Liev Tolstoi (1828-1910)
Em tempos de discussões acaloradas de como a Inteligência Artificial pode substituir o médico aqui e acolá, da análise de dados e Big Data, deparo-me no meio de uma estrada vicinal, sem fim e irregular. Campos substituídos ora por milho ora por aveia. Avisto áreas antes verdes, hoje amarronzadas pelo rigoroso inverno e suas geadas. Aqui a discussão é outra. O tempo é outro.
O Brasil rural, profundo, nos traz uma perspectiva mais real, digamos, pé no chão, do quão longe estamos em garantir oportunidades e gerar cuidados justos, sóbrios e respeitosos às pessoas.
Os índices de analfabetismo ainda são muito altos em pleno 2023, o analfabetismo funcional é crescente e o grande problema não está se o robô vai operar sozinho e, sim, se podemos interpretar uma receita, um texto simples, um folheto de missa.
Das promessas de substituição do homem em funções cada vez mais elaboradas, a foice sobre os ombros ainda é uma imagem comum por essas bandas. Não precisamos ser alienados e não sabermos para onde caminha o mundo: quarta, quinta revolução. Mas é preciso olhar o Brasil para além muros para perceber que ganhar o pão de cada dia ainda é o mais relevante para grande parte da população.
Que o salário mínimo, de mínimo não há nada, pois não garante o básico a uma saúde boa. Que a educação ainda que universal, mata um leão ao dia para garantir a entrada, mas a qualidade esbarra em barreiras tão grandes que não saberia por onde começar.
Não consigo, como cidadão e médico, discutir o futuro sem os olhos no presente ainda bem demarcados. Não para gerar desesperança e fatalismo, mas para chamá-los a olhar o mundo com esperança e missões mais nobres.
As gerações anteriores tinham bandeiras que se perderam, mundos que se transformaram, inimigos reais tornaram-se páginas de livros e muitos já nos deixaram. Nossa geração perdeu o olhar para o todo e ensimesmou-se. Sem um grande tema para nos unir, nos isolamos.
A reflexão que gostaria de trazer ao andar pelos atendimentos rurais é a necessidade do médico, enquanto formador de opinião e facilitador de decisões, retornar a um papel central da luta por dignidade. Menos instagrams, mais estradas e veremos que ainda há um mundo a mudar, a construir.
Ao médico que preza por cuidados mais justos e sóbrios, a mim me parece, que cabe o olhar atento ao que podemos contribuir. Não como heróis, que não somos, mas com a responsabilidade de provocar a sociedade à reflexão.
O que eu posso fazer? O que eu posso contribuir? Dentro da minha rua, do meu bairro, da minha cidade. O que posso contribuir para uma educação, saúde, à vida dos menos privilegiados, hoje? Afinal, quer “ser universal pinte sua aldeia”, não é mesmo?
Nossa dor, nossa angústia não é se o homem vai fazer uma casa em Marte, se o médico será substituído por uma máquina, mas se vamos garantir que nossos filhos e netos ainda possam sonhar. Essa bandeira que nos parece tão démodé ainda é tão presente no meu dia a dia que insisto em descortiná-la. Espero encontrá-lo sensível a um mundo mais sóbrio, respeitoso e justo.
Régis R. Vieira
Sou natural de Aiuruoca ( aiuru = papagaio ; oca = casa) no Sul de Minas, terra linda, permeada pela Serra da Mantiqueira.
Médico de Família e Comunidade (RQE 54828), Mestre em Ensino na Saúde pela UFF. Atualmente estou médico de família em UBS Rural, leciono a diferentes cursos de Pós Graduação do Hospital Albert Einstein e sou Membro do Centro de Estudos, Pesquisa e Práticas em APS e REDES do Hospital Israelita Albert Einstein. Colaborador do Movimento Slow Medicine Brasil.
Eliane Genciano Cruzsays:
Nossa, compartilho bastante da sua posição.
Sou médica de família há muito tempo e vivo me perguntando como seria uma forma melhor de iniciar essa pintura, já que eu não obtive interesse nos locais onde trabalhava.
Pedro Inacio Mezzomosays:
Belo texto. Traz lembranças do meu início de vida médica, em uma cidade pequena, onde a tua descrição acima cabe bem!
Priscillasays:
Regis, gratidão pelo seu texto. Bela reflexão. Atuo num hospital universitário e também sinto isso, toda a importância da tecnologia enquanto esbarramos em problemas tão basais no processo de cuidado.
Pessanhasays:
Obrigado, Regis, pelas reflexões, que também me acompanham aqui no interior de São Paulo, onde me deparo com analfabetismo e falta de letramento. Gosto de um dizer imputado a Willian James, Filósofo americano do século XIX: “haja como se o que você faz fizesse a diferença”. E faz…