O velho médico e a nova medicina

março 15, 2022
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                                                                                     Por: Carla Rosane Ouriques Couto

                                           “Nós, médicos, que pastoreamos a vida humana desde o nascimento até a morte, temos o imperativo moral de resistir com todo o nosso ser à deriva em direção à beira”.

(Bernard Lown)

Nosso personagem principal Ivan Stephanus, o Doutor S., é um perfeito discípulo de Bernard Lown (autor da “Arte Perdida de Curar” – 1996, cardiologista e inventor, falecido há um ano). Ivan é um cardiologista dedicado, trabalha há décadas no mesmo hospital público de Budapeste. Faz suas rondas acompanhado de residentes e estudantes e é um exemplo de médico slow: vê o paciente para além do coração doente, ouve com atenção, oferece presença, empatia e real preocupação com o contexto de vida de cada um, apesar de sua especialidade intervencionista e intensivista. Ivan consegue tempo para ser e estar atento e presente.

Sua rotina de idoso com mais de 70 anos, bem-casado com uma cantora de ópera, sua outra paixão além da Medicina, é transformada abruptamente. O governo decide fechar o velho hospital e aposentar compulsoriamente os empregados idosos. A despedida da equipe é significativa ao mostrar o tamanho da perda que certas decisões políticas implicam. Ali se fazia uma medicina de excelência do ponto de vista técnico e humano, porém não era mais uma instituição lucrativa ou relevante do ponto de vista do mercado.  A quem interessa a saúde coletiva não é mesmo?

Andando pelos corredores do hospital fechado, onde se encerra involuntariamente toda uma vida dedicada a cardiologia, Ivan reflete sobre o futuro: “nos meus sonhos sempre estou fugindo de algum lugar, ou perdendo algo”. A esposa está ocupada com sua arte, a única filha vive em outro continente, também ocupada. Sua vida não é em absoluto de má qualidade, mas ele buscou sempre uma vida plena de sentido: “Quero ir para casa. Mas para onde?”

Acontece então a grande decisão. Doutor Ivan S. resolve retornar a casa materna, no povoado onde nasceu, e onde seu pai, um médico de família, praticou a medicina por mais de 70 anos. Vai morar na casa de sua infância, com a mãe nonagenária, dona de uma personalidade possessiva e de valores contrários aos do filho, que é aberto, afetivo e comunicativo. É com alegria que utiliza o material e o espaço do pai, apesar do difícil convívio com a mãe.

Bem, sua vila não é mais a mesma. O novo prefeito tem o sonho de construir ali um Spa, para atrair turistas, pois não há outra fonte de renda no lugar. A população é praticamente toda idosa. Os jovens se foram. Há uma atmosfera de tempo suspenso, e a sobrevivência do lugar depende de mudanças que atendam as regras do mercado financeiro. A medicina de família não é mais praticada por falta de médico. Resta um hospital de referência à comunidade, administrado por um parente do prefeito. Ao tentar pôr em prática o cuidado no qual acredita, o Doutor S. provoca polêmicas, confusões e desgastes na comunidade. Seu hábito de olhar e tocar os pacientes é mal interpretado. Seu amor pela música e pelo coral infantil local, não é compreendido. O prefeito decide fechar seu ambulatório para ocupar a área com as obras do Spa, nega a compra de equipamentos básicos e vasculha seu passado com o objetivo de que ele decida partir e tudo volte a ser como antes. Ivan na juventude se rebelou contra práticas fascistas no país, e isso é usado contra ele.

O impacto das relações deterioradas na comunidade aparece nas conversas e contemplações de pescaria com o velho amigo de infância, hoje o padre local, e com a regente do coral, de quem se torna amigo.

A experiência de disputa de interesses e poderes entre gestores e profissionais de saúde é situação bem conhecida por médicos de família, que em algum momento da vida se envolveram de verdade com os princípios da atenção familiar, que sintonizam fortemente com a filosofia Slow Medicine. Nos profissionais há o foco no bem-estar e segurança dos pacientes, nos políticos os interesses próprios e do mercado. 

Ao atender um paciente infartado e levá-lo pessoalmente ao hospital, Ivan percebe a baixa qualidade da atenção. O plantonista jovem, que acorda de mau humor após uma longa espera do paciente no hall do hospital, não leva em consideração seu parecer e seus exames, retardando o atendimento do paciente que morre na madrugada. Ao tentar esclarecer o caso e denunciar a negligência, Ivan se depara com os pequenos poderes locais.  Como diz Ivan, o jovem médico plantonista é um exemplo de quem pratica a medicina como meio de vida, e não como objetivo de vida. É alguém que vive da medicina e não para a medicina.

