Quando a ciência confronta a fé: Reflexões sobre a série “O Escolhido”

julho 19, 2019
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Por: Carla Rosane Ouriques Couto

“O médico só age onde é tocado. Só o ferido cura”. C. Jung

A importância da espiritualidade como dimensão da saúde integral tem sido objeto de amplo estudo nos últimos anos. Já é consenso que pessoas adoecidas, quando possuem o apoio da fé, seja qual for a filiação religiosa, tem seu processo de recuperação, até mesmo quanto a eventos agudos, mais rápido e com menores intercorrências. Amplos estudos foram realizados sobre a importância da oração realizada por outras pessoas, com objetivo de recuperar ou manter a saúde de grupos de pacientes, com resultados relevantes, utilizando o método científico tradicional.

No entanto, o outro lado da questão também está sendo objeto de reflexão: quando a fé ou a prática de uma religião confronta recomendações ou prescrições médicas, quanto aos quatro níveis de prevenção ou atenção à saúde. Em especial, uma importante estratégia de prevenção primária, a vacinação coletiva, tem sido alvo de acalorados debates e pesquisas sob o olhar da psicologia social, quanto ao comportamento crescente de recusa ou evitação da vacinação recomendada. Este comportamento de descrédito na capacidade de prevenir e promover saúde, através das vacinas, tem sido apontado como um dos elementos responsáveis pelo retorno de doenças infectocontagiosas como sarampo, caxumba, rubéola e varicela, que por décadas vinham sendo reduzidas ou eliminadas.

A série brasileira veiculada pela Netflix, “O Escolhido”, traz vários dos elementos que contemplam esse panorama complexo, no qual a ciência e a fé parecem seguir caminhos paralelos e com frequência opostos. Os “heróis” são três jovens médicos, que a serviço de uma organização internacional, recebem a missão de vacinar contra um vírus mutante da Zika, uma população isolada, próxima a Corumbá, no Mato Grosso do Sul, região do Pantanal.

O perfil dos três jovens traz, antes da trama, aspectos interessantes, para se pensar nos rumos da medicina brasileira. Lúcia, nascida no Pantanal, formou-se com honra na USP. É ética, obstinada e embasa sua missão profissional num trágico evento de infância. Viu seu pai falecer por falta de uma transfusão sanguínea, negada pela crença religiosa familiar. A jovem médica retorna para a sua região de origem, chefiando a pequena equipe, com a mais pura intenção de oferecer a sua ciência, evitando doenças e mortes desnecessárias, como a de seu pai. Damião, negro, criado numa comunidade carioca de alta vulnerabilidade, tornou-se médico desafiando a violência familiar, a exclusão social e o destino comum de jovens nessa condição. É destemido, impositivo e determinado e, logo se percebe, traz em si uma espiritualidade natural, possivelmente inerente a origem africana. Enzo, branco, gaúcho, filho de um médico e empresário em Porto Alegre. Contrariando o pai, eminente cardiologista, deseja ser um pesquisador na área de epidemiologia. Tem poucas habilidades de comunicação, dificuldades de relação pessoal e pouca proximidade com situações de urgência, sendo em situações de conflito, o mais frágil e amedrontado dos três. Enzo embarca na missão, com o intuito de coletar material para suas pesquisas. A relação dos três médicos não é tranquila, especialmente entre Damião e Enzo, que se estranham e tem sempre opiniões contrárias quanto às decisões. Lúcia é o elemento que traz o equilíbrio ao grupo. De certa forma os três representam segmentos diversos da população brasileira. O acesso aos cursos médicos por minorias históricas, é relativamente novo no panorama do perfil médico brasileiro. Observar a relação do grupo nos faz compreender a complexidade deste contexto, que obriga instituições formadoras, públicas ou privadas, a novas opções metodológicas de ensino do “ser médico”.

