O sentido do Método Clínico Centrado na Pessoa

setembro 24, 2018
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Por Carla Rosane Ouriques Couto:

Reflexões a partir do Filme “WIT” – Uma Lição de Vida

“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano.

E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”  

(John Donne)

Desde o início do século passado, pesquisadores vêm se debruçando sobre a questão: uma boa relação médico-paciente, com confiança, empatia e afeto, tem impacto no desfecho do problema ou doença? E mais…qual o ganho que uma relação assim traz ao profissional de saúde?

As pesquisas continuam e as respostas encontram um ponto comum: sim! A relação médico-paciente adequada faz absoluto bem ao médico, ao paciente e ao desfecho favorável do problema ou cuidado crônico. Um dos mais importantes grupos de pesquisadores desse tema encontra-se na Western University, em London (Ontário/ Canadá), liderados pela Drª Moira Stewart. A partir dos resultados de décadas de estudo de outros cientistas (Balint, Rogers, Hopkins, Newman e Young) e de suas próprias pesquisas, o grupo descreveu e tem aprimorado um método clínico (que considera e incorpora os aspectos clínicos da ciência médica clássica), utilizado como guia e instrumento de ensino pela maioria das escolas médicas: Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP).

O MCCP e suas outras vertentes: aconselhamento centrado no cliente, de Rogers (1951), medicina centrada na pessoa de Balint (1957) e a medicina narrativa de Newman e Young (1972), se contrapõem à medicina centrada na doença, no médico, na hierarquia hospitalar ou nos interesses do mercado financeiro. Todas essas teorias têm muitos aspectos em comum.

O MCCP é das mais importantes tecnologias leves (humanas) valorizadas pelo movimento Slow Medicine, para um ideal de oferta de cuidados racionais, sóbrios e justos, que incluam o paciente desde o diagnóstico ao plano de cuidados, ao lado do médico, compartilhando decisões e propostas de mudanças de vida.

Bem, se os resultados apontam para esse rumo, enfatizando que o MCCP é o ideal para humanos que cuidam e humanos que são cuidados, o que tem dado errado? Por que com frequência pacientes se queixam de não serem vistos, ouvidos, acolhidos e orientados? Por que pesquisas mostram que boa parte dos profissionais têm dificuldade em ouvir, partilhar projetos de cuidados e respeitar a vontade e a singularidade de seu paciente?

Conforme sabiamente observado por McWhinney (2001): “Um caso real dá vida às coisas de uma forma que dados acumulados não conseguem fazer”. Optamos por refletir sobre o MCCP e seus desafios, a partir da história de Vivian, ficção que poderia ser caso real, contada em primeira pessoa, no filme “WIT – Uma Lição de Vida”, de Mike Nichols. O filme é de 2001, mas muitos de seus elementos, conforme relato de professores e alunos que o tem utilizado intensamente como instrumento de aprendizagem, são atuais.

Vivian Bering tem 48 anos, e foi uma destacada professora de literatura. Uma acadêmica durona na relação com os alunos, solitária, que confere grande valor às suas publicações e prêmios literários. Não tem filhos, nem irmãos, e os pais são falecidos. Dedicou sua vida à pesquisa da complexa poesia metafísica do inglês Jonh Donne (1572-1631).

A trajetória brilhante de Vivian vai bem, até que é confrontada com um agressivo câncer de ovário. Aceita o desafio da cura, através de um esquema quimioterápico experimental, conduzido pela equipe do Dr Kelekian num hospital americano de alta tecnologia. A notícia do diagnóstico já nos mostra uma relação inadequada de Kelekian com a paciente, que em poucos minutos fecha um plano de tratamento com Vivian. Nenhum detalhe ou efeito colateral é discutido. Médico e paciente mal se conhecem. Kelekian não contextualiza a doença na vida de Vivian, julgando apenas que esta é uma pessoa forte, e vai suportar o tratamento. Kelekian e Vivian, prestam atenção ao “disease” e deixam para depois, o “ilness”. São esquecidos os dois primeiros princípios do MCCP: “Explorando a Saúde, a Doença e a Experiência da Doença”; e “Entendendo a Pessoa como um Todo”.

