Saúde, política e Slow Medicine

agosto 25, 2021
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Por José Carlos Campos Velho

“Para a política o homem é um meio; para a moral é um fim.

A revolução do futuro será o triunfo da moral sobre a política.”

(Ernest Renan)

O Movimento Slow Medicine  se caracteriza  como uma iniciativa que se coloca fora do espectro da política partidária. Busca não se envolver em controvérsias, com uma tendência aglutinadora e inclusiva, acolhendo a diversidade dos pontos de vista como alicerce de uma sociedade democrática. Sua proposição essencial é de ser uma fonte para divulgação de informações idôneas, equilibradas e éticas em saúde, e também a disseminação  dos princípios e da filosofia da Slow Medicine para profissionais de saúde, estudantes e cidadãos. A Slow Medicine propõe uma medicina Sóbria, Respeitosa e Justa, fato que determina uma série de implicações na prática assistencial no que concerne às decisões médicas, possivelmente fazendo emergir questões de ordem ética. 

Questões que a Pandemia nos trouxe

A pandemia pelo Novo Coronavirus trouxe à tona uma série de questões, como  a “Infodemia“,  que  se fez acompanhar de uma enorme polarização política na sociedade. Com isso, ao invés do imperativo do raciocínio científico ser predominante, a compreensão da  Pandemia foi extremamente politizada. Esse processo ocorreu no mundo inteiro, em maior ou menor grau, mas no Brasil chegou às raias da insanidade, na medida em que qualquer indivíduo se arvorava a opinar acerca de assuntos que até há pouco pertenciam ao escopo de cientistas e de pessoas vinculadas à área da saúde: diagnósticos,  tratamentos,  estratégias de vacinação, formas de prevenção.  Isto posto, não é difícil compreender que, a partir de determinado momento, tornou-se difícil não falar de política. Ainda assim, optamos por restringir nossos posicionamentos às políticas de saúde

As decisões relativas ao enfrentamento da Pandemia são decorrentes de políticas públicas e a condução dessas políticas depende da compreensão que os agentes políticos têm acerca dos determinantes da Pandemia. O que pudemos observar ao longo desse período em que estivemos sendo duramente fustigados pelo Novo Coronavírus é que as Nações que tiveram suas estratégias de enfrentamento embasadas na ciência, no bom senso e nas informações que provinham de centros idôneos e éticos (como a Organização Mundial de Saúde, por exemplo) obtiveram melhores resultados. Além disso, as nações em que a solidariedade, a compaixão, a empatia e a preocupação com a coletividade nortearam as estratégias em sua reação a uma tragédia de tal dimensão conseguiram desfechos mais positivos, possivelmente pela sensação de pertencimento a uma ampla  comunidade com um objetivo comum. Este olhar para as perspectivas coletivas de uma doença que afetou toda a humanidade determina decisões de ordem política que têm impacto direto na saúde da população. Quando falamos de uma medicina Sóbria, nos referimos a uma medicina que age com moderação, de forma gradual e que respeita o meio ambiente. A humanidade precisa urgentemente reavaliar sua relação com o Planeta TerraNão são poucos que creem que o surgimento de novas doenças infecciosas relaciona-se a uma mentalidade extrativista, que explora os recursos naturais de forma irracional e não sustentável. Agir com moderação, no presente momento, significa manter os cuidados para evitar a disseminação do vírus. Em que pese o surgimento das vacinas, ainda não vivemos uma situação de segurança. O surgimento de novas variantes do vírus coloca em alerta os epidemiologistas, pois estamos falando de variantes com um grau maior de contagiosidade e, possivelmente, de maior gravidade. Portanto, o risco de disseminação do vírus permanece – e é até maior -, e não é momento de se afrouxar as medidas cautelares que evitem o contágio. É preciso lembrar que tais medidas são relativamente simples. Como afirmou Antony Fauci, existem 5 procedimentos essenciais para evitar a disseminação do Novo Coronavirus na sociedade: o uso consistente de máscaras, a higiene das mãos, o distanciamento social, a evitação de aglomerações e a prioridade para atividades em espaços abertos, em detrimento de lugares fechados. Essas continuam sendo as principais atitudes a serem tomadas coletivamente. Neste ponto, nos defrontamos com outra questão: uma pandemia afeta a coletividade. Isso significa que as questões coletivas devem necessariamente preponderar sobre as questões individuais. Essa é, também, uma decisão política, pois a liberdade de um deve respeitar a liberdade do outro. No que tange ao uso de máscaras, por exemplo, essa afirmação mostra-se clara, transparente, cristalina. Quando deixamos de tomar atitudes de proteção individual, estamos deixando de cuidar e proteger o outro, e isso não é algo que uma sociedade saudável possa aceitar.

