O pulso que (ainda) pulsa

março 21, 2022
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Por Ana Lucia Coradazzi:

“O pulso ainda pulsa
E o corpo ainda é pouco

Ainda pulsa
Ainda é pouco”

(“O Pulso”, dos Titãs)

Em 1989, a banda de rock Titãs lançou a emblemática canção intitulada O Pulso. Os versos da canção enumeram diversas doenças que podem afligir o corpo humano para, então, enaltecer em seu coro a força da vida ao se libertar e enunciar em alta voz que, apesar de todos os problemas, “o pulso ainda pulsa”. Mais de 30 anos se passaram desde então. Nessas três décadas, muito se modificou na maneira com que tratamos as doenças (inclusive as descritas na música). Temos diagnósticos rápidos e precisos, terapêuticas mais eficazes, estratégias impressionantes para abordar situações complexas, e uma compreensão biológica das doenças com a qual mal podíamos sonhar nos anos 80s. Tudo isso impecavelmente demonstrado por dados estatísticos.

O aumento da nossa expectativa de vida é um indício de que temos feito nossos pulsos pulsarem por mais tempo. Aliás, números não faltam no cuidado à saúde que oferecemos hoje. Temos metas numéricas a serem atingidas, seja nos resultados de um exame (Deus nos livre de uma glicemia acima de 100!), nos quilos denunciados na balança, nas calorias a serem ingeridas num dia, ou mesmo no intervalo de meses considerado ideal para realizar exames preventivos que, queremos acreditar, salvarão nossas vidas de doenças assustadoras. Temos dados estatísticos provenientes de estudos clínicos que, embora realizados em situações ideais e controladas, são ingenuamente replicados no mundo real, na esperança de obter exatamente os mesmos resultados para todos os pacientes. Nossa esperança é tanta que atribuímos nossos insucessos ao acaso ou ao azar, e não à vida como ela é. Temos números até mesmo para engessar nossas políticas públicas, ignorando o fato de que contextos diferentes exigem abordagens diferentes. O que buscamos, no frigir dos ovos, são as certezas escondidas por trás dessa matemática (números sempre parecem tão confiáveis…). Mas a vida – ainda bem! – não é um algoritmo.

Às vezes, olhando para os médicos, os enfermeiros, os profissionais da saúde em geral, tenho a sensação de estarmos todos vagando um tanto perdidos em meio à neblina espessa dos dados científicos. Saímos corajosamente em meio ao mar revolto das doenças alheias, imaginando que dispomos da tecnologia necessária para atravessá-lo em segurança e com a certeza de que conduziremos nossos pacientes, sãos e salvos, ao porto mais próximo. Não enxergamos um palmo diante de nós. Deixamos que os dados estatísticos (e as diretrizes de condutas resultantes deles) sejam nosso GPS, delegando a eles nossa rota. Vez por outra, nos esbarramos uns com os outros, reconhecendo-nos na mesma letargia, seguindo os passos uns dos outros em meio à névoa atordoante. Na mesma névoa, credulamente, vagam nossos pacientes, seus familiares, seus amigos. Eles nos seguem, confiantes, certos de que a matemática não falha, de que os dados não mentem e – ingênuos que são – de que nós sabemos exatamente o que estamos fazendo. Que tenham piedade de nós.

A realidade, infelizmente, é bem outra. Os números, inanimados que são, pouco significam sem um contexto. Muitos dos números que adotamos como dogmáticos foram definidos de forma absolutamente aleatória (como a determinação de que um aumento superior a 20% nas dimensões de um tumor significa progressão da doença, mas um aumento de 19% indica que a doença está estabilizada). Outros tantos variam ao longo do tempo (como a definição da taxa ideal de glicose no sangue para reduzir as chances de um infarto) ou simplesmente caem em desuso sem maiores explicações. Haja fé para crer que os números estão sempre certos… Vamos nos movendo na neblina, submissos à certeza ilusória que os números nos oferecem, quando deveríamos concentrar nossos esforços em estratégias para dissipar a névoa. Por mais complexa que seja a realidade, enxergá-la com clareza e lidar sensatamente com ela aumenta muito as chances de ajudarmos genuinamente as pessoas. Por mais ingênuo que possa parecer, “dissipar a névoa” não é muito mais do que usar empatia, bom senso, tempo e raciocínio lógico ao lidar com nossos pacientes (qualquer semelhança com o que se aprende na faculdade não é mera coincidência). A Medicina Sem Pressa, com sua filosofia sóbria, respeitosa e justa, é um poderoso clareador de horizontes.