Com uma representação superestimada de sua força e persistência, afinal, era uma “vencedora” no jogo da vida, a paciente topa o desafio, de se tornar cobaia de um tratamento tão agressivo quanto a doença. O chefe da equipe está entusiasmado, porque seu grupo tem desenvolvido um estudo de novas drogas para neoplasias agressivas.

Porém na cena seguinte à notícia, encontramos Vivian, sem cabelos, internada, com sua camisolinha aberta na parte de trás, tendo seus vômitos e eliminações cuidadosamente medidos pela enfermagem. Ela então se dirige a nós expectadores, e declara: “se eu soubesse disso, teria perguntado mais…”

A equipe, e o médico residente responsável, Jason, continuam sem conhecer Vivian. No curso da internação, os cumprimentos diários e os procedimentos obedecem a fria e rígida hierarquia do hospital. Mesmo que você possa andar, é obrigado a ir na cadeira de rodas. Ainda que as pessoas lhe perguntem o nome e como vai, são apenas procedimentos. Mesmo que você se sinta mal, se há um exame marcado…não tem discussão, você vai…Seria este um dos desafios estruturais ao MCCP: a rotina hospitalar rígida e impessoal? Podemos, por esforço individual ou coletivo, aprimorar esta forma de organização dos serviços de saúde?

Uma das rotinas de internação é submeter-se a um exame ginecológico. Vivian reconhece no médico residente, seu antigo aluno, Jason. Jason também lembra das aulas, da professora durona e de como a admirava. Ela não dava nenhuma chance aos alunos quando estes falhavam. E ele, um aluno dedicado, tinha boas notas.

A cena do exame ginecológico, de um profundo desencontro entre médico e paciente, é das mais importantes para compreendermos do que trata o MCCP. Mesmo que a assistamos muitas vezes, sempre haverá um choque. Após uma anamnese estilo interrogatório, impessoal, com perguntas fechadas, Jason faz um exame também impessoal e doloroso. O quarto componente do MCCP: Intensificando a Relação entre a Pessoa e o Médico”, através do exercício da compaixão e empatia, utilizando positivamente os mecanismos de transferência e contratransferência é absolutamente desprezado. Apesar de serem velhos conhecidos como professora e aluno, como paciente e médico não conseguem se aproximar. O clima é de estranhamento, constrangimento e de uma violência sutil, não expressa em palavras. Poderia haver uma transferência positiva entre Vivian e Jason, visto que ambos tinham os mesmos valores, eram competitivos, pouco afetivos e empáticos com as pessoas em geral. Porém no momento em que Vivian se torna paciente, as necessidades mudam. E Jason, em sua imaturidade não consegue desempenhar o papel de cuidador. Ao final da cena, paciente e enfermeira espelham no rosto o espanto e a dor, que não possuem nenhum canal de expressão fora da emoção delas. Jason não é um criminoso, é um bom rapaz, dedicado à Medicina. Não há falta de educação ou agressão explícita. Só a magia do cinema nos faz ver a violência sutil da cena, um consenso para quem assiste.

Há outra cena bastante simbólica: a ronda médica. O início é abrupto, com vários estudantes e médicos, levantando o lençol da paciente para palmar o tumor abdominal, que pouco regrediu com o tratamento. A visita é para o tumor, para discutir em termos técnicos, como estava indo a quimioterapia. O efeito colateral mais flagrante, a alopecia, não é visto pelos estudantes, pois ninguém olha para o rosto de Vivian. Cada acadêmico procura se destacar mais do que os outros, e Jason é o mais brilhante de todos, ao discorrer sobre as doses de ataque e curso da quimioterapia, a qual, decidem seguir com maior agressividade, mesmo sem resposta clínica e com a fragilização crescente da paciente.

A professora, é então “lida” como um livro. E por mais que esta ame as palavras, e se esforce, não consegue compreender os termos semiológicos, o jargão médico. Isso aumenta sua solidão, e é mais um desafio para a prática do MCCP: comunicação clara, contínua, adequada as necessidades e características do paciente. O outro desafio que a cena nos traz, é a questão do exercício do poder médico, como parte evidente da identidade profissional. Poder que gera competição e distanciamento de colegas e pacientes, desde o início (ou até antes) da graduação. Pensamos ser gigantesco este desafio, por ser histórico, e nas últimas décadas, alimentado pelos valores sociais de consumo, glamour, exposição pessoal e ascensão social. No Brasil, sofreu um incremento: o número extraordinário de escolas médicas privadas, que a um custo financeiro altíssimo, nem sempre coerente com qualidade pedagógica, confere aos egressos uma ilusão: “sou médico, sou poderoso, e serei feliz para sempre”. Nota-se que a formatura médica no Brasil é um evento paradigmático desse poder. Diante de tamanho incentivo social, podem os jovens médicos resistirem a esse poder?

