Para uma medicina sóbria, respeitosa e justa

dezembro 14, 2019
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Por Marco Bobbio:

Provavelmente um dos fatos mais relevantes do ano de 2019 para o Movimento Slow Medicine Brasil foi o lançamento do livro de Marco Bobbio, “Medicina Demais“, no dia 26 de setembro, no Hospital Santa Catarina, em São Paulo. Bobbio, também autor de “O Doente Imaginado“, fez um périplo no país, para divulgação de sua nova obra, tendo tido várias participações em eventos, onde o tema Slow Medicine era a linha condutora. Quando a sua viagem já estava em seus últimos dias, Marco Bobbio nos surpreende com a notícia que seu livro havia sido agraciado com o “XXVII Prêmio Ercolle Pisello”. Esta premiação, já tradicional na Itália, “é concedido às figuras que se destacaram na divulgação da medicina e na pesquisa científica. De Rita Levi Montalcini a Umberto Veronesi, passando por Piero Angela e Giuseppe Masera, o reconhecimento ao longo dos anos foi atribuído a grandes personalidades da medicina e divulgação científica. O prêmio quer lembrar a figura de Ercole Pisello, um garoto que morreu prematuramente e por quem a família sempre se comprometeu a manter viva sua memória. “Obrigado aos organizadores e à família, que mantêm viva a memória de Ercole Pisello e permitem que nossa cidade hospede personalidades importantes – explica o prefeito de Bevagna. A administração sempre apoiará essa iniciativa, porque sabemos o seu valor para a nossa comunidade ”. Para Paolo Pisello, irmão de Ercole, “sua morte prematura deve ser um aviso ainda hoje, para que haja atenção particular à prevenção e um estilo de vida correto”.

A cerimônia de premiação ocorreu no dia 19 de Outubro de 2019, no Teatro Francesco Torti, na pequena comuna medieval de Besagna, na Umbria, região central da Itália. O discurso proferido por Marco Bobbio na ocasião foi traduzido para o português pelo nosso colaborador Andrea Bottonni, e pode ser conferido abaixo.

Para uma Medicina Sóbria Respeitosa e Justa

Ontem, 18 de outubro foi o 110º aniversário do nascimento de meu pai. Se você me permitir, eu gostaria de dedicar esse prêmio a ele. Não foi um pai que deu aos filhos pílulas de sabedoria, nem ensinamentos eruditos. E, no entanto, com ele aprendi a desconfiar das certezas, a cultivar as dúvidas, a não aceitar clichês, as simplificações fáceis; talvez a capacidade reflexiva seja transmitida geneticamente. “Precisamos aprender em ficar mais preocupados – escreveu meu pai – de semear dúvidas do que de obter apoio”. Se meu pai tivesse sabido desse prêmio, ele não teria se sentido orgulhoso (não era um sentimento que sentia, muito menos em relação aos filhos), mas de forma coerente com o eufemismo, no piemontês dizemos não exageramos, ele simplesmente teria dito: “legal, parabéns”.

Gostaria de começar contando a história, publicada em 2011 na revista Archives of Internal Medicine: uma senhora de 52 anos chega ao pronto-socorro devido a uma dor no peito, não característica de origem cardíaca. No passado, a senhora teria sido tranquilizada e enviada para casa, após ter permanecido em observação por algumas horas. Em 2011, no entanto, novos equipamentos já estavam disponíveis (angiotomografia computadorizada de coronárias) para avaliar as condições das artérias coronárias com um simples exame radiográfico, ou seja, sem a necessidade de explorar o coração com cateteres inseridos nas artérias. Decide-se realizar a angiotomografia computadorizada de coronárias para confirmar a ausência de doença cardíaca coronária. O exame revela uma certa calcificação ao longo da árvore coronária, e a senhora é submetida a uma coronarografia para proceder à dilatação de eventuais lesões obstrutivas. Infelizmente o cateter, entrando na artéria coronária, quebra uma placa calcificada, com a consequente dissecção da coronária anterior e da aorta (isto pode acontecer). O acidente causa um extenso infarto do miocárdio e uma violenta dor no peito (esta sim de origem coronariana) e a senhora é transportada com urgência para a sala de cirurgia cardíaca onde será submetida a cirurgia de revascularização do miocárdio. Para resumir, nos próximos seis meses a senhora será hospitalizada em outros momentos por episódios de insuficiência cardíaca, será submetida a outras angioplastias coronárias, até que seu coração seja transplantado. Um exemplo de uma cascata de diagnóstico desastroso: um transplante de coração como resultado de um exame inadequado.