Entre Ivan e seus pacientes, há várias cenas representativas da filosofia Slow Medicine. O carteiro da cidade é também um poeta. Ao tratá-lo Ivan faz questão de ouvir suas poesias, e refletir sobre elas, para conhecer melhor o paciente e a comunidade. Essas são premissas do médico de família: inserção familiar e comunitária, que se encontram com os princípios Slow Medicine de priorizar a qualidade de vida, a autonomia da pessoa, a consideração das práticas integrativas e a individualização do cuidado. Nem sempre como demonstra a narrativa o médico sai imune desse contato. Seu interesse como médico e amigo, pela professora do coral, portadora de uma cardiopatia, é interpretada como intenção sedutora, desencadeando uma série de problemas para ambos.

Ao passear a noite pelas ruas da cidade, Ivan percebe gente que não dorme e conversa com os insones, compreendendo melhor a história e o papel social de cada um no lugar. No banco da praça, há uma figura tradicional da cidade: um velho e solitário senhor que a tudo observa. Apenas observa.

O embate de Ivan com o prefeito chega a um ponto crucial, quando ele tem que atendê-lo como paciente. O prefeito é atendido, mas ouve do médico algumas verdades sobre sua conduta e de como seu antigo lar tornou-se um “lugar onde Deus não se mostra”.

A prática de Ivan, plena de integridade pessoal e profissional, presente em todos os momentos, utilizando com racionalidade a tecnologia, buscando conhecer todo o contexto de vida de cada paciente, contrasta com a realidade da prática médica fast: rápida, impessoal, neutra ou fria, que busca atender uma verdadeira indústria de atendimentos por referência, procedimentos e solicitação de exames complementares em escala crescente. A segurança do paciente, bem representada quando Ivan leva pessoalmente seu paciente infartado a um serviço de referência e ali permanece enquanto possível (foi colocado para fora pela segurança do hospital) nem sempre interessa aos profissionais de saúde. Nem sempre orientamos o paciente o suficiente em sua peregrinação pela rede que em nossa realidade é fragmentada e desconectada.  Diante de uma nação pouco escolarizada como o Brasil, esse cenário é trágico, e não mudou o necessário nas últimas décadas.

Trazendo a jornada de Ivan para a realidade brasileira, é possível que nós médicos mais velhos, encontremos em nossa “volta para casa” muitas surpresas. Penso em como seria voltar ao pequeno hospital de uma das menores cidades onde trabalhei, no Mato Grosso do Sul. Lá cheguei junto com o SUS em 1987, após ter passado dois anos em outras cidades do centro-oeste. A cidade tinha 25 mil habitantes. Éramos 6 médicos apenas, e ali morávamos. Um era cirurgião geral, um pediatra e todos os outros clínicos. Os plantonistas eram sempre os mesmos. Ali vivíamos, num grupo que tinha também relações de amizade e proximidade. Todos conheciam praticamente toda a população, e conscientemente ou não, éramos todos médicos de família. Hoje, o hospital foi ampliado, tecnologias importantes foram incorporadas, os plantonistas vêm de cidades maiores, desconhecidos entre si e da comunidade. Eu era a mais jovem do grupo e os velhos médicos se dispersaram, se aposentaram ou não praticam mais a clínica geral. A população pouco aumentou. É possível que cada cidadão ao adentrar o hospital tenha hoje uma sensação e um atendimento bastante diverso. Encontrarão um ambiente certamente melhor em relação a estrutura física, porém menos acolhedor (em toda a dimensão do termo acolhimento), do que presenciei e participei nos sete anos que ali trabalhei. Havia pouca distância e pouca diferença entre todos: médicos, trabalhadores de saúde e pacientes. Uma relação bastante diversa de quando adentramos um serviço em uma cidade na qual não vivemos, para oferecer atenção médica esporádica e episódica. É como comparar uma fotografia a um filme.

Em contraponto a este perfil médico de trinta ou quarenta anos atrás simbolizado pelo personagem Ivan, hoje é comum as pessoas escolherem seus médicos pesquisando nas redes sociais. Serão verificadas postagens, autorreferências, “lives” e número de seguidores. São oferecidas consultas virtuais. Será então um encontro através de telas, entre pacientes que se informaram a distância (e com os vieses da rede) sobre aquele profissional, e médicos que nada sabem do paciente, além do que ele decide falar e mostrar. Sabemos que leva muito tempo para que sejam desvendados mistérios, segredos e “não-ditos” ocultos nos sintomas das pessoas. Apesar das tentativas dos Conselhos de Medicina no sentido de regularem o uso das redes sociais pelos médicos, é notório que as coisas saíram do controle há muito. Vejo jovens médicos, ex-alunos em geral, se submeterem a um desempenho de celebridades: beleza física, visual descolado, lindas fotos de família, discursos engajados nos grandes temas do momento. Tudo agregado a oferta de serviços profissionais. Quem são e como funcionam como médicos no processo de escuta ativa, atenção, empatia e envolvimento, pouco sabemos. E talvez seus pacientes também nunca saibam. São relações “tiktok”: rápidas, coloridas, fundamentadas na imagem e no marketing pessoal. Há bons cursos sobre isso: como vender sua imagem para atrair pacientes.