Durante a internação de Vivian, somente uma pessoa é capaz de desenvolver um método de cuidado adequado e humano. Susan, enfermeira, é a única a ver uma pessoa para além da paciente grave. Sente e pressente a solidão, o desamparo e as consequências do processo de regressão e revisão da vida, pelo qual passa Vivian. É a única profissional que explica a Vivian o que está ocorrendo, quais são os passos seguintes do tratamento, praticando o terceiro componente do MCCP: “Elaborando um Plano Conjunto de Manejo dos Problemas”: exposição dos problemas e prioridades, das metas do tratamento e/ou do manejo, e por fim dos papéis da pessoa e do médico. Na famosa “cena do picolé”, temos então a visualização de proximidade, intimidade, troca humana, interação e comunicação ideais. Vivian fica então sabendo que não haverá cura, e que ela tem o direito de escolher como será quando o seu coração parar. Susan anota então em seu prontuário o código – NR – “não ressuscitar”. Neste momento, dos poucos em que há diálogo e alguma alegria entre pessoas, o que Vivian na verdade deseja saber de Susan é: “você cuidará de mim até o fim?”

Há várias passagens que mostram as posturas polarizadas de Jason e Susan quanto a forma de lidar com pessoas. Jason não compreende porque deve-se informar a um paciente em coma, sobre um procedimento a ser feito. Ao contrário de Susan, rejeita e não consegue dar curso às questões existenciais de Vivian, como por exemplo: “você tem saudade das pessoas?” “por que escolheu a oncologia?” Confessa à Vivian, que seu objetivo é ter seu próprio laboratório de pesquisa. Mas até lá, precisa conviver com clínicos trogloditas (e pacientes claro…).

Após negar à paciente o pedido da enfermeira, de que a própria Vivian pudesse manejar uma bomba de infusão de morfina, a equipe médica seda Vivian, sem nenhuma perspectiva de melhora. Apenas cada dia vivido por ela, é mais um dia de sobrevida, de uma paciente inserida num protocolo experimental. Este é mais um desafio ao MCCP: condução de pesquisas norteadas pela ética da vida humana, e não pelos interesses acadêmicos, pessoais ou da indústria farmacêutica/tecnológica. Jason chega a falar com Vivian, estando ela já morta, e exclama em determinado momento: “mas ela é meu experimento!”. E o Dr Kelekian, para espanto da paciente, que o tempo todo conversa com o expectador, num quadro de dor profunda e lancinante pergunta: “você está sentindo dor?”

Por fim, diante da morte, o desejo da paciente é mais uma vez desconsiderado. Jason, como uma criança que perdeu o brinquedo, inicia a ressuscitação, só cessada, quando a enfermeira comprova pelo prontuário a vontade da paciente. Mais um dilema: a forte hierarquia entre as equipes de saúde, onde nem sempre quem detém o poder, é o profissional mais próximo do paciente.

Vivian parte então, solitária como viveu, sem ter conhecido plenamente a experiência humana. Tarde demais reconheceu que havia se equivocado. Que o mais importante não eram os títulos, e os louros da academia. Tratada por médicos, com valores semelhantes aos que cultivou, pensou: “mas agora é a minha morte…” E entendeu que precisava, mais do que tudo, de contato, de escuta, de toque, de acolhimento. Mas ao seu redor apenas paredes frias, nada de cor, nada de histórias, nada de sons, nada de conversas. Um cenário no qual ela dialoga com a morte, revisita suas memórias e também não encontra humanidade. Morte…que segundo a poesia de John Donne, não merecia um ponto de exclamação (poema “Morte, não te orgulhes”). Após a morte, há somente um ponto. Apenas um intervalo entre a vida e outra coisa.

