Tecnologias em Diabetes e Slow Medicine

agosto 12, 2019
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Por Suzana Vieira:

Acredito que não tenha havido na endocrinologia nenhuma outra área com tantos novos lançamentos de medicamentos e dispositivos que a de diabetes. Em poucas décadas, pulamos de duas para doze classes de fármacos para o tratamento dessa doença. Praticamente a cada ano temos novidades para o tratamento e controle da glicemia em pessoas com diabetes tipo 1 e tipo 2.

Para aqueles pacientes com diabetes tipo 1, novos análogos de insulina, monitorização glicêmica sem as incômodas picadas na ponta dos dedos, aplicativos que compartilham a glicemia em tempo real com os profissionais de saúde ou familiares dos pacientes são alguns exemplos das novidades que chegaram para compor o arsenal diagnóstico e terapêutico. Os sistemas de infusão contínua de insulina (“bombas de insulina”) cada vez mais se aproximam do tão sonhado pâncreas artificial.

IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO EM DIABETES

Após um certo tempo de diagnóstico, pacientes com diabetes tipo 1 necessitam de dois tipos de insulina para mimetizar o funcionamento do pâncreas normal. O que as diretrizes orientam é que cada uma das duas insulinas representem 50% da dose total diária utilizada. É frequente observar pacientes com o uso de apenas um tipo de insulina e sem saber qual o papel de cada tipo no controle dos níveis de glicose. Muitos deles também monitoram a glicemia de forma frequente, todos os dias, mas não receberam orientação do que fazer diante de uma glicemia alta ou baixa. Se a ação frente a diferentes resultados não modifica a atitude, o resultado dessa ação não será eficiente no controle dos níveis glicêmicos.

Enquanto um dispositivo que tome as decisões para infusão ou suspensão da insulina não chega, os pacientes têm que tomar uma atitude frente a cada resultado de glicemia, ou assim deveria ser. A tecnologia adianta pouco se o operador dessas tecnologias não for devidamente capacitado.

Antes de se falar no esquema de doses de insulina, o rodízio dos locais de aplicação de inulina é de suma importância para garantir o mínimo que se espera de sua ação. Alimentação adequada, atividade física, boa qualidade de sono, manejo do estresse são pontos não podem ser esquecidos no cuidado da pessoa com diabetes e de várias outras doenças crônicas. Não só os médicos, mas a equipe multidisciplinar (nutricionista, enfermeiro, educador físico, psicólogo, etc) e também os educadores em diabetes devem estar envolvidos nessas orientações.

Não é raro observar um paciente com anos de doença, mas ainda com dúvidas básicas e condutas inadequadas que foram cristalizadas com o tempo. Sempre é oportuno repassar os conceitos que podem parecer banais para quem tem muito tempo de doença. Entretanto, diante de tantas variáveis que interferem no controle do diabetes e de tantas tecnologias que avançam rapidamente, muitos médicos podem ficar demasiadamente preocupados e ocupados em entender e lidar com todas as funcionalidades dessas novas tecnologias e deixar a educação em diabetes para segundo plano.

Historicamente – e estamos falando de um passado relativamente recente, a mortalidade do diabetes estava ligada a suas temidas complicações agudas, como o coma por cetoacidose diabética, o coma hiperosmolar e as hipoglicemias severas, que reduziam sobremaneira a expectativa de vida – situações clínicas atualmente manejadas de forma relativamente tranquila em serviços de terapia intensiva. Hoje, com advento das novas tecnologias e influência da ambiente e estilo de vida inadequado, os desafios são as complicações crônicas como os problemas cardiovasculares, entre eles o infarto do miocárdio, além das outras complicações nos olhos, rins e nervos. Temos uma mudança do perfil dos pacientes com diabetes tipo 1, estando eles mais “metabólicos”, com obesidade, hipertensão, alteração das gorduras no sangue, assemelhando-se mais às pessoas com diabetes tipo 2.

O diabetes tipo 2, juntamente com a obesidade, vem crescendo ao longo das últimas décadas. Clínicos gerais, cardiologistas, geriatras e outros especialistas tratam de pessoas com diabetes tipo 2. Na minha opinião, pacientes com diabetes tipo 2 que não necessitem de múltiplas doses de insulina não necessitariam de tratamento com endocrinologista. Entretanto, a partir do momento que o paciente com diabetes tipo 2 necessita de múltiplas doses de insulina e virtualmente todos as pessoas portadoras de diabetes tipo 1, o acompanhamento com endocrinologista é altamente recomendável, seja no serviço público ou privado.

ENDOCRINOLOGISTAS, DIABETOLOGISTAS E A ILUSÃO DE CONTROLE

Existem especializações e subespecializações dentro da medicina. Dentro da endocrinologia, alguns especialistas trabalham mais com diabetes e são chamados de diabetologistas. Entre eles, alguns cuidam mais de pessoas com diabetes tipo 1 e outros, de pessoas com diabetes tipo 2. Durante minha formação, por vezes ouvi dizer que o endocrinologista que cuida de diabetes tipo 1, cuida da glicemia, enquanto o endocrinologista que cuida de diabetes tipo 2 vê o doente.   Pode ser que essa prática seja resultado da tentativa de prever o efeito de diversas variáveis atuando conjuntamente, que idealmente resultariam na intenção de um controle glicêmico ótimo –  e que infelizmente muitas vezes foge do domínio tanto do paciente como do médico. Aliás, na vida e na medicina o controle total é uma ilusão.

