Pensando rápido, só que não…

fevereiro 19, 2018
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Por Ana Lucia Coradazzi:

“Eu sei que por algum tempo vou me manter oscilante entre a razão e o desejo. Algumas decisões são tomadas com o coração inquieto e o pensamento tomado por muitas coisas que aconteceram e acontecem, tudo misturado. Sei tambem que o tempo vai ser meu amigo para essas coisas da vida. Com coragem eu sigo, nessa velocidade que não temo, nem mesmo de ousar ser feliz.”

Fernando Pessoa

Já se vão 15 anos desde que Daniel Kahneman, psicólogo nascido em Israel, fez a proeza de ganhar o Prêmio Nobel de Economia. Sua proeza maior, no entanto, não foi a de ganhar o prêmio científico mais cobiçado do mundo numa área que nem sequer era a dele. O que surpreende é como suas descobertas sobre nossos mecanismos de tomada de decisões podem ser aplicadas em virtualmente todas as dimensões da vida humana. Daniel Kahneman nos mostra, de forma categórica, o quanto somos irracionais.

Foram vários os seus experimentos, e todo o seu trabalho está descrito de forma resumida e acessível em seu livro “Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar” (por sinal, uma leitura que recomendo sem pestanejar para qualquer um que se encante com os mistérios da natureza humana).  A base da sua teoria é que, no que diz respeito ao nosso raciocínio para as tomadas de decisões, todos funcionamos com vieses cognitivos, que são erros consistentes e persistentes que nos levam a conclusões distorcidas (e consequentemente a decisões não tão acertadas quanto imaginamos).

Para Kahneman, nosso raciocínio dispõe de dois sistemas, que ele chamou de 1 e 2. O sistema 1 é rápido e intuitivo, construindo histórias plausíveis a partir dos dados mais facilmente disponíveis em nossa memória. Ele “pula” para conclusões intuitivas, nos levando a julgar e decidir rapidamente, mesmo em situações complexas. É o sistema 1 que, ao perceber um cachorro no meio da pista, pensa: cachorro + pista = acidente, e leva nosso pé ao freio. Já o sistema 2 é cauteloso e deliberativo, trabalhando com lentidão e às custas de uma energia considerável. Ele seleciona cuidadosamente os dados disponíveis, organiza esses dados de acordo com a prioridade e evita que as emoções influenciem demais seu trabalho, levando a decisões lógicas e com maior probabilidade de acerto. Justamente por funcionar assim, de forma tão complexa e despendendo tanta energia, é que nosso sistema 2 fica em “modo de espera” na maior parte do nosso tempo, deixando que o sistema 1 assuma o comando e preservando-se para situações que realmente não possam ser resolvidas intuitivamente (por exemplo, quando alguém lhe pede para dizer quanto é 13 X 27). E assim vamos levando nossas vidas, tomando decisões o dia todo, desde a escolha do sabão em pó até a ressecção (ou não) de um tumor no cérebro de alguém.

Embora as teorias de Kahneman tenham tido seu valor reconhecido por seu impacto em nossas decisões sobre o que, como e onde comprar as coisas, é bastante fácil compreender seu papel na Medicina. Médicos também tomam grande parte de suas decisões utilizando seu sistema 1, e tais decisões são acertadas em grande parte das situações (sim, nosso sistema 1 é bem eficaz!). No entanto, em alguns casos, agimos baseados em vieses que podem ser perturbadores. Em Oncologia, por exemplo, temos um enorme viés: lidamos com a palavra “CÂNCER”. A palavrinha já vem, desde nossa mais tenra infância, atracada com sua irmã gêmea, a “DESGRAÇA”. “CÂNCER” é tão ruim que nossas avós nem pronunciavam a palavra, de medo. Imaginem o quanto nosso sistema 1 fica enlouquecido ao vermos tal diagnóstico impresso no resultado da biopsia de um paciente… Nosso impulso principal é eliminá-lo, e a lógica (intuitiva) do nosso sistema 1 é muito clara: a doença é ruim, a situação é uma desgraça e você tem à sua mão as ferramentas para acabar com isso (leia-se quimioterapia, cirurgia ou algo do gênero).

O problema, aqui, é quando a decisão intuitiva pode não agregar benefício ao paciente ou, pior ainda: pode prejudicá-lo. São as situações em que nosso sistema 2 deveria assumir o comando, e muitas vezes não o faz. É o caso, por exemplo, dos adenocarcinomas de próstata indolentes, que acabam sendo exterminados com cirurgias ou tratamentos radioterápicos que comprometem mais a vida do paciente do que a própria doença. Ou dos inúmeros carcinomas de tireoide de baixo grau, que jamais causariam a morte de alguém (ou mesmo atrapalhariam minimamente sua vida), e que resultam em tireoidectomias, levando os pacientes a adquirirem uma doença que não tinham: o hipotireoidismo.