Em maio de 2019, outra história interessante é publicada no Journal of the American Medical Association. Desta vez, é uma senhora de 87 anos (mãe do autor) que vai ao hospital devido a uma dor na região lombar, que apareceu após uma queda algumas semanas antes. É prescrito um tratamento à base de cortisona e baclofeno. Três dias depois volta ao pronto-socorro com episódios de delirium causados pelas drogas ingeridas; em dois dias melhora e recebe alta. Duas semanas depois, ele volta ao pronto-socorro devido a uma dor de estômago causada pelos remédios; ela volta para casa com uma prescrição de antibióticos e inibidores da bomba de prótons, que causam diarreia: na quarta internação ela é tratada com diciclomina. O quinto atendimento em pronto-socorro ocorre dois dias depois para outros episódios de delirium causados pelas drogas. Um exemplo de uma cascata terapêutica desastrosa: cinco atendimentos em pronto-socorro por um tratamento medicamentoso inicial desnecessário. Na era da Medicina Baseada em Evidências, fica claro que dois casos clínicos não são suficientes para mostrar que danos e desperdícios de recursos humanos e econômicos são causados por uma medicina rápida e com excesso de prescrição, mas eles nos levam a refletir. Por trás dos extraordinários sucessos alcançados nesses anos, muitas vezes há efeitos negativos não muito conhecidos. Todo progresso deixa para trás vítimas, das quais não se tem notícias e que são mantidas ocultas para não obscurecer a imagem da emocionante corrida em direção ao futuro.

Analisando os casos de pacientes com os quais tive contatos como cardiologista ao longo de quarenta anos, pude perceber quanto dano é causado por um medicamento projetado para objetivos extraordinários. Para não questionar o valor e méritos desta corrida, aquele que sofre os efeitos indesejáveis e deletérios é rapidamente considerado azarado.

Refletindo sobre esses aspectos, escrevi uma trilogia de livros:

Juro exercer a medicina com liberdade e independência, onde analiso os mecanismos pelos quais a indústria de medicamentos, próteses, dispositivos e serviços condiciona a pesquisa científica e manipula a disseminação de informações a seu favor.

O doente imaginado (traduzido para o português e presente no Brasil), no qual analiso como as indústrias transformam a saúde, um bem primário, em uma mercadoria, transformando pessoas saudáveis e doentes em consumidores ávidos de medicamentos e suplementos.

Medicina demais (traduzido para o português e presente no Brasil), no qual descrevo as causas e consequências da hiperprescrição e tratamento demais. Os médicos, muitas vezes sem se dar conta, estão espalhando uma nova doença devastadora: pessoas saudáveis preocupadas, sofrendo de ansiedade de saúde.

Por que estamos neste cenário de medicina demais?

  • Porque temos medo do futuro. No passado, eram consultados os oráculos, as visceras de animais, o vôo de pássaros, depois horóscopos, borra de café, cartas de tarô. Agora, consultamos o resultado dos exames de sangue. Eu realmente não posso lhe dizer qual desses métodos é mais eficaz.
  • Porque nós médicos divulgamos expectativas irreais. Oitenta por cento dos cardiologistas conhece os resultados da literatura e sabe que a angioplastia coronária, em pacientes estáveis com angina, não reduz o risco de infarto agudo do miocárdio ou morte, mas não explica esses dados aos pacientes. Noventa por cento  dos pacientes submetidos à angioplastia coronária estão convencidos de que a cirurgia reduz infarto agudo do miocárdio e a morte. Em termos científicos, falamos de viés de expectativa.
  • Nós médicos temos a impressão de não executar nossa tarefa corretamente se terminarmos uma visita sem receita médica. É mais fácil prescrever um medicamento que aconselhar um paciente hipertenso a reduzir o sal na dieta e aumentar a atividade física. Tememos que o paciente, saindo consultório sem uma receita, diga “Ele não é bom, ele não foi capaz de me prescrever um algo”. Em termos científicos, falamos de fazer algo tendencioso.
  • Porque induzimos o medo de doenças.
  • Como tendemos a transformar sintomas mais ou menos incómodos em uma doença que precisa ser curada.
  • Porque a medicina é condicionada por conflitos de interesse que interferem no conhecimento científico e nas nossas decisões.

