clínica diária – a qual vai muito além da ciência – e é incapaz de prescrever qualquer coisa que não seja baseada em evidências científicas sólidas e “irrefutáveis”.

Se a prescrição de um medicamento não nos parecer adequada em determinada situação, que tenhamos a habilidade necessária para explicar o problema detalhadamente ao paciente. Por outro lado, se nos parecer adequado prescrever um determinado medicamento, que o façamos sempre transparecendo confiança e otimismo, caso contrário corremos o risco de que seu eventual efeito terapêutico encolha a olhos vistos. Quem acha a ciência médica complicada é porque nunca se debruçou sobre as nuances da arte da medicina e toda a riqueza de detalhes que a envolve a prática clínica diária.


André Islabão: Sou médico internista formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com três anos de residência em Clínica Médica pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Depois de vários anos dedicado ao atendimento de pacientes hospitalizados, decidi reduzir o ritmo e me concentrar no atendimento ambulatorial, domiciliar e em consultório próprio. 

O tempo disponibilizado possibilitou que me dedicasse a outras atividades igualmente importantes, como a vida em família, a música, a tradução de livros médicos, o estudo de saberes diversos e o acompanhamento de pessoas em clínicas geriátricas, onde realizo um trabalho informal de musicoterapia tocando piano regularmente e levando um pouco de alegria aos moradores idosos. 

Para mim, a medicina é tanto arte quanto ciência. A fim de humanizá-la e de reduzir alguns excessos, acredito na filosofia slow, em uma relação médico-paciente longeva, na transdisciplinaridade do conhecimento e na análise crítica da ciência. Meu novo ritmo ainda me possibilita compartilhar ideias próprias em meu blog (www.andreislabao.com.br) e em dois livros publicados: Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro e O risco de cair é voar – mors certa hora incerta. 

5 Comentários

  1. Parabéns pela
    Clareza do texto e pela
    Decisão de ser Slow !!!  Adorei a relação médico paciente longeva !! Show !

  2. Gostei muito 

  3. Parabéns André aplicando vc vai fazer diferente …sua faculdade tem sido comentada exatamente por permitir ver além de ensinar tal conceito

  4. Um comentario pertinente é o do Dr Balint clínico inglês oriundo do leste europeu e criador dos conhecidos grupos Balint dos anos 70/80 . Resumindo de uma maneira ingênua sua atividade clínica é que a principal terapêutica médica é que “ o médico receita a si mesmo”

  5. Excelente texto e reflexões.. Parabéns ! 

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