É interessante pensar que talvez as comunidades mais seguras nesse sentido, sejam aquelas adscritas às equipes de saúde da família, hoje denominadas Unidades Básicas de Saúde. Apesar do baixo investimento do Estado na otimização de estrutura e pessoal, temos hoje equipes de excelência atuando, com envolvimento, responsabilidade e integralidade de atenção.

A narrativa de “A Música da Sua Vida”, nos permite sentar ao lado do velho da praça (ou na plateia de uma bela e trágica ópera) e refletir sobre a passagem do tempo, e o que ele trouxe de bom e mau para a relação médico-paciente. Os sentimentos de Ivan, representado pelo carismático ator Klaus Maria Brandauer, podem ser os instrumentos de aferição: a esperança do recomeço, a busca por sentido ao fim da vida, a alegria de reencontrar amigos de infância, o prazer de compartilhar o amor pela música e pela poesia, a chance de poder cuidar da mãe idosa, a oportunidade de conhecer novas pessoas e novos amores. E posteriormente a constatação de que a velha clínica não encontra mais espaço, que pacientes se encontram indefesos e solitários a mercê de decisões políticas, que a urbanização não contempla a qualidade de vida e sim as leis de mercado. Para Ivan resta o convívio com os colegas de ópera: “cantar junto é a verdadeira alegria”. Para nós fica a lição de que poderíamos também oferecer e receber atenção em saúde com mais alegria.

Em tempos de incerteza, fica a esperança de Bernard Lown: “A razão, a criatividade e a coragem que os seres humanos possuem promovem uma fé permanente de que o que a humanidade cria, a humanidade pode e irá controlar”.

Para finalizar essa breve reflexão inspirada pela arte do cinema, que é sobretudo sobre o tempo, e o que fazemos passando por ele, não teria outras palavras a não ser aquelas que ouvi ao final do discurso de formatura em Medicina, da UFSM, em fevereiro de 1985, proferidas pelo médico que é sem dúvida o maior responsável pela divulgação da Slow Medicine no Brasil, meu colega de turma e amigo, o geriatra José Carlos Campos Velho, que está também fazendo a travessia de volta para o sul, para casa, com sua velha e boa clínica. Essa poesia me acompanhou por toda a vida, fazendo sempre o efeito de bússola. As vezes sonho com ela. Sei bem dos momentos em que não a segui. Felizmente foram mais frequentes as viagens com ela em mãos e a poesia na alma. Foi um privilégio e me faz olhar meu incomum percurso como médica em tantos lugares, com gratidão e serenidade. Obrigada Zé!

Da relutância em deixar as coisas como estão,

Do excessivo zelo pelo que é novo e

o desprezo por aquilo que é antigo,

Da preocupação de valorizar o conhecimento mais 

que a sabedoria,

a técnica mais que a arte e

a esperteza mais que o senso comum,

Do hábito de tratar pacientes como casos e

Da conduta terapêutica que é mais penosa do que

a própria doença,

Deus nos proteja!

(“Prece do Médico”Sir Robert Hutchison)

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Ficha técnica do filme:

Título original: Zárójelentés. Hungria. 2020.

Título em português: “A MÚSICA DA SUA VIDA” (plataformas Looke, NOW)

Direção: István Sazbó. Protagonista: Klaus Maria Brandauer

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Carla Rosane Ouriques Couto, Médica de Família e Comunidade, Pediatra. Especialista em Saúde Pública, Gerenciamento de Unidades Básicas, Educação Médica, Saúde do Trabalhador e Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Perita Médica Federal. Vovó viajante que pensa às vezes em voltar para casa. A bússola mostrará o caminho.

3 Comentários

  1. Maravilhosa descrição da Arte de Curar ainda mais para mim que depois de anos na prática docente, no meio dos jovens talentos que a Academia me permitiu formar… resolvi cursar Medicina aos 60 anos de idade.

  2. Realmente maravilhosos…mas texto repetitivo…poderia ser menor…cansa…sou idosa

  3. Parabéns Dra. Carla Rosane!
    Esse texto vale uma bela e nostálgica reflexão.
    Vou procurar assistir o filme.
    Obrigado.

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