Será que se sentir bem significa ser forçado a regimes alimentares fantasiosos e irracionais, realizar coletas de sangue periodicamente para perseguir a normalidade probabilística dos valores laboratoriais, tomar remédios, suplementos, gotas homeopáticas, fazendo-se manipular por osteopatas, deixando inserir dezenas de agulhas para restaurar o equilíbrio do corpo, ativando meridianos de energia invisível, mas comparados a canais ou rios?

Você já reparou que quando janta com os amigos, ninguém diz “eu gosto desta comida” ou “eu não gosto dessa outra”, mas apenas “posso ou não posso comê-la?” Desistimos do prazer e do sabor, para satisfazer o desejo de (talvez) se sentir bem, usando informações que frequentemente são de origem científica duvidosa.

E você já deve ter notado que quem pratica exercício físico não avalia como o corpo responde ao esforço, como está cansado e satisfeito com a atividade que realiza, e como a intensidade e a duração do exercício depende exclusivamente do sinal de um monitor de frequência cardíaca (sem saber que essa frequência cardíaca é um parâmetro indireto de tolerância ao exercício e do risco cardíaco). Abdicamos do conhecimento das reações de nosso corpo a um dispositivo que emite um som determina que exageramos.

Nesse cenário, em 2011, foi criada uma associação, Slow Medicine, com o objetivo de combater uma medicina que apressa-se sem olhar para os erros e os danos que deixa no seu caminho e propor uma medicina sóbria, respeitosa e justa. Sóbria significa fazer todo o possível para cada paciente, sem exagerar. Acho que a expressão “fazer mais não significa fazer melhor”, resume muito bem o nosso pensamento. Eu sei, como cardiologista, quantas vezes é essencial dar o máximo e usar todos os recursos disponíveis para salvar uma vida humana, mas também sei quantas vezes parar, observar antes de intervir, pode evitar muitos problemas. Respeitosa significa levar em consideração os valores, desejos e expectativas dos pacientes, a fim de não decidir por eles, de maneira autoritária, em nome da ciência que trata a todos como pacientes médios, como os sujeitos da pesquisa clínica, sabendo que apenas alguns se beneficiarão das abordagens. Justa significa garantir os tratamentos necessários para todos. Na Itália Slow Medicine lançou e coordena o projeto Choosing Wisely, presente internacionalmente em nove países, que estimula as sociedades científicas e as associações de pacientes e consumidores a identificar práticas não sempre adequadas.

Mas vocês não acham que seja absurdo acrescentar o adjetivo slow ao substantivo medicine? Mas precisamos porque, infelizmente, hoje em dia a medicina é frequentemente pouco sóbria, pouco respeitosa e pouco justa.

Para não os aborrecer com definições, enunciados e taxonomias, conto sobre uma publicação de 2016 do Journal of the American Medical Association.

Quais são as características de uma medicina com pressa? Aqui está uma sintese do presidente de Slow Medicine Antonio Bonaldi:

  • o novo é sempre melhor;
  • todos os procedimentos utilizados na prática clínica são eficazes e seguros;
  • o uso de tecnologia sofisticada resolverá quaisquer problemas de saúde;
  • fazer muito ajuda a evitar doenças e a curar rapidamente;
  • a prevenção consiste em fazer check-ups;
  • para controlar as emoções precisamos recorrer a medicamentos.

