O sistema sanitário torna-se eficaz para produzir lucro, não saúde: uma entrevista com Victoria Sweet

abril 9, 2018
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Por Marco Bobbio:

Em outubro do ano passado foi lançado o último livro de Victoria Sweet, autora de God´s Hotel – A doctor, a hospital and a pilgrimage to the heart of medicine, publicado em 2012. Naquele livro a autora havia previsto o nascimento de uma slow medicine, uma medicina sem pressa, na qual o médico desempenha um papel mais parecido com o de um jardineiro, preocupado com a saúde de suas plantas, do que com o de um mecânico que se dedica ao conserto de carros quebrados. No texto Slow Medicine – The way of healing, Victoria Sweet (que, no passado, era médica no Laguna Honda Hospital de San Francisco e se dedicava ao estudo da história da medicina) analisa sua carreira profissional contando as histórias de pacientes que lhe ensinaram a reconhecer os limites da medicina fast. 

Tendo em vista o interesse que suas reflexões despertaram nos sócios e simpatizantes da Slow Medicine, consideramos interessante debater com ela alguns aspectos que dizem respeito também à situação italiana.

Marco Bobbio (MB): A Slow Medicine defende uma medicina Sóbria, Respeitosa e Justa. Considerando sua experiência pessoal, você acredita que o adjetivo “Slow” seja necessário, tendo em vista que a prática da medicina, pelo menos da medicina que você estudou e à qual se dedicou no início de sua carreira, deveria inspirar-se nestes três adjetivos?

Victoria Sweet (VS): Ótima pergunta. Sim, de fato, o termo “slow” poderia ser supérfluo. O tema a respeito do qual nós estamos falando refere-se a uma boa medicina, assim como o termo Slow Food significa uma boa comida. O movimento Slow Food adotou o termo “slow” para contrapor-se à disseminação do “fast food”: ela é Não-Fast. Sob este ponto de vista, o adjetivo “slow” para a “Slow Medicine” é útil, pois deixa claro o que ela não é. A “Slow Medicine” não se identifica com um modelo industrial criado para levantar dinheiro ou para oferecer uma assistência sanitária de forma mais eficiente. Ela não considera o corpo humano como uma máquina para ser consertada ou como um computador para ser limpo, mas sim como uma planta, principalmente como algo individual, sensível e complexo. Em outras palavras, usa-se a definição “Slow Medicine” exatamente porque ela é uma prática médica não-Fast .

MB: Ao ler seu livro fiquei impressionado pelas considerações que você faz a respeito da transição da medicina que você praticava no início de sua carreira, para o sistema de saúde que transformou a  forma de trabalho dos médicos. Lembrei-me do livro As Vinhas da Ira de John Steinbeck no qual ele descreveu magistralmente os dramas humanos e sociais devidos à transição das atividades agrícolas familiares para a agricultura de tipo industrial. Você não imagina que as mesmas mudanças que ocorreram na agricultura no século passado e mais recentemente na medicina possam ser o resultado de uma exasperada procura para uma maior eficiência?

VS: Eu me pergunto sobre o conceito de “eficiência” na agricultura e na jardinagem,  áreas nas quais eu não tenho expertise, e na medicina. Qual o significado que damos à palavra eficiência, na verdade? Na agricultura significa produzir o máximo possível com o menor número de funcionários? O “mais barato” é avaliado pelo número de pessoas envolvidas ou pelo número de horas gastas para produzir a comida? Entretanto, este conceito de eficiência deixa de analisar muitos custos: a destruição do solo, a produção de resíduos e as horas de trabalho não  contabilizadas. No âmbito do sistema sanitário eu também questiono o conceito de eficiência que, baseada na minha experiência, produz enormes desperdícios: exames e tratamentos desnecessários que determinam  efeitos colaterais desnecessários. Em realidade, este sistema torna-se ineficiente e, paradoxalmente, a ineficiência acaba sendo difundida como eficiência.

MB: Como pode a Slow Medicine reverter esta tendência?

