Ômicron

fevereiro 5, 2022
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“Eu estive doente

Doente de tudo

Me sinto cansado

Não posso escrever”

Agostinho dos Santos

Consigo lembrar exatamente o momento em que percebi que algo diferente estava acontecendo. Eu estava chegando ao trabalho e senti uma fisgada na garganta. Foi algo bastante passageiro e acabei acreditando – ou pelo menos tentando acreditar – que se tratasse de alguma coisa relacionada ao ar condicionado ou aos ventiladores. Afinal enfrentávamos uma onda de calor com temperaturas extremas. Mesmo sendo médicos, somos humanos, também temos nossas crenças, em geral quando assim nos convém. Seria o aquecimento global? Tomei um medicamento sintomático (algo que não faria somente pelo calor) e continuei com o meu cotidiano habitual. À tarde tinha um encontro marcado com um amigo – fiquei em dúvida se mantinha o compromisso. Acabei por encontrá-lo, junto com sua filha adolescente (todos vacinados). Á noite realmente não me sentia bem, já com dor de garganta persistente, com maior intensidade. Tinha um mal-estar geral, com cansaço e fraqueza. Piorei ao longo da madrugada, com muita tosse, coriza e obstrução nasal. Pela manhã ficara claro que eu tinha pegado uma virose. Obviamente, em tempos de Pandemia, a primeira ideia que nos vem à cabeça é de que fomos contaminados pelo vírus da Covid-19 (o nome Covid é a junção de letras que se referem a (co)rona (vi)rus (d)isease, o que na tradução para o português seria “doença do coronavírus”. Já o número 19 está ligado a 2019, quando os primeiros casos foram publicamente divulgados.) . Porém, naquele dia, especificamente, não tinha ninguém para me substituir no pronto-socorro onde trabalho. Pensei em fazer um Teste Rápido para chegar no hospital e determinar qual seria a melhor conduta para ser tomada. Mas a disponibilidade de testes naquela ocasião era pequena e não havia ninguém que pudesse me substituir. Muito a contragosto permaneci no trabalho, sem tirar a máscara praticamente  em nenhum momento, procurando manter o máximo de distanciamento das pessoas e lavando as mãos obsessivamente. Naquela noite os sintomas foram muito exuberantes, sugestivos de uma infecção respiratória: tosse, dor de garganta, coriza, espirros, mal-estar geral e mialgias – “um resfriado forte”. Felizmente no dia seguinte eu não trabalhava. Liguei para uma farmácia local. A realização de um Teste Rápido para detecção do SARS COVID 19 por Swab Nasofaríngeo precisava ser agendada. A princípio não havia teste para aquele dia, porém surgiu uma vaga de última hora para as 20 horas. Fui até a Farmácia, onde foi atendido e acolhido pela farmacêutica, que tomava toda a cautela em relação à coleta do exame e as medidas de precaução necessárias. Mesmo antes dos 15 minutos que o exame leva para os seus resultados estarem prontos, as duas barras estavam bem definidas no kit do teste. Ou seja: eu estava com uma infecção pelo Novo Coronavirus. A farmacêutica notificou o resultado de meu exame e me deu um relatório impresso. Bem, voltei para casa e avisei meus familiares: -não vou retirar a máscara por um minuto na presença de vocês, nos próximos 7 dias vou ficar isolado no meu quarto, na companhia dos gatos – graças a Deus animais não pegam nem transmitem COVID, até onde sei… Saía somente de madrugada para comer alguma  coisa, dando alguns passos na casa silenciosa.

A permanência isolado em um quarto poderia ser um momento de internalização e introspeção, de certa forma até produtivo: ler, colocar escritos em dia, assistir alguns filmes, documentários. Mas não, a doença tinha outros planos…. A dor de garganta persistiu por dias, a astenia, a fraqueza e muito sono. Perdi completamente o olfato, o paladar e o apetite. Tinha muito sono. Dormia horas a fio. Lá pelo sétimo dia de sintomas, a dor de garganta começou a ceder, e passei a ter severas dores musculares. Uma sensação esquisita de que aquilo não ia passar. Surpreendentemente, creio que no 8º ou 9º dia após o início dos sintomas, acordei com a sensação de estar curado. E assim foi. Eu sarei.

Como posso dizer que a Slow Medicine impactou na vivência da minha doença? Como posso fazer com que o leitor, que me acompanhou até aqui diga: sim, mas o que isso tem a ver com a Medicina sem Pressa? Vou tentar explicar.

