Retrospectiva 2020 Slow Medicine: na travessia escura acendemos nossas velas!

dezembro 31, 2020
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Por: Carla Rosane Ouriques Couto

                                     “Você não encontrará os confins da alma, nem mesmo percorrendo todos os caminhos; tal é a sua profundidade”.

 Heráclito

     2020. Como resumir essa odisseia? Vítimas e heróis tivemos muitos, a exemplo das históricas odisseias narradas pela literatura. As perdas coletivas têm sido imensuráveis. As dores individuais têm sido imponderáveis. Se olharmos a estrada até aqui, veremos acidentes, falta de sinalização, bloqueios, pontos sem luz, túneis sem visão do que nos esperava ao final. Mas veremos também os socorristas do corpo e da alma. A ciência foi desafiada a buscar soluções rápidas, sem conseguir parar o movimento alucinante de nosso inimigo. Assistimos a tudo surpresos, de dentro de nossas casas ou atrás de pesados equipamentos de proteção. Estivemos expostos com diferentes níveis de vulnerabilidade, mas a busca tornou-se uma só: salvar os abatidos pelo vírus e encontrar uma prevenção para a infecção. 

     Reconhecendo e lamentando tantas perdas, nós do movimento Slow Medicine estamos aqui hoje para falar do que avançamos. Não há situação de calamidade em que não se conquiste algo, por menor que seja. Já estávamos imersos em telas há alguns anos, mas 2020 nos convidou a uma experiência virtual intensa, para o bem e para o mal. Para o movimento Slow Medicine foi um ano de muito trabalho e profundo aprendizado. Com o necessário respeito a segurança de todos, priorizamos o isolamento social e estivemos unidos em pensamento e coração, mas distanciados fisicamente. Nossas reuniões periódicas passaram a ser virtuais. Realizamos 32 reuniões do grupo em 2020, e 6 reuniões de trabalho com as Ligas Acadêmicas. Tivemos a honra de ter conosco em algumas reuniões os companheiros que representam o movimento nos EUA: Ladd Bauer e na Holanda: Yung Lie e na Itália: Marco Bobbio.

     Desde a chegada do Novo Coronavírus ao Brasil, estivemos acompanhamento e refletindo sobre planos e estratégias de enfrentamento da pandemia, considerando o momento político e cenário sanitário de alta complexidade. Abrimos uma seção especial no site slow para abrigar o conteúdo relacionado a Pandemia pelo Covid-19. Destacamos os artigos/resenhas: “Pad Man e a Slow Medicine em tempos de pandemia”; “A Organização Mundial da Saúde e a Pandemia, sob a ótica da Slow Medicine”; “Choosing Wisely International: COVID 19 recomendattions”; “O Manifesto da Slow Medicine e as estratégias de vacinação”; “A triagem mais difícil: alocação de ventiladores em uma pandemia”; “Covid-19 e o SUS no respirador: uma história de coragem”; “Sobre irracionalidades e a solidariedade”; “A Slow Medicine mais rápida do mundo”; “Urgente – Covid-19  e as instituições longa permanência para idosos – Cuidado ou morte anunciada?”; “Cuidados Paliativos, Covid-19 e as escolhas de todos nós”; “Medicina demais na pandemia”; “Pandemia de Covid-19: como pensam e decidem os médicos?”; “Sóbrias, respeitosas e justas: as escolhas em tempos de pandemia”; “A pandemia chega a uma pequena cidade do interior”; “As máscaras e as muitas faces de uma pandemia”; “A medicina High Touch”; “Mindfulness e o distanciamento social”; “A Ciência, os estudos clínicos e a pandemia pelo Covid-19”; “Patocenose e a pandemia de Covid-19”; “Estamos todos em luto”; “Consciência da morte e tecnologia: a arte da moderação”; “Covid-19 e a Telemedicina: Lições e Aproximações”; “A expressão da espiritualidade no decorrer dos tempos”; “A Peste” e ainda “Fecha a Janela, Doutor”. Vale lembrar também a entrevista: “Entre a alienação e o desespero: Slow Medicine”, no início da pandemia, por nosso líder e editor chefe José Carlos Campos Velho. 

