Operação Enganosa

setembro 3, 2018
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Por Lívia Callegari:

Descobri que o mais alto grau de paz interior

Decorre da prática do amor e da compaixão.

Quanto mais nos importamos com a felicidade

De nossos semelhantes, maior o nosso bem-estar.

(Dalai-Lama)

A área da Saúde está em constante evolução. É incansável o movimento das pesquisas para deter-se o avanço, ou mesmo transpor as enfermidades. São criados novos fármacos, ou descobrem-se novas aplicações às drogas  já existentes. Por sua vez, são criados ou aperfeiçoados os dispositivos em  saúde, que, também podem se prestar a  prevenir, diagnosticar com mais precisão ou mesmo tratar uma doença humana.Logo, em ambas as situações, a tecnologia bem utilizada pode representar ganho à qualidade de vida. Assim, fundamental o apoio da sociedade, como um todo, para o desenvolvimento desse louvável direcionamento da ciência a serviço do ser humano, desde que balizado pela  ética.

No entanto, por ser uma vertente de atuação que pode explorar uma vasta gama de produtos, na prática nem sempre a almejada ética é a mola propulsora das ações desenvolvidas pelas  indústrias que atuam no setor. Por vezes, é ocultado um cenário escabroso que suplanta o cuidado apropriado e centrado no paciente para atingir-se exclusivamente os lucros. A pessoa humana que deveria ser o fim, passa a ser o meio, em completa condição de objetificação. Porém, a regulamentação do setor é precária, em vários países – por razões que não exigem muita perspicácia ou mesmo conhecimento para entender, fato que permite a existência de um sistema falho que acaba constituindo uma verdadeira blindagem por parte de algumas empresas do setor que, praticamente, passam a usufruir de livre trânsito para a colocação de novos produtos no mercado e – pasme-se – com a conivência dos governos. Por não existirem regras claras sobre os testes segurança e fiscalização, a responsabilização das referidas empresas é insuficiente e, portanto, há a possibilidade de trabalhar-se no limbo da falta de limites. Consequentemente ao atrativo setor, muito se investe na certeza de que os ganhos serão absolutos e sem penalizações concretas.

Fato é que, de há muito, esses engodos são alardeados em face da indústria de medicamentos que, apesar de terem mecanismos próprios de ocultação de danos, estes nem sempre têm se demonstrado absolutamente eficazes e, a cada dia, são desvelados de maneira notória. Nesse diapasão, é importante mencionar a publicação do livro Medicamentos Mortais e Crime Organizado, cujo autor,  Peter  Gozsche, é um dos fundadores da Colaboração Cochrane,  e  por possuir larga experiência com os meandros dos Laboratórios Farmacêuticos, deflagra as inúmeras atrocidades cometidas pelas citadas instituições.

Nesse sentido, com o ímpeto de despontar a atenção para uma realidade por muitos desconhecida, o documentário/denúncia Operação Enganosa, transmitido pela Netflix, traz relatos de casos sensíveis à questão dos Dispositivos Médicos, tão negligenciada pelas autoridades e pela comunidade médica. Em seu conteúdo aponta claramente aspectos  de corrupção ligados à indústria, governos, instituições e profissionais de saúde e escancara, de maneira objetiva, o sistema falho de aprovação de dispositivos de saúde. Percebe-se a manipulação no que se refere  à sua segurança e os bilhões de dólares que são desperdiçados não apenas para a aquisição – ladeado por um inescusável esquema de aliciamento e suborno, mas também, em virtude da necessidade de sanar os danos pelas complicações causados por esses produtos.

Adverte o documentário para o marketing ostensivo que acena com vantagens, ilusões e desejos para, em algum momento, criar uma nova necessidade que possivelmente se transformará em uma enorme demanda. Frequentemente, para essa perniciosa divulgação, utilizam-se de eventos acadêmicos ou mesmo, o que é pior, da constituição de associações de pacientes, que passam a ser meros captadores, às vezes mantidos e geridos unicamente pela Indústria dos Dispositivos Médicos.