Agora vou falar de um paciente cardiopata de 77 anos. Ele foi ao pronto-socorro devido à uma dor torácica, de caráter anginoso, que se acentuara. Nos exames laboratoriais constatou-se a elevação da troponina, ema enzima que se encontra nas células do coração: o aumento no sangue desta substância significa que uma parte do tecido cardíaco está lesionada. Qualquer médico nesta situação, com um paciente com doença arterial coronariana, dor torácica intensa e dosagem positiva de troponina, baseando-se nas diretrizes, decide: internação em terapia intensiva, muitos exames laboratoriais, medicamentos intravenosos, angiografia coronariana e eventualmente angioplastia.Mas este paciente aparenta ser mais velho,  parece confuso e ausente. Sua esposa e filha dizem que ele está regredindo há alguns anos e atualmente é incapaz de atender às suas necessidades pessoais habituais; eles acrescentam que uma internação anterior o desestabilizou completamente. O Dr. Kumar se questiona se a internação é a solução certa para resolver seus problemas. Então, ele propõe à esposa e filha transferi o paciente para um ospice e, com o consentimento delas, faz uma reserva para o dia seguinte. “Neste momento – escreve o Dr. Kumar – acontece um milagre”. O paciente começa a se sentir melhor, seus medicamentos são reduzidos e nos próximos 6 meses ele não precisa mais ir ao pronto-socorro. O que aconteceu? No hospital, todos teriam se dedicado às coronárias; no ospice, todos se preocupavam com a pessoa como um todo. O foco era o paciente e não suas coronárias. Esta é Slow Medicine: conhecer as diretrizes, as evidências científicas, adaptando-as de maneira sóbria e respeitosa ao caso específico.

Nos dois primeiros casos que contei, ter realizado exames e prescrito tratamentos injustificados é emblemático de uma medicina que podemos definir fast: uma medicina que aplica os protocolos indiscriminadamente, que se deixa encantar pelos representantes de farmacos e de dispositivos médicos e que não leva em consideração que todo paciente é uma pessoa que necessita de uma cura adequada às suas condições físicas, psicológicas e considerando suas necessidades e expectativas: exatamente um cuidado sóbrio e respeitoso. Uma medicina que atualmente desperdiça 30% dos recursos, custos que não geram saúde: um terço do que o sistema sanitário italiano gasta e que gastamos para comprar remédios e suplementos, para pagar visitas médicas, é inútil. Quanto dinheiro poderia ser usado para oferecer atendimento domiciliar, cuidados odontológicos, para melhorar os prontos-socorros.

Meu pai escreveu muitos ensaios sobre a questão dos direitos, que devem ser conquistados e, como não são adquiridos para sempre, devem ser defendidos. Há 41 anos, na Itália, temos um sistema nacional de saúde universal que garante o direito à assistência médica gratuita para todos: ao longo dos anos, esse princípio foi gradualmente corroído pela crise econômica, por interesses vergonhosos, por desperdícios, por uma progressiva migração para um sistema de seguros que oferece benefícios diferentes com base na contribuição. O direito à saúde é um bem precioso que devemos defender a todo custo, impedindo que seja prejudicado por desperdícios, por uma gestão não adequada e por uma medicina demais.

Com o objetivo de reduzir a preocupação pelas doenças, eu não gostaria de ter criado a ansiedade por medicina demais, nem ter estimulado a ideia que é melhor recorrer à medicina alternativa. Repito: a medicina atual é eficaz e indispensável. Precisa apenas evitar exagerar. Demais nem sempre é bom, mesmo em um tratamento.

Finalmente, gostaria de me despedir com uma frase de Bernard Lown, que inspirou minha profissão como médico. Para muitos de vocês, esse nome não diz nada, mas Bernard Lown inventou o desfibrilador e recebeu o Prêmio Nobel da Paz como co-fundador da Associação de Médicos Contra a Guerra Nuclear.

“Faça o máximo possível para o paciente e o mínimo possível ao paciente”.

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Andrea Bottoni, italiano, de Roma, é medico pela Universidade de Roma “La Sapienza”, com Residência Médica em Nutrologia na mesma Instituição, com Especialização em Medicina Desportiva na UNIFESP, tem Título de Especialista em Nutrologia e em Medicina do Esporte, é Mestre em Nutrição e Doutor em Ciências pela UNIFESP, com MBA Executivo em Gestão de Saúde pelo Insper e MBA em Gestão Universitária pelo Centro Universitário São Camilo, é Instrutor de Mindful Eating pela UNIFESP, vive no Brasil, em São Paulo, há 24 anos, felizmente casado com Adriana, também médica.

VOCÊ PODE ACESSAR O DISCURSO ORIGINAL EM ITALIANO AQUI!

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