Nosso preguiçoso sistema 2 também não costuma se esmerar muito quando o assunto é a análise dos estudos clínicos que norteiam nossas condutas. Com o sistema 1 nos dizendo, insistentemente, que “o p é significativo”, nos vemos confortavelmente adotando condutas sem avaliar com clareza se, na prática, elas são realmente benéficas. Só em Oncologia, por exemplo, temos drogas “inovadoras” que trazem como benefício o aumento de sobrevida de 2 semanas (e, sim, o “p” foi significativo!). Também não convocamos nosso sistema 2 para avaliar em que população as estratégias propostas foram estudadas, e nos pegamos prescrevendo tratamentos tóxicos para pacientes que estão tão doentes que mal suportariam tomar um prato inteiro de sopa… Certamente esses pacientes não preencheriam os critérios de inclusão para os estudos clínicos que elegemos para tratá-los.

O fato é que nós, médicos, costumamos ser surpreendentemente ruins em discernir o que é o melhor para aquele paciente naquele momento. Somos ruins para entender suas expectativas e as de seus familiares. Assim que o paciente desponta na porta do consultório, nosso sistema 1 já tira uma série de conclusões a respeito do que ele precisa ou deseja, tomando por base as expectativas do próprio médico ou dos outros pacientes que ele já atendeu em situações parecidas. “Ele quer ficar curado, obviamente”. “Ela quer preservar a mama, claro”. “Ele precisa prevenir doenças coronarianas, vou propor as diretrizes internacionais X ou Y”. É bem nesse ponto que perdemos nossa capacidade de nos superarmos como médicos e como pessoas, identificando entre as estratégias disponíveis aquela que faz mais sentido para aquela pessoa, naquele exato momento da sua vida.

A má notícia é que não temos como desligar nosso sistema 1. Além de ser essencial para nossa sobrevivência básica, ele viabiliza a economia de energia. Seria uma tortura indescritível analisar detalhadamente cada decisão do dia-a-dia (passaríamos nossas vidas decidindo a marca do sabão em pó!). Mesmo na prática médica, que supostamente se baseia no raciocínio lógico, não temos como convocar nosso sistema 2 para tudo. Mas a (excelente) notícia é que é possível “reprogramarmos” nosso cérebro. Trata-se de um retreinamento da nossa forma de raciocinar, de modo que possamos identificar os impulsos insensatos do nosso sistema 1 e colocar nosso preguiçoso sistema 2 para trabalhar em momentos estratégicos. Em outras palavras, você pode continuar se sentindo impelido a exterminar qualquer tipo de câncer que apareça na sua frente, mas vai aprender a respirar fundo e refrear seu ímpeto antes de propor uma conduta do tipo “one fits all”. Falo de “retreinar” porque isso não é natural para nós, precisa ser aprendido. Isso inclui fazer sistematicamente perguntas como “Esse câncer é realmente uma ameaça para esse paciente?” Ou “Essa senhora viverá tempo suficiente para se beneficiar da sinvastatina?”. Precisamos, sistematicamente, pensar antes de agir.

Talvez Daniel Kahneman nunca tenha ouvido falar, em sua vida, sobre Slow Medicine, mas as teorias dele certamente dão suporte a seus princípios. O tempo. A individualização. A autonomia. Segurança em primeiro lugar. Uso parcimonioso da tecnologia. Nada disso é possível sem que sejamos capazes de encontrar um equilíbrio saudável entre nossos dois sistemas de raciocínio. Entre pensar rápido e pensar devagar, podemos (e devemos) ficar com os dois.

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Ana Lucia Coradazzi:  Nascida na cidade de São Paulo, mora em Jaú, no interior, há muitos anos, com o marido e suas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, é especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Atualmente atua como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Também integra a equipe de Cuidados Avançados de Suporte e Medicina Integrativa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em SP. Apaixonada por livros (e escritora nas horas vagas), procura reservar um tempo para correr, buscando manter o corpo saudável e a mente tranquila.

1 comentário

  1. Excelente artigo!! É tudo que venho aprimorando intuitivamente : individualizar os cuidados respeitando a autonomia, priorizar o bem estar, perceber o outro de forma integral…. só não tinha consciência do raciocínio e daí fui presenteada como sugestão de leitura de um sobrinho para tomar consciência do raciocínio nas minhas decisões que ele sempre admirou.. e o estigma da palavra câncer e os problemas assistenciais relacionados a mesma, é o trabalho que faço de criar essa consciência entre os alunos da medicina. Slow Medicine é o movimento resgate da medicina como ela sempre deveria ser… pautada no amor ao próximo como a si mesmo, ser humano para humanizar…

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