Um agricultor com diagnóstico de Mieloma Múltiplo

março 31, 2019
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Por Lucas Cantadori

A VERSÃO FAST 

BC, 78 anos, masculino, vem desacompanhado para a primeira consulta após diagnóstico de mieloma múltiplo feito durante uma internação recente. O atendimento ambulatorial se inicia às 8 horas da manhã. Por volta das 10 horas, o médico é informado que BC reclamou da demora para o atendimento. Irritado, pede para o secretário avisá-lo que esse tempo de espera é normal, ainda mais pelo acúmulo de pacientes resultante de um feriado na semana anterior. Ao ser chamado, BC entra no consultório lentamente, em silêncio e olhando para baixo. O médico – ainda incomodado – lê a ficha de encaminhamento e avalia os exames disponíveis. Pergunta se o paciente está ciente do quadro e explica todos os pormenores da doença e as etapas do tratamento. Após o exame físico, todas as receitas e prescrições são feitas e entregues a BC, assim como o pedido de exames com a data para o retorno. O médico pergunta se resta alguma dúvida e, diante da negativa de BC, encerra a consulta. Todavia, BC não comparece ao retorno agendado para dali 2 semanas. Cerca de 1 mês após a consulta inicial, BC chega ao pronto-socorro com quadro de confusão mental. Os exames evidenciam hipercalcemia e insuficiência renal com necessidade de hemodiálise. Todas as medidas de urgência são devidamente tomadas. Após 10 dias de tratamento intensivo, o paciente retoma a estabilidade clínica. O médico que o atendeu em sua primeira consulta ambulatorial explica, visivelmente irritado, que tudo isso ocorrera pelo fato de ele não haver aderido adequadamente ao tratamento. BC explica então que não seguiu a prescrição porque se confundiu com os papéis, já que não sabe ler.

A VERSÃO SLOW

BC, 78 anos, masculino, vem desacompanhado para a primeira consulta após diagnóstico de mieloma múltiplo feito durante uma internação recente. O atendimento ambulatorial se inicia às 8 horas da manhã. Por volta das 10 horas, o médico é informado que BC reclamou da demora para o atendimento. Pede que o funcionário o tranquilize, explicando que BC será chamado em breve. Por volta das 10:30h, BC é chamado para a consulta. O médico percebe as roupas simples, a mochila com seus pertences e uma grande timidez e constrangimento, que o impelem ao silêncio. Ele o acolhe com um caloroso aperto de mãos, um tapinha no ombro e o encaminha para sua cadeira. Antes de iniciar a consulta, desculpa-se pela demora no atendimento e explica que se trata de um dia muito corrido, pós-feriado, mas garante que irá atendê-lo da melhor forma possível. O médico descobre, com