     Enquanto representantes do movimento no Brasil, em 2020 vivenciamos momentos preciosos de aproximação com colegas/amigos representantes da Itália, da Holanda e EUA, visando internacionalizar conteúdos relevantes nas várias temáticas que o guarda-chuva slow abarca.  Esperamos novidades nesse sentido para 2021, oferecendo conteúdos em outros idiomas, em nosso site, contribuindo assim para o fortalecimento mundial da filosofia Slow Medicine.

     Em 2019 foi fundada a primeira Liga Acadêmica de Slow Medicine, em Itaperuna/RJ (LASM da UNIG). Esta tendência, para nossa imensa felicidade, floresceu fortemente em 2020 com a fundação de mais seis ligas acadêmicas: Ligas LACASME de Muriaé, LASMED da PUC Goiás, LASMAL de Maceió, LASMED de Volta Redonda, LASMB de Botucatu e mais recentemente, a LASLOW de Petrópolis. O movimento Slow tem acompanhado os estudantes, tendo realizado aulas inaugurais, reuniões temáticas e debates este ano com temas essenciais como princípios e manifestos da filosofia Slow Medicine. Três ligas acadêmicas (Muriaé, Goiânia e Volta Redonda) organizaram a “I Jornada de Slow Medicine na perspectiva das especialidades médicas”, nos dias 25 e 26 de agosto de 2020. O evento foi virtual tendo alcançado grande número de profissionais e estudantes de Medicina, fortalecendo nossa esperança por uma nova geração de trabalhadores da saúde.

     Além de estarmos muito próximos das Ligas Slow, o grupo marcou presença em aulas e debates de outras ligas pelo país, no firme propósito de contaminar o meio estudantil com nossa filosofia. Em 2020 estivemos promovendo eventos educativos nas seguintes Ligas: Liga de Cuidados Paliativos da UNIFAL (Alfenas, MG); Liga de Libras de Alagoas; Liga de Humanidade da UNIVALI; Liga de Humanidades da Universidade Estácio de Sá/RJ; Liga Acadêmica de Cuidados Paliativos da UNAERP; Liga de Cuidados Paliativos da Barão de Mauá de Ribeirão Preto e AALEGREES: Associação das Ligas de Espiritualidade e Saúde do Brasil. 

     Estivemos participando de aulas e palestras em diversos cursos e instituições tais como: Instituto Freedom; Instituto COI (Centro de Pesquisa em Oncologia) do RJ; Serviço de Clínica Médica do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo; Curso de Geroempreendedorismo do Hospital Sírio Libanês; Curso de Tanatologia e Cuidados Paliativos da Fundação Elisabeth Kübler-Ross; Pós Graduação em Cuidados Paliativos da PUC PR, Pós Graduação em Cuidados Paliativos do Hospital Sírio Libanês, NUSE UNIFESP (Espiritualidade em Cuidados Paliativos como fator protetor) e Grupo Experiência do Cuidado. O movimento Slow Medicine esteve também em debates e importantes congressos: II Ciclos de Debates – Oxford Brasil – Medicina Baseada em Evidência – Alliance; 8º Congresso Mineiro de Medicina de Família e Comunidade (Prevenção Quaternária e Slow Medicine) e 7º Congresso Digital “Todos Juntos contra o Câncer” (Tecnologia X Humanização no tratamento oncológico). Neste tópico destacamos a primeira apresentação de trabalho Slow Medicine em Congresso Científico por nossa atuante colaboradora, Lívia Callegari: “Slow Medicine e Bioética: Filosofias confluentes a uma assistência humanizada”, no III Congresso Internacional Ibero Americano de Bioética/I Congresso de Humanização e Bioética/ Simpósio de Educação e Bioética Regional Paraná – Bioética, Saúde e Inclusão. Lívia também é uma das autoras do livro Tendências do Direito Médico, lançado recentemente pela Editora GZ, com coordenação de Eduardo Dantas e Felippe Abu-Jamra Corrêa. 