Impulsionados pela força da juventude, e por sua missão “salvadora”, os três chegam ao povoado de Água Azul, uma espécie de ilha, isolada pelas águas do Pantanal. Chegam também esquecidos de um dos princípios básicos da Educação Popular em saúde, preconizado por Paulo Freire: primeiro escutar, compreender, respeitar, aceitar a cultura e o saber do “outro”, para após propor uma intervenção, até então apenas unilateralmente conhecida. Sem diálogo, não se constrói nenhuma relação. Segundo o mestre Paulo Freire: “o diálogo não impõe, não maneja, não domestica”. Ter tempo para ouvir antes de tudo, é o primeiro princípio da Slow Medicine, que tem o seu escopo teórico permeado pela teoria da educação em saúde. Decididos a vacinar de pronto a população, encontram o único médico local, Lorenzo, alcoolizado. Líderes comunitários reagem violentamente à proposta, manifestando que ali não se precisa da medicina, pois possuem a proteção de um líder, um xamã: o “Escolhido”.

Como instrumento para situações como estas, relativamente comuns para profissionais de saúde que abandonam os grandes centros urbanos, existe um campo de conhecimento e pesquisa denominado Educação Popular em Saúde. Segundo Eymard Mourão Vasconcelos, médico e professor universitário radicado na Paraíba: “Educação Popular tem significado um instrumento fundamental na construção histórica de atenção integral à saúde, na medida em que se dedica à ampliação da inter-relação entre as diversas profissões, especialidades, serviços, doentes, familiares, vizinhos e organizações sociais locais envolvidos num problema específico de saúde, fortalecendo e reorientando suas práticas, saberes e lutas. Esta redefinição da prática médica se dá, não a partir de uma nova tecnologia ou de um novo sistema de conhecimento, mas pela articulação de múltiplas, diferentes e até contraditórias iniciativas presentes em cada problema de saúde, em um processo que valoriza principalmente os saberes e as práticas dos sujeitos usualmente desconsiderados devido à sua origem popular”.

As habilidades de educador popular são especialmente caras à Medicina de Família de Comunidade, especialidade que por sua moderna definição, há cerca de quatro décadas, estabeleceu as competências comunitária e cultural como seus pilares fundamentais. O médico com estas competências vê cada comunidade como singular, em sua forma de viver, trabalhar, ocupar os espaços, ter lazer, se relacionar e praticar sua fé. E antes de qualquer intervenção, em especial as coletivas, como vacinações, é preciso buscar compreender seu nível de aceitação, sua racionalidade e eficácia para aquela comunidade. Estes são também princípios norteadores da Prevenção Quaternária: ao se pensar em atividades de Prevenção Primária, destinadas a populações saudáveis, e que se sentem saudáveis, é preciso que se reflita sobre qualquer efeito colateral orgânico, afetivo ou psicológico, individual ou coletivo. Da mesma forma, ao se pensar em implementar medidas de vacinação propostas recentemente, é preciso que se avalie com evidências científicas robustas o resultado final da intervenção, para aquela determinada comunidade. A prevenção em saúde, em seu sentido mais amplo, é o quinto princípio da Slow Medicine e o uso parcimonioso da tecnologia é seu décimo princípio.

Nossos heróis são primeiramente, antes de implementar a vacinação, expulsos e agredidos, depois aparentemente aceitos e sabotados em sua missão, e após parcialmente incluídos na comunidade, por motivos afetivos ou de outros interesses. A passagem por cada um desses níveis da narrativa, traz as velhas humanidades: amor, ódio, culpa, paixão, inveja, medo, interesses materiais, fidelidade, traição; perturbando profundamente nossos três heróis, seus objetivos iniciais e a carga emocional que trazem em sua história de vida. Logo o impacto causado pela comunidade neles é bem maior do que o impacto que eles pensavam em causar naquele grupo de pessoas aparentemente simples, de baixa escolaridade, sem nenhum contato com o mundo exterior.