Ao longo do documentário, o enredo é enriquecido com a apresentação de casos pontuais, com o objetivo de demonstrar as consequências advindas da utilização de dispositivos médicos pouco seguros que, invariavelmente, aniquilaram em vida com a possibilidade de bem-estar dos pacientes.  Isso porque as pesquisas não são realizadas de forma robusta e conclusiva, muito menos com a adoção de metodologias adequadas. Não se estabelecem critérios claros de segurança, e as autoridades governamentais e sanitárias – que deveriam ser as reais fiscalizadoras e protetoras da Saúde Pública, aprovam com liberalidade a introdução de novos artefatos médicos no mercado, satisfazendo-se com as informações fornecidas pelas indústrias. Não há, portanto, real aprofundamento técnico sobre os produtos, somente os dados fornecidos pelo fabricante de forma unilateral que, obviamente, atesta a suposta segurança e viabilidade da sua utilização. Em algumas situações ainda, na tentativa de tornar mais robusta a credibilidade do dispositivo que será disponibilizado no mercado, utilizam-se do depoimentos de leigos – que invariavelmente são pagos para fazerem o papel de pacientes, a fim de atestarem a completa eficácia, não havendo, por parte das autoridades, um acompanhamento criterioso ou aplicação de testes adequados.

De fato, apesar de haver regras estabelecidas para adequação ética e técnica em processos para a aprovação de fármacos, e até mesmo a uma fiscalização mínima quando lançados no mercado, ao que parece, salvo melhor juízo, os mesmos critérios não são aplicados de forma tão assertiva  com a indústria de dispositivos médicos. Nessa discussão, sabe-se que até 1976 não se havia nos EUA nenhuma regulamentação para a os dispositivos médicos. Atualmente, a condição continua precária não apenas nos EUA, mas em vários países do mundo.

Com efeito, as Agências que deveriam ser mais combativas, não se prestam a esse papel, muito menos  defendem integralmente o interesse público, por terem relações dúbias  com a indústria. Ao final, se escoram em pesquisas manipuladas fornecidas pelos fabricantes, como dito anteriormente. Quando da fase de aprovação para introdução no mercado, há a burla do sistema de segurança, segundo o qual não se aferem os modelos sucessivos dos produtos, mas apenas quando da avaliação pré-mercado, que uma vez demonstrada a equivalência substancial a um modelo lançado preteritamente (modelo predicado), o produto é liberado. Este era um regime que deveria ser aplicado como exceção, mas virou regra, pouco importando se o dispositivo predicado tenha sido descontinuado por um vício insanável.

No Brasil, em passado recente, teve grande repercussão o episódio das  próteses mamárias fornecidas pelas indústrias PIP/Rofill, segundo as quais apresentaram grave defeito de fabricação. Após a divulgação do assunto na mídia, a consequência foi a determinação da necessidade das pacientes imediatamente procederem à substituição dos implantes, procedimento este a ser custeado pelo SUS – apenas a remoção, e não a substituição da prótese. Caso as pacientes tivessem plano de saúde e quisessem optar pela sua utilização, foi determinada a obrigatoriedade de atendimento dessa demanda pelas autoridades governamentais. Isso ocorreu por ter a ANVISA liberado a comercialização das próteses, o que a torna corresponsável.

Na ocasião, o Governo Federal sequer havia realizado testes de qualidade; como de praxe, havia apenas aceitado os relatórios fornecidos pelos fabricantes das próteses com suas respectivas certificações. Saliente-se que nem sequer havia no território brasileiro institutos capacitados para elaborar laudos técnicos de aprovação após os adequados e esperados testes, ou mesmo a estruturação de banco de notificações para os eventos adversos.

Em resumo, eram apresentados relatórios pelas próprias indústrias de dispositivos  e as autoridades liberavam a comercialização. Caso houvesse algum defeito no produto ou evento adverso por ele causado, por falta de estruturação nacional, os laboratórios das próprias empresas, situados fora do país,  propunham-se unilateralmente investigar o material e, ao final, oferecer um relatório, que em geral não apontaria para vícios. Era uma relação de confiança e puro desleixo, não de ingenuidade. E isso é apenas a ponta de um iceberg.