Quanto vale uma vida?

Outra questão que revela uma dimensão política é a proposição de uma medicina Respeitosa, que leva em consideração os valores de cada um. Porém, como interpretar o valor de uma vida? O valor maior na situação que a humanidade vive é  a preservação da vida e do planeta. Neste momento nos perguntamos se a individualidade se sobrepõe à coletividade. A negação de questões básicas, como o uso de máscaras, ou a atitude deliberada de não se vacinar podem ser consideradas éticas? Ou o valor essencial é a vida do outro e a atitude Respeitosa vem deste entendimento solidário e empático de um problema que acomete a todos? 

Por fim, chegamos à questão desafiadora da medicina Justa: aquela que oferece cuidados adequados para todos. E neste ponto as políticas públicas e as decisões dos agentes responsáveis pela atenção à saúde são essenciais.  O Movimento Slow Medicine acredita que saúde é um direito de todos e subscreve a política da Organização Mundial da Saúde que propõe Saúde para Todos (#HealthforAll). Sistemas públicos organizados que permitam uma assistência universal e equânime, regionalizada e hierarquizada, baseados na Atenção Primária à Saúde como porta de entrada, podem permitir um equilíbrio maior no enfrentamento das questões de saúde, sejam elas prevalentes ou emergenciais. Nesta Pandemia, observou-se o peso da desigualdade na mortalidade pelo Covid-19, como se pode ver comparando-se regiões centrais e periféricas da cidade de São Paulo e as diferenças entre a mortalidade entre a população branca e negra nos EUA. Outro aspecto dramático da desigualdade na Pandemia foi a diferença entre países ricos e países pobres na oferta de vacinas. A desigualdade, provavelmente, sempre caminhará ao lado da Humanidade, mas é aceitável que ela seja tão brutal, crescente e implacável? É justo normalizá-la, deslegitimá-la, ignorá-la?

Uma idílica neutralidade política em uma Pandemia, embora sedutora, não se coaduna com as palavras-chave do Manifesto da Slow Medicine. Neste momento, manter uma suposta neutralidade, buscando agradar a gregos e troianos, não é Sóbrio, nem Respeitoso. Muito menos Justo.


José Carlos Campos Velho: Sou médico geriatra e clínico geral, formado pela Universidade Federal de Santa  Maria, Rio Grande do Sul, em 1984.  Iniciei minha prática médica em uma pequena comunidade rural no interior de  Santa Catarina. Durante muitos anos trabalhei em Atenção Primária, em saúde  pública, em prática de Medicina de Família e atendimento de urgência,  particularmente na periferia da Grande São Paulo. Especializei-me em Geriatria e há mais de 20 anos trabalho em atendimento  ambulatorial, atualmente em consultório privado, assistência em Medicina  Interna em hospitais de grande porte em São Paulo e em assistência domiciliar,  particularmente à idosos fragilizados. Sempre fui muito ligado à cultura, e música, cinema, arte e literatura foram parte  fundamental de minha vida e minha formação. Gosto de viajar. Atualmente tenho  procurado me aproximar das coisas espirituais e gosto da vida em família. Sou  praticante de Tai Chi Chuan há 9 anos e pós-graduado  em “Práticas Corporais da Medicina Tradicional Chinesa, com foco em Tai Chi Chuan da Família Yang e sua filosofia” pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.

*Texto construído com a colaboração de Ana Coradazzi.

4 Comentários

  1. Agradeço, Suely!

  2. Muito obrigado, Dra. Aracy. Sua ponderação é muito bem-vinda.

  3. Endosso integralmente o texto. Justiça, respeito, sobriedade e saúde para todas e todos. A ética é a melhor política profissional.

  4. Excelente reflexão! Compartilhando!

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