Em Água Azul, o único médico local, com o passar dos anos, adere a seita fundamentalista do Escolhido, tornando-se seu parceiro na arte de dominar e manipular a comunidade. Lorenzo aceita, como todos, que o Escolhido realmente cura as pessoas, e utiliza seus conhecimentos da medicina tradicional como auxílio aos interesses do líder. Vive incluído totalmente na comunidade, que o respeita apesar do alcoolismo. Lúcia, Enzo e Damião, o desprezam e não lhe dão nenhum crédito, cometendo mais um erro estratégico.

As cenas nas quais a população, após ser finalmente vacinada, reage com uma convulsão coletiva, é paradigmática. Trata-se de uma “Revolta da Vacina” em estilo próprio. Os três médicos não encontram resposta para isso, como todos nós médicos, frequentemente não encontramos respostas científicas para determinados desfechos de planos terapêuticos. Temos ainda grande dificuldade de conduzir clinicamente o que chamamos de “somatização”, um amplo espectro de sintomas e sinais que construiu um novo campo de conhecimento: a médica somática ou psicossomática. Da mesma forma as manifestações religiosas ou espirituais encontram dificuldade de aceitação ou inclusão em planos terapêuticos. Porém segundo Eymard Vasconcelos, há uma milenar tradição do uso da espiritualidade no enfrentamento dos problemas de saúde que pode ser resgatada, mas que necessita ser atualizada para as atuais características da sociedade.

Há muito nos assombra, apesar do impressionante avanço tecnológico investigativo e diagnóstico, a soma de questões e problemas não resolvidos pela medicina ocidental moderna. Antes do nascimento desta medicina, ainda e provavelmente por muito tempo, coexistem outras “medicinas”, que vêm recebendo diversas denominações: medicina complementar, medicina alternativa, medicina narrativa ( a arte e a literatura como instrumentos de apreensão da experiência humana na saúde e na doença), medicina tradicional (denominação da OMS para o conjunto dessas práticas), ou ainda nas práticas integrativas. As práticas integrativas encontram abrigo no sétimo princípio da Slow Medicine, que entende que devemos utilizar o melhor dos vários mundos que compõem estas medicinas, como necessários para compreender e cuidar de cada pessoa em sua singularidade.

Voltando a nossa trama pantaneira, Damião, em estado grave, é curado dos sintomas de Zika pelo curandeiro Escolhido, através de sua presença, preces e de um líquido azul que utiliza como medicamento, fazendo desta cena um marco na relação dos médicos com a comunidade. Suas crenças e seus métodos habituais são questionados por eles próprios, em vários momentos, em especial quando vêm esgotados seus recursos científicos. O Escolhido se manifesta sobre isso, dizendo a Lúcia: “o problema, Doutora, é que a sua ciência só traz dúvidas, e a minha fé traz as certezas”. Ao mesmo tempo, a figura de Lúcia e sua atitude firme, buscando a ética nas relações com todos, desequilibra o curandeiro, fazendo-o também duvidar de decisões antigas quanto a sua forma de praticar, que considera um profundo bem para aquela comunidade. Médicos e comunidade são tocados e perturbados, mobilizando emoções e insights vindos de seu inconsciente, despertando em todos um novo saber, novas emoções, que poderiam em última análise se constituir em potencial terapêutico.

O desamparo alternado dos três médicos e dos moradores, faz com que em vários momentos os médicos se tornem aprendizes do curandeiro e da comunidade. Este é um sentimento frequente no cuidado humano, muitos de nossos pacientes se tornam nossos mestres de vida. A abertura para a espiritualidade que envolve essa troca, esse fluxo de sentimentos, é positiva, aproxima a todos. Segundo Puchalski (1999) a espiritualidade pode ser definida como aquilo que traz significado e propósito à vida das pessoas. É reconhecida como um fator que contribui para a saúde e a qualidade de vida de muitas pessoas. Esse conceito é encontrado em todas as culturas e sociedades. É expressa como uma busca individual mediante a participação de grupos religiosos que possuem algo em comum, como fé em Deus, naturalismo, humanismo, família e arte. Ainda podem ser objetos de reflexão para a prática médica integral e humanizada, as figuras dos líderes comunitários da história, sem os quais propostas de prevenção primária, como vacinação ou mudanças de estilo de vida, dificilmente encontram adesão comunitária. Os rituais, próprios de cada comunidade, necessitam ser profundamente respeitados – individualizar a atenção é o segundo princípio do Movimento Slow Medicine.