Precisou haver um escândalo na mídia para que as autoridades começassem a construir algo mais sólido. Nos dias atuais, a referida estruturação ainda está longe do ideal ou de qualquer padrão de excelência, pois caso haja a necessidade se de fazer uma perícia em casos concretos, raros são os institutos públicos ou privados credenciados e equipados apontar com precisão as falhas do dispositivo. É lamentável que os fabricantes não tenham sido atrelados a essa plêiade de acontecimentos desagradáveis, e que ainda estejam sob os auspícios das vistas grossas das autoridades, comercializando seus produtos sem critérios aprofundados de avaliação,  apesar de todo o risco que a falta de qualidade que possa apresentar. Por sua vez, as notificações dos médicos permanecem voluntárias, e as notificações das indústrias, que teoricamente deveriam ser obrigatórias, raramente produzirão efeito, pois ninguém tem hábito de produzir provas contra si mesmo.

O caso ESSURE (método contraceptivo irreversível que consiste no implante de minimolas nas tubas uterinas, impedindo a fecundação) exaustivamente apresentado pelo documentário, recebeu tratamento diferenciado pelas autoridades brasileiras. Enquanto na Europa o produto já havia sido terminantemente proibido, houve vacilação do governo brasileiro, que em primeiro momento o proibiu, mas  logo após a apresentação de relatórios da empresa Bayer que atestaram pela segurança, voltou a liberar a sua comercialização em todo o território nacional. Apenas houve a descontinuação por conta do anúncio da indústria em não mais produzir o produto em escala mundial. Segundo consta, não houve tanta repercussão no Brasil, por ser um tratamento dispendioso e por não ter havido tanta adesão, fato este que ainda indesculpável, e por si só não deixa de fazer vítimas.

Atualmente,  casos semelhantes continuam a se repetir, inclusive com outras modalidades de dispositivos. Mas como ocorrem de forma aparentemente isolada, nem sempre se tem força para combater o lobby da indústria. E ainda, caso atinjam um patamar de discussão judicial, muito raramente se terá a expertise de avaliação adequada.

Com esse pensamento cabe indagar, quantas complicações cirúrgicas ocorrem em virtude de falha no material e não por erro de técnica?  Essa questão usualmente não é levantada, pois sucumbiria por si só, tendo em vista que tanto a estruturação pericial, fundamental em um processo, é limitada, bem como a visão de alguns tribunais, que é totalmente defasada. Nesse sentido, estas instituições se valem de teorias ultrapassadas do Direito, que não contemplam uma visão mais abrangente dos casos concretos para, de fato, se perquirir a verdade real. Além disso, possivelmente haverá a condução para a responsabilização do prestador de serviço de saúde, seja pessoa física ou jurídica, mas sem nunca apontar para o verdadeiro responsável, que permanecerá sob o manto de inacreditável proteção e invisibilidade, fortalecendo ainda mais o cenário de impunidade na saúde.

O cerne do documentário alardeia, ainda, os inúmeros desvios de conduta e pouco comprometimento com quem se utiliza os dispositivos em saúde. O discurso do marketing, sempre pautado da inovação – ainda que factoide e sem base sustentável em evidência científica – pauta-se na pressa da execução do procedimento, na pressa da recuperação e na pressa na tomada de decisão.

Ao final, quem acaba por ficar totalmente desguarnecido de suporte quando ocorre o evento danoso, é o próprio paciente. Não há escuta ativa quando de suas reclamações e, se insiste, passa a ser encarado como desequilibrado ou mesmo oportunista. O fabricante de dispositivos médicos tem a credibilidade de uma divindade e jamais faria mal a quem quer que fosse. Não existe comprometimento, nem tampouco compaixão. O exercício de se colocar no lugar do outro passa a ser um ato inexequível.