     Outros três importantes colaboradores do Grupo Slow Medicine lançaram obras este ano: Ana Lúcia Coradazzi com “O Médico e o Rio” pela MG Editores. Em parceria com Lucas Cantadori, é mais uma obra na área de humanidades médicas de Ana Lúcia (responsável por nossa seção Casos Clínicos), a partir de relatos de casos oncológicos que trazem lições de vida e cuidado.  Afonso Carlos Neves publicou “A História do Meio Ambiente em São Paulo no início do século XX a partir de Periódicos Médicos”, pela Editora Companhia Ilimitada. Esta obra (temos é essencial para compreendermos o momento atual a partir das lições do passado, em todos os contextos históricos, políticos, econômicos e culturais que atravessam a saúde e a doença na linha do tempo, em uma metrópole.  E ainda nossa querida Vera Anita Bifulco (perdemos as contas de suas participações virtuais em aulas e debates) compôs a autoria do livro “Luto por perdas não legitimadas na atualidade” (de Gabriela Casellato/Summus Editorial), com o capítulo “O luto do cuidador informal do portador de Alzheimer”.

     Ainda com a preciosa coordenação e condução do professor Afonso Carlos Neves, foi organizada no Curso de Graduação da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), a disciplina eletiva “Slow Medicine”, trazendo aos alunos a oportunidade de refletir sobre o contraponto slow/fast da prática médica, em aulas teóricas, vivências em ambulatórios e urgência. Apesar de interrompida pela pandemia, a disciplina se manteve a distância. A disciplina contou com a participação de outros colaboradores do movimento, tendo um retorno muito positivo dos estudantes. Consideramos este um dos grandes momentos de 2020: o início da inserção formal da filosofia Slow Medicine na academia. 

     Aconteceu em 25 de junho, no auge da pandemia em todo o mundo, o 1º WEBINAR SLOW MEDICINE, com o tema “Ciência e Moderação na Pandemia de Covid”. Com a participação de membros do movimento nacional e internacional, apresentamos as palestras: “A Slow Medicine no mundo; Homem versus vírus: quem é o ser irracional”; “Um vírus baseado em evidências”; “Covid 19: trazendo à tona nossos tabus sobre sofrimento”; “Ligas Acadêmicas Slow” e “Disciplina eletiva Slow Medicine”. Sobre o encontro, escreveu Ana Lúcia Coradazzi: “o webinar nos deu clareza do caminho percorrido até aqui, e mais clareza ainda do caminho a percorrer. Mas talvez o mais importante tenha sido a percepção do quanto conseguimos em tão pouco tempo. Parece fácil propagar a ideia de uma medicina sóbria, respeitosa e justa. Quem seria contrário a algo assim? Mas o fato é que o Brasil é o único lugar do mundo em que essa ideia tem se consolidado de forma tão coerente e com tamanha rapidez. Talvez seja nossa alma brasileira, nosso olhar naturalmente empático, ou a reverência que o conhecimento científico costuma nos provocar. Ou talvez seja tudo isso junto. Mas o fato é que o movimento Slow Medicine Brasil, mesmo sem ter pressa nenhuma, é o mais rápido do mundo. Que assim seja”. E assim foi, tivemos a audiência de cerca de 280 participantes no webmeeting, mantendo o sucesso dos dois últimos encontros nacionais presenciais ocorridos em São Paulo, em 2018 e 2019.  

     Nosso principal veículo de comunicação e educação em saúde, o site www.slowmedicine.com.br esteve em acelerada atividade este ano com foco em temas essenciais, continuando a publicar semanalmente artigos originais, resenhas, reflexões e notícias de conteúdo slow, em nossas grandes áreas de interesse: o envelhecimento saudável, os cuidados paliativos, a finitude, a relação médico paciente, o direito médico, a equidade em saúde, a medicina narrativa, o método centrado na pessoa, o uso racional de tecnologias, a promoção e a prevenção de saúde. Este ano estes grandes temas foram analisados à luz do contexto pandêmico.  Seguimos valorizando a transdisciplinariedade, as práticas integrais em saúde, e agregando ao grupo profissionais da psicologia, da nutrição, da fisioterapia e da fonoaudiologia, entre outros, o que muito nos honra. 