Ao longo da Pandemia, por decisão coletiva dos colaboradores do Movimento Slow Medicine Brasil, já quando os primeiros casos surgiram no país, decidimos que nossa atuação na Pandemia seria formarmos uma fonte idônea, equilibrada, sensata e ética de informações. A Infodemia, fenômeno paralelo à Pandemia, que trouxe à tona uma enorme quantidade de desinformação, com grave impacto na tomada de decisões, tanto no nível individual como coletivo, não podia prescindir de iniciativas que colaborassem com a divulgação de informações que tivessem credibilidade e ponderação. Falamos de máscaras, de vacinas, de abordagens terapêuticas, de cuidados paliativos. Deixando a modéstia de lado, a extensão e a qualidade do material produzido nos orgulha: fomos inteiramente fiéis aos nossos princípios.

Eu recebi 3 doses de vacina. Portanto, quando desenvolvi a doença, estava completamente imunizado. Provavelmente fui infectado pela variante Ômicron, pois a avassaladora maioria dos casos em janeiro de 2022, no Brasil, são decorrentes desta variante viral. Em nenhum momento passou-me pela cabeça de que as vacinas não haviam funcionado. Ao contrário, o fato de estar vacinado me deu tranquilidade de saber que o meu risco de desenvolver uma forma mais grave da doença era muito remoto. A Slow Medicine sempre se colocou na defesa das vacinas como uma forma de enfrentamento da Pandemia – e continua defendendo. Não usei nenhum medicamento, exceto analgésicos e um ocasionalmente um anti-inflamatório – e também em nenhum momento fui seduzido pela ideia de “intervir” na evolução do processo, pela utilização de medicamentos sem eficácia comprovada na infecção. Sabemos que novas drogas estão sendo desenvolvidas , que poderão demarcar um novo território na abordagem da infecção pelo COVID, porém  sua utilização está ainda muito distante de nossa realidade, tanto por questões técnicas e operacionais, como econômicas. O marco teórico referencial da Slow Medicine é a Medicina Baseada em Evidências, que hoje não dá suporte à chamada “terapêutica precoce”.

O Tempo é o primeiro princípio da Slow Medicine. E em inúmeras patologias precisamos contar com este aliado na prática médica cotidiana. Sabemos que boa parte das doenças, particularmente virais, são auto-limitadas, e não necessitam de intervenções ou tratamento específico. Como aponta o 6º Princípio da Slow Medicine, Qualidade de vida, “fazer mais nem sempre significa fazer melhor. Mais que quantidade deve-se investir na qualidade, na aceitação do inevitável. Deve-se sempre considerar a arte médica de não intervir – a sabedoria da observação clínica.” Neste aspecto, a passagem dos dias – o tempo, e a não intervenção, pela observação clínica de eventuais sinais de alarme, como febre persistente ou falta de ar, foram essenciais para que eu pudesse acompanhar a benignidade do processo. Somente um porém: como médico, não consultei nenhum colega, e optei por observar a mim mesmo e meus sintomas – atitude muito prevalente entre nós….

Vida que segue. O país continua sendo fustigado pela Pandemia e no dia 04 de fevereiro de 2012, o Brasil teve novamente mais de 1000 mortes pelo COVID 19, em sua grande maioria entre pessoas não vacinadas ou com esquema vacinal incompleto . O Movimento Slow Medicine Brasil mantém suas recomendações, conforme vimos divulgando ao longo dos últimos 2 anos: uso adequado de máscaras em ambientes fechados, higiene das mãos, evitação de aglomerações, preferência à ambientes abertos para passear ou exercitar-se e distanciamento de 2 metros. E, de forma clara e translúcida, apoiamos a vacinação de todos os cidadãos, incluindo as crianças de 5 anos ou mais (exceto os poucos casos específicos que tenham contra-indicação para tanto). Para terminar, como este é um depoimento pessoal, e não falo em nome do Movimento Slow Medicine, acredito ser relevante medidas sanitárias como o chamado “Passaporte Vacinal”, pois além de estimular as pessoas a se vacinarem, aumenta o senso de responsabilidade em relação à coletividade e estimula a consciência da cidadania.

“Doente”

Eu estive doente

Doente de tudo

Dos olhos da boca

Dos nervos até

Dos olhos que viram

Mulheres formosas

Da boca que disse

Poemas em brasa

Dos nervos manchados

De fumo e café

Eu estive doente

Doente de tudo

Me sinto cansado

Não posso escrever

Eu quero um punhado

De estrelas maduras

Eu quero a doçura

Do verbo viver

PS: na internet encontram-se versões diferentes do poema Doente , de Agostinho dos Santos, que conheci em minha juventude. Este é a versão que conheci naquela época.

_________________________

José Carlos Campos Velho é médico geriatra e clínico geral e editor do site Slow Medicine Brasil.

1 comentário

  1. Zé, fantástico!
    Eu fiz igual a você . Só que praticamente sem grandes sintomas.
    Abração.
    Vera Soibelman

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