Particularmente, não tenho problemas em afirmar que não domino todos os comandos presentes nos diversos modelos de bombas de insulina do mercado e dos aparelhos que medem a glicose. Isso o paciente pode fazê-lo melhor com a ajuda de diversos tutoriais disponíveis na internet, por serviços prestados por educadores em saúde e até pelas próprias empresas que fabricam tais equipamentos. O que acredito que posso contribuir mais durante a consulta é capacitar o paciente para entender a função de cada tipo de medicamento e, principalmente, para tomar decisões considerando os resultados do monitoramento por ele obtido. A ideia é tornar a pessoa com diabetes mais informada, capacitada para lidar com sua doença. Sem dúvida, também aprendo muito com os pacientes – eles me trazem resultados de seus próprios experimentos no manejo de sua doença, de maneira que juntos tentemos construir o que é válido e esperado para cada um deles, de forma individualizada.

O diabetes é uma doença crônica, ainda não passível de cura, cujo controle adequado é benéfico ao paciente. Isso implica no fato que os níveis glicêmicos não devem ser o único foco da conversa entre médico e paciente. Como já citado, a adesão ao tratamento medicamentoso é primordial, mas não só isso: o tratamento não farmacológico é fundamental. O bom relacionamento entre médico e paciente nessa jornada de quebrar repetições inadequadas e abertura para novos aprendizados é essencial.

Outra questão relevante, no que tange à individualização do cuidado, é a abordagem do diabetes em pacientes mais velhos, particularmente àqueles em extremos etários, portadores de múltiplas comorbidades ou com expectativa de vida restrita. A opinião prevalente em relação aos idosos é que o controle muito estrito dos níveis glicêmicos pode ser deletério, pois aumenta o risco de hipoglicemia, sugerindo-se uma flexibilidade maior nos alvos de Hemoglobina Glicada.

SLOW MEDICINE EM DIABETES

Os parágrafos acima exemplificam dois dos dez princípios da Slow Medicine. O terceiro princípio, que se refere ao autocuidado e à autonomia, fomenta o compartilhamento de decisões, considerando os valores, as preferências e expectativas dos pacientes. Essas decisões devem envolver o ambiente do paciente, e outras fontes de apoio como a família, os amigos e mesmo os vizinhos. Dennis McCullough, um dos grandes divulgadores da filosofia da Slow Medicine nos EUA, denominava este grupo de cuidados de “Circle of Concern“. A educação em diabetes, responsabilidade de todos os profissionais que lidam com esta doença, pode resultar em maior autonomia – para que o paciente tome as decisões mais adequadas para o controle da sua glicemia e de outros fatores para sua saúde como um todo.

O décimo princípio aponta para o uso parcimonioso da tecnologia, afirmando que “a tecnologia deve servir ao homem. As novas tecnologias devem  cumprir seus objetivos de auxiliar o médico a tomar as melhores decisões para seu paciente, que busquem primordialmente sua qualidade de vida.” Em relação à tecnologia, pode parecer natural que todas as pessoas se beneficiem e prefiram tecnologias de ponta. Porém, no mundo real o que observamos é a diversidade: muitas pessoas, aptas para realizar todos os controles e princípios da terapia com bomba de insulina, preferem o uso de canetas. Elas dizem que não se sentem confortáveis e não desejariam um aparelho ligado ao corpo 24 hs por dia. Outros, ainda não sentem segurança com as novas tecnologias de monitorização e preferem a forma mais tradicional, a da medida da glicemia na ponta de dedo.

Podemos então concluir que decisões compartilhadas, construção da autonomia para o autocuidado e uso parcimonioso da tecnologia fazem todo sentido para profissionais que lidam com diabetes e seus pacientes.

___________________

O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

________________

Suzana Vieira: Nasci no interior de Pernambuco, fiz minha graduação em Recife e vim para São Paulo há quase duas décadas para cursar a residência médica e doutorado e por aqui fiquei. Ao término do projeto acadêmico, tornei-me mãe da Helena, tarefa nobre que não se aprende nos livros. No fim de 2015, após uma retomada de rota profissional, comecei a escrever sobre meus estudos na área de endocrinologia, e no ano seguinte nasceu um outro “filho”: o blog. Viagens, natureza e animais (principalmente gatos) são outras paixões que recarregam minhas energias.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

3 Comentários

  1. Muito obrigada pelo seu comentário, Nathalia!
    Sem dúvida, nossas conversas sobre as dificuldades na lida com as doenças crônicas contribuiram para as reflexões do texto.
    Um agrande abraço,
    Suzana

  2. Muito obrigada pelo seu comentário, Nathalia!
    Sem dúvida, nossas conversas sobre as dificuldades na lida com as doenças crônicas contribuiram para as reflexões do texto.
    Um agrande abraço,
    Suzana

  3. Interessante análise e abordagem feitas com o uso dos conceitos de “autonomia” e “decisão compartilhada” sobre o tratamento em Diabetes. É fundamental a difusão deste conhecimento e entendimento pleno pela população em geral para que um melhor cuidado em saúde verdadeiramente exista. Fundamental o pensamento crítico em relação ao uso da tecnologia ligada à insulina. Outro pensamento crítico muito interessante foi direcionado à relação que o papel do especialista no manejo desta patologia ocupa, em que nem sempre se faz imprescindível, porém para aqueles pacientes que o necessitam deve ser de apoio e informação em saúde sobretudo. E mais ainda, belo o texto final, muito humano em suas entranhas deste Brasil ainda tão desigual, como bem lembrou esta autora Pernambucana de origem e coração.

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