John Donne foi um dos poetas que ampliou e ajudou a definir a expressão polissêmica “wit”: destreza intelectual e/ou capacidade associativa, senso, sentido aguçado, cognição ampliada, qualidade genial, profundo entendimento, consciência aguda. Para J.L. Araújo Lima, a missão dos poetas metafísicos com este termo deseja traduzir: “habilidade de expor o coração ao mesmo tempo que se mantém a agudeza de consciência e de raciocínio, numa atitude adulta, não necessariamente contraditória”.  “Wit” seria então o modo adequado de transmitir as profundezas da realidade interior, considerando ainda que os grandes atos da vida devem aferir o seu peso relativo à luz da morte. A intenção é a busca da verdade e a recusa de fechar os olhos a multiplicidade da experiência vivida (Lima,1984).

Podemos então compreender que o MCCP é a trilha, o caminho para o “wit” do cuidado humano. Segundo Stewart (1995) muitos educadores e pesquisadores viam a medicina centrada na pessoa como uma “ciência mole”: a atenção e a compaixão eram reconhecidas como aspectos importantes do cuidado humanitário, mas poucos estavam conscientes do papel central da comunicação centrada na pessoa na medicina científica moderna. Trata-se de ciência do cuidado, com fortes evidências de que devemos praticá-la.

Entendendo o que seja a expressão metafísica “wit”, talvez possamos também inferir que a medicina “wit” seria a Slow Medicine: a prática médica que busca o estado permanente de consciência, de bom senso entre emoção e razão, entre técnica e afeto, entre o silêncio e a palavra, entre o esperar e o fazer, entre o acolher e o deixar partir.

A lucidez total, isto é, a verdade, fica para Deus, e o poema metafisico, o poema do “wit” apenas afirma numa linguagem complexa, a necessidade do esforço, que é um esforço humilde, de sulcar a vida, com olhos de ver.” (Lima,JLA)

Material consultado:

1.STEWART et al 2017_Medicina Centrada na Pessoa[recurso eletrônico] / tradução: Anelise Burmeister, Sandra Maria Mallmann da Rosa; revisão técnica: José Mauro Ceratti Lopes . – 3. ed. – Porto Alegre: Artmed, 2017. e-PUB. Editado como livro impresso em 2017. ISBN 978-85-8271-425-6 1.

2.LIMA, José Luís Araújo. A poesia dos Metafísicos: modos da expressão e o efeito de “awareness: I – wit. Revista da Faculdade de Letras. Línguas e Literaturas. – Porto. – 2ª série, v.1 (1984), p. 247-259.

 

Ficha Técnica: Uma Lição de Vida

Data de lançamento: 2001

Direção: Mike Nichols

Elenco: Emma Thompson, Christopher Lloyd, Eileen Atkins

Gênero: Drama

Nacionalidade: EUA

Título original: WIT

 ________________

Carla Rosane Ouriques Couto é Médica de Família e Comunidade, especialista em Pediatria, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador, Gerenciamento de Unidades Básicas, Terapia Familiar e Educação Médica. Mestre em Psicologia Social. Mesmo sendo professora há muitos anos, ainda não sabia que poderia se resumir numa só palavra – “wit” – toda a busca de uma vida com mais sentido. Não precisamos esperar a morte, como Vivian, para compreender seu significado.

2 Comentários

  1. Prezado Campos Velho. Magnífico o texto de desta semana. Destaco o brilho de Carla Rosane reforçando aquilo que 17 anos atrás já não era novidade. Precisamos demais insistirmos nessa conduta do MCCP aliando-a à tecnologia sem comprometer o que queremos do “slow medicine”. Grande abraço.

  2. Se prestarmos excessiva atenção à doença e negligenciarmos o doente e seu universo biopsicossocial, corremos o risco de ignorar a pessoa doente e tratar somente resultados de exames. Gosto de uma frase que ouvi não sei aonde que em resumo diz que a Tecnologia distrai, ou o excesso dela. Damos poderes a máquinas, pesquisas, indicadores, estatísticas. Precisamos URGENTEMENTE mudar o FOCO de atenção da doença para quem está doente. Do macro para o microcosmos. Sou otimista, acredito que chegaremos lá. O movimento Slow é prova disso, disseminemos esse saber. Parabéns Carla Rosane, as artes como o cinema nos ajudam a ensinar EMPATIA.

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