É óbvio que qualquer procedimento em Medicina guarda em si um risco, ainda que mínimo, pois é impossível esperar resultados de exatidão matemática na área da saúde. No entanto, quando esse percentual de risco suplanta a mera estatística, e se direciona para a casuística traduzindo um abalo direto ao paciente, o que era considerado  uma possibilidade mínima, individualmente se torna 100%, e disso se faz experimentar todas as consequências dele advindas. O que vai diferenciar no aspecto concreto da responsabilização é se o dano era evitável e se o risco era absolutamente necessário.

Portanto, por mais que os fabricantes dos dispositivos médicos transitem por meandros de penetrabilidade questionável, cabe individualmente ao profissional sopesar a sua própria função social.

Se existe corrupção é porque há permissibilidade para tanto. E  não é à toa que, para evitar esses contínuos desvios, algumas empresas se valem de programas de Compliance na saúde , estabelecendo regras de conduta. Estes programas, inevitavelmente, refletirão no sistema de gerenciamento de riscos e de segurança do paciente, cujas definições devem ser interpretadas da maneira mais abrangente possível. Isso porque chegou-se a conclusão de que agir errado é por demais dispendioso e gera transtornos não apenas de ordem financeira, mas também jurídica, política e midiática.

Com efeito, de nada adianta partir de ação no plano macro de reeducação e realinhamento, se no plano micro não houver mudança de atitude. É bem verdade que a grande maioria dos médicos age de maneira correta e sempre farão o melhor que conseguirem para um cuidado apropriado. Não se pode olvidar que o Código de Ética Médica censura veementemente a mercantilização do trabalho médico. Sabemos que apenas uma fração dos médicos se beneficia do incentivo perverso desse universo de fraudes, direcionando a saúde alheia como um mero negócio. E onde existe mero negócio, não há relação médico-paciente.

Outrossim, a adoção de novas tecnologias sem a preocupação com os resultados, pode aumentar os riscos sem trazer nenhum benefício. Nem sempre o que é novo é seguro e a colocação de uma nova tecnologia à disposição nem sempre significa inovação. Como estabelece o Manifesto da Slow Medicine, uma Medicina Sóbria  aponta que “a divulgação e o uso de novos tratamentos de saúde e de novos procedimentos diagnósticos nem sempre são acompanhados de maiores benefícios aos pacientes“. Treinamentos insuficientes para lidar com a “nova tecnologia” também contribuem para o aumento das taxas de complicação, aniquilando vidas – entendendo-se em seu espectro mais amplo – e gerando gastos desnecessários. Se não traz melhoria, somente transtornos, e se os riscos são acentuados, melhor que nada seja  feito. Portanto, o uso parcimonioso da tecnologia, mas sem nunca desprezá-la, é um dos princípios preconizados pela Medicina sem Pressa.

Em arremate, para reflexão, ficam as certeiras palavras de Andrea Bottoni, que traduzem a essência da Slow Medicine:  “Ouvir, informar, compartilhar a decisão e, inclusive, desenvolver técnicas para se preparar para um consulta, são de suma importância. Cuidar sempre, curar nem sempre. Culpar o sistema apenas não resolve, mas é necessário, sobretudo, verificar e analisar a atitude pessoal. Lembrar que a sociedade sou eu, e depois os outros. Na assistência é fundamental conhecer o paciente, respeitar o valor da pessoa e ceder um pouco, quando for o caso.”

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Lívia Abigail Callegari, nascida  em São Paulo. Advogada inscrita no Brasil e em Portugal, atua na área do Direito Médico. Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP e em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Atualmente é pesquisadora científica no Grupo de Pesquisa em Bioética, Direito e Medicina GBDM/USP. Ama estudar e transmitir o que aprende. Gosta de viajar e tomar contato com outras culturas. É apaixonada por artes em geral e livros, mas encontra na arte marcial e na dança o seu verdadeiro meio para a reconexão. Só faltou falar que ama felinos….

 

1 comentário

  1. Excelente artigo sobre um tema tão apropriado e muito bem escrito!

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