     Da mesma forma continuamos valorizando todos as expressões artísticas como estratégias de saudável reflexão acerca da experiência humana, em especial a literatura e o cinema (continuamos com os links de livros e filmes slow). Expandimos nossa forma de expressão para o desenho gráfico, com o lançamento dos quadrinhos Slow Comics, uma forma colorida, divertida, leve, e não menos profunda de levar ao nosso público, os princípios da Slow Medicine e os dilemas impostos pela pandemia. De forma muito premente, 2020 impôs buscarmos na arte a possibilidade de expressar sofrimento e encontrar consolo para a solidão existencial que cravou suas garras sobre todos nós. Enfrentando um inimigo comum, nos dividimos na aceitação das melhores estratégias, que fossem amparadas na ciência, na justiça e na moderação. Longe de desacreditarmos do espírito humano, propagamos nossa fé na ciência, na equidade social e na espiritualidade. 

     Ampliamos nossa presença nas redes sociais, em especial no Instagram, Youtube e Telegram. Nossa voz que respeita o ritmo dos grandes acontecimentos e avança sem pressa para ir mais longe, ressoa agora em um novo instrumento: o podcast. Nosso primeiro Slowcast entrou no ar com o nosso mais caro tema: o tempo. Até o fim do ano, teremos publicado três dos nossos princípios na nova mídia.  

     2020. Tempo de incertezas, sem prazo para acabar. O calendário nos obriga a parar, olhar para trás e refletir. Atrás de nós, mares revoltos, tempestades, céu negro. Mas tal como o barqueiro Caronte, da mitologia grega, que muito trabalhou este ano, levando em segurança as almas perdidas a seu novo e desconhecido destino – a outra margem da vida; atravessamos esta turbulência e nos preparamos para adentrar novamente o mar que sabemos será novamente bravio.

Caronte

    Caronte significa “brilho intenso”, em alusão ao brilho do último olhar de quem parte, na promessa de uma continuidade. Caronte era filho de Nix e Érebo. Nix era a bela deusa da noite. Érebo era o Deus das Trevas e das Sombras. Atravessando a noite de 2020, o movimento Slow Medicine refletiu sobre todos os irmãos de Caronte: Moros, o Destino; Ker, a Desgraça; Tânatos, a Morte; Hipnos, o Sonho; Geras, a Velhice; Ezis, a Dor; Apate, o Engano; Nêmesis, o Castigo, Eris, a Discórdia, Momo, o Sarcasmo, as Moiras, as Fatalidades, e por fim Filotes, a Ternura.  Todos esses gigantes da alma, puderam ser vistos mais claramente neste ano. Serão sinais para que olhemos um pouco mais para dentro de nós? 

     Continuaremos a remar sem pressa e com cuidado. Nosso barco Slow Medicine tem poderosos timoneiros e bravos remadores. Haverá sempre lugar para mais gente. Que bom que estivemos juntos. O material de nossa bússola é a ética da vida humana. A incerteza, nossa única companheira certa, continuará a nos ameaçar. Mas seguiremos no rumo do bem comum, com a certeza da amizade, da solidariedade, da compaixão, da empatia, do conforto e do apoio mútuo, entre os participantes da grande família Slow Medicine. Que assim seja. 

                                                   “Haverá um ano em que haverá um mês em que haverá uma semana em que haverá um dia em que haverá uma hora em que haverá um minuto em que haverá um segundo e dentro do segundo haverá o não-tempo sagrado da morte transfigurada.”

Clarice Lispector.

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Carla Rosane Ouriques Couto. Médica formada pela UFSM. Especialista em Pediatria, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador, Gestão de Unidades Básicas, Terapia de Família e Educação Médica. Mestre em Psicologia Social. Médica de Família e Comunidade. Perita Médica Federal. Este ano, prioritariamente filha, irmã, avó de quatro e mãe de três. E sempre, cinéfila sem moderação. 

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