Escutando novamente o sucesso dos Titãs, me vem à mente a imagem de uma espécie de zumbi cibernético que, apesar de tantas intempéries castigando seu corpo, continua perambulando por aí, incapaz de sentir prazer, retribuir amor ou viver minimamente sua vida. Não estou restringindo meus “zumbis” a pacientes com doenças graves irreversíveis e severamente limitantes que são submetidos a toda sorte de procedimentos para que seu pulso permaneça palpável (e devidamente monitorizado) – antes fosse! Falo dessa legião de zumbis na qual nos transformamos, escravizados pelas regras arbitrárias da ciência sem adaptá-las ao que nos é valioso, ao que nos faz genuinamente felizes. São dezenas de medicamentos, procedimentos, orientações de todos os tipos, tudo isso apresentado como essencial para se ter saúde e, pretensamente, viver (muito) mais tempo. Sendo francos, acabamos acreditando que a morte pode ser uma opção, e não um destino inevitável. Só morre quem não segue a cartilha que as estatísticas construíram. É bom lembrar que quem segue rigorosamente a cartilha morre também, às vezes mais cedo. Pode ser por desgosto com o que sua vida se transformou.

A ciência se desenvolveu para que pudéssemos viver mais e viver melhor, mas ao colocá-la no comando absoluto o significado de “viver” se perde na neblina. É justo (e altamente desejável) questionar, analisar, escolher o que nos serve. Cabe a nós, profissionais da saúde, auxiliar nossos pacientes a fazer essas escolhas, e que elas sejam as melhores possíveis, ainda que estejam em desalinho com diretrizes e protocolos (talvez principalmente nesse caso). É preciso humildade para lembrar que nossa função mais importante não é manter as pessoas biologicamente vivas, e sim genuinamente felizes. Um pulso que permanece palpável em alguém que esteja vivendo em grande sofrimento, ou em uma pessoa cuja vida perdeu seu significado, deveria ser motivo de preocupação, e não de comemoração. A frequência cardíaca que ele representa é só mais um número que, fora de contexto, não tem nenhum valor. O pulso de alguém talvez possa ser melhor mensurado se, em vez de nos limitarmos a contar suas batidas, pudermos escutar o que nos diz aquele coração. Esse sim precisa ter motivos para continuar a pulsar. 

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Ana Lucia Coradazzi: Médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP, com residência médica em Hematologia & Hemoterapia e, posteriormente, residência médica em Oncologia Clínica. Cursou a pós-graduação em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires, o que mudou de forma irreversível os rumos da sua vida. Criou a Unidade de Controle da Dor e Cuidados Paliativos do Hospital Amaral Carvalho, onde permaneceu como coordenadora até outubro de 2015. Atuou como médica do Centro Avançado em Terapias de Suporte e Medicina Integrativa (CATSMI) do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, até 2019. Atualmente é responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu. É autora dos livros No Final do Corredor e O Médico e o Rio, e editora do blog  www.nofinaldocorredor.com, nos quais escreve sobre o quanto nosso envolvimento nas histórias de vida dos pacientes pode ser transformadora, principalmente para nós mesmos.

2 Comentários

  1. Excelente reflexão. Parabéns!

  2. Os dados estatísticos devem ser JUSTAMENTE o GPS, mas o GPS da vida real e cotidiana. Nela, com naturalidade, assumimos o controle final sobre o GPS: tomamos uma via diferente, e o Waze que se reajuste, o GPS que se vire. Às vezes, nas estradas da vida, até nos movimentamos na direção diametralmente oposta da seta, ao escolher voltar e olhar algo que não estava nos planos, mas chamou a atenção. O Waze que, do novo endereço, sinalize novamente o “grande norte”. Então, na verdade, o problema não é que os dados estatísticos sejam nosso GPS (a base teórica da visão epidemiológica é justamente esta). O problema é o uso caricatural do GPS. Ou da MBE. Ou dos dados científicos.

    Belo texto!

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