Em Água Azul, estabeleceu-se um ritual, no qual os moradores que se encontram prontos para a morte, podem se manifestar ao grupo e se submeter a uma condução ou a umcuidado para isso, que devem ser mostrados na continuidade da série. Fica evidente que é uma comunidade amparada em valores muito sedimentados, com total confiança nos mesmos. Há alguns anos, não morre ninguém por doenças ou causas externas em Água Azul. As pessoas morrem, quando decidem partir, e são protagonistas absolutos de suas vidas. A chegada dos três médicos ao povoado, causa a primeira dessas mortes.

O final da primeira temporada promete o reencontro dos três heróis em Água Azul, com novos desafios e descobertas, onde seguirão tentando superar o milenar dualismo entre a racionalidade e emoção, entre a ciência e a fé, chegando quem sabe a uma articulação possível entre essas dimensões. É uma jornada de todos nós, longa, complexa, cheia de armadilhas e encruzilhadas, como as enfrentadas por Lúcia, Damião e Enzo no Pantanal. O guia para esta viagem, não está nos manuais de medicina, é único para cada um. Mas certamente principia na abertura a experiências e relações mais profundas e honestas, com nosso passado, nossa missão como médicos, e com nossos pacientes. Como diria o Escolhido: “para o medo não há cura”, para todo o resto há um caminho.​

​“Há mais mistérios entre o céu e a terra, do que possa imaginar nossa vã filosofia”.

Shakespeare,W.

Literatura consultada:

Caderno de educação popular e saúde. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Brasília, 2007. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa.

Os primeiros curadores da humanidade: abordagens psicológicas e psiquiátricas sobre os xamãs e o xamanismo. Stanley Krippner. Professor of Psychology at Saybrook Graduate School, Chair for the Study of Consciousness, San Francisco, California, EUA. Rev. Psiq. Clín. 34, supl 1; 17-24, 2007.

A Espiritualidade na Educação Popular em Saúde. Eymard Mourão Vasconcelos. Cadernos Cedes, Campinas, vol. 29, n 79, p. 323-334, set/dez 2009.

A importância da integração da espiritualidade e da religiosidade no manejo da dor e dos cuidados paliativos. Mário F. P. Peres; Ana Cláudia de Lima Quintana Arantes; Patrícia Silva Lessa e Cristofer André Caous. Rev. Psiq. Clín. 34, supl 1; 82-87, 2007.

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Carla Rosane Ouriques Couto: Médica de família e comunidade, pediatra, sanitarista, com especializações em Saúde do Trabalhador, Gerenciamento de UBSs, Terapia de Família, mestrado em Psicologia Social. “O Escolhido” me tocou especialmente, por que me trouxe os anos de trabalho no querido Mato Grosso do Sul. De lá, trouxe dois dos meus filhos, e muitas lições espirituais. A lembrança mais forte foi de um episódio em que fiquei retida numa tribo Caiuá, no sul do estado, onde tinha a intenção de realizar um diagnóstico de saúde infantil. O cacique, desconfiado, reuniu a tribo toda, e pediu explicações sobre nossa presença ali. Era um tempo em que vários servidores e profissionais eram mantidos sequestrados nas tribos, em troca de demandas ao poder estadual. Nos meus trinta e poucos anos, fui o mais sincera possível, explicando àquela estranha plateia, o que era uma pesquisa de saúde e pedindo sua permissão, o que não havia feito ao chegar. Deu tudo certo…aprendi no susto, o primeiro princípio slow: primeiro escutar, depois explicar, depois oferecer talvez, alguma ciência.

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