VS: O maior problema para reverter esta abordagem é que nós temos interpretado mal o propósito da Fast Medicine. O propósito da Fast Medicine não se limita a desenvolver um sistema sanitário eficiente. O propósito da Fast Medicine é produzir lucro para a indústria farmacêutica, para o marketing, para lobbies, para os executivos dos hospitais, para os acionistas, para Wall Street, para as empresas de seguro, todos setores muito poderosos. Penso, portanto, que a forma mais eficiente para inverter esta tendência consista em promover iniciativas alternativas, da mesma forma que foi feito através do Slow Food e do Movimento para o Alimento Orgânico, que foi e continua sendo um movimento slow. Não se adotou um combate direto, mas partiu-se para a organização dos mercados rurais, das cooperativas, da agricultura sustentada pela comunidade, etc. Creio que este deveria ser nosso modelo. Algo como um movimento de Medicina Orgânica. Nos estados Unidos está crescendo o “concierge movement” (*) e o “direct pay movement” (*), que permitiram reduzir o acesso ao Pronto Socorro em 40% e as internações hospitalares em 15%, com um aumento na satisfação por parte dos pacientes. A Slow Medicine não é apenas melhor, mas é também econômica.

Nota (*): Trata-se de dois termos que indicam mesmo tipo de iniciativa: Alguns médicos individuais ou grupos de médicos estabelecem um acordo com os pacientes para serem pagos mensalmente em troca de uma assistência cuidadosa e personalizada. Desta forma, os médicos não são mais obrigados a assumir um número exagerado de pacientes para compensar a baixa remuneração que receberiam por parte das companhias de seguro e podem dedicar mais tempo aos pacientes, deixando de desperdiçar seu tempo para preencher formulários administrativos. 

MB: Quando chegou no Laguna Honda Hospital em San Francisco, você decidiu visitar aos pacientes tão logo eles tivessem sido internados, antes mesmo de ler seu prontuário ou de falar com os familiares. Na Itália, a Slow Medicine lançou o projeto #buongiornoiosono, iniciativa que se concentra exatamente na atitude que você tem tomado: solicita aos médicos e aos enfermeiros que se apresentem aos pacientes para estabelecer com eles uma relação humana antes mesmo de iniciar uma relação profissional. O quanto você acha  que é importante criar uma relação positiva com o paciente logo após sua internação?

VS: O contato face a face com uma pessoa, o aperto de mão e a própria apresentação não são apenas provas de uma boa educação. Do ponto de vista médico, a coisa mais importante que deve ser feita, no meu modo de ver, é entrar em contato com o paciente. Para o diagnóstico é indispensável olhá-lo, sentir seu cheiro, estar presente! Alguém me escreveu que 90% dos diagnósticos se esclarecem quando o paciente entra no consultório e se senta na sua frente. Trata-se, provavelmente, de um exagero, mas a questão principal  é perceber com precisão se o paciente está doente ou não e, se está doente, qual a gravidade. Pois bem, naqueles poucos minutos iniciais é exatamente o que se pode compreender.

MB: Ao longo do livro você tece algumas considerações a respeito da filosofia da Slow Food. A diferença entre a ciência da alimentação e a gastronomia é que a primeira estuda os diferentes componentes da comida, sem levar em conta a sensação da degustação, enquanto a segunda explora, de forma integral, o prazer implícito ao que comemos. Você não imagina que possamos imaginar o mesmo tipo de contraposição entre a Fast e a Slow Medicine?

VS: Eu penso exatamente assim. O resultado final é muito mais do que a somatória dos componentes. É o mesmo que acontece com a questão do álcool. Nas escolas de medicina e nos textos de farmacologia, o álcool é sempre o mesmo elemento, independentemente de como foi produzido, tanto faz se for cerveja, vinho ou destilados. As pesquisas a respeito do alcoolismo misturam tudo  e a única coisa que é valorizada é a concentração de etanol de um determinado líquido. Quando eu descobri a medicina de Hildegard de Bingen e, através dela a tradição integral do uso dos produtos alcoólicos em medicina, me lembrei do óbvio. A cerveja não é somente etanol, mas contem lúpulo que possui alguns efeitos medicinais; o vinho é um complexo de muitos componentes que podem ter algum efeito terapêutico, e assim por diante. A complexidade não pode ser ignorada e mantida sob controle.

MB: Todos os casos que você descreveu na primeira parte do livro dizem respeito ao triunfo da Fast Medicine. Durante os anos de aprendizado você nunca enfrentou casos que a tenham feito pensar que a medicina estava se afastando das expectativas dos pacientes? Naquela época você não teve nenhuma dúvida sobre a futilidade da agressividade clínica?

VS: Eu fui particularmente alertada para este desafio durante meu treinamento em obstetrícia. Depois de ter assistido a um parto totalmente natural (que eu descrevo no início do livro), quando havia começado a frequentar o serviço de obstetrícia, fiquei chocada pela adoção frequente, ainda que não completa, de uma série de medidas desnecessárias, uma verdadeira medicalização do parto. Ainda que indispensável em algumas circunstâncias, na maior parte dos casos a tecnologia adotada era inútil e invasiva. O truque consiste em compreender quando a medicina Fast é realmente necessária.

MB: Muitos médicos aderem à filosofia da Slow Medicine, mas precisam trabalhar no sistema de cuidados de saúde tão bem descrito em seu livro. O que eles devem fazer para mudar o modo de pensar e trabalhar dos colegas? Como eles podem sobreviver no sistema de saúde?

VS: Não sei. Este é o motivo pelo qual, depois de escrever o God´s hotel deixei de trabalhar como médica e me dediquei à tarefa de refletir a respeito da Slow Medicine. Meus amigos que sobrevivem e estão satisfeitos, iniciaram uma atividade privada sustentada por uma salário mensal (também neste momento a Victoria Sweet refere-se às iniciativas de “concierge medicine” acima mencionadas).

MB: Na Itália, muitos hospitais estão introduzindo os prontuários clínicos informatizados com a finalidade de tornar o trabalho mais eficiente. Paradoxalmente, os prontuários escritos por meio do computador são mais fáceis de ler do que os escritos a mão, mas são mais difíceis de serem compreendidos. Você pode imaginar um uso “slow” dos prontuários informatizados?

VS: Os problemas dos prontuários informatizados não decorrem do fato de serem eletrônicos, mas sim por terem sido adotados para coletar e registrar dados e não para ajudar os médicos e os pacientes. Sua estrutura está errada. Baseia-se na montagem de um sistema para o pagamento dos serviços prestados, sistema este que é desajeitado e sinceramente estúpido. Os prontuários deveriam ser como livros, como páginas, com um começo e um fim. Nos dias atuais, pelo contrário, exige-se que os médicos gastem muito tempo clicando sobre um número infinito de teclas para fornecer informações úteis para fins administrativos e estatísticos. Pelo contrário, os médicos deveriam escrever ou ditar a anamnese e as evoluções diárias, como sempre o fizeram, deixando sob responsabilidade de um sistema de inteligência artificial a tarefa de interpretá-las e transformá-las em informações a serem arquivadas.

MB: O que pode fazer a Universidade para preparar uma nova geração de médicos slow?

VS: É necessário criar serviços de Slow Medicine, com leitos e ambulatórios dedicados à Slow Medicine, de modo que os estudantes possam aprender a praticar a Slow Medicine com médicos que a conhecem e que os pacientes possam ter acesso à Slow Medicine sempre que necessário. Nesta condições poderia voltar a exercer meu papel de médica.

Esta entrevista de Victoria Sweet foi feita por Marco Bobbio e publicada no site da Associação Italiana de Slow Medicine.

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Marco Bobbio é cardiologista, autor dos livros “O Doente Imaginado” e “Troppa Medicina” e atual secretário geral da Associação Italiana de Slow Medicine.

A entrevista foi traduzida do italiano, com olhos no texto original, pelo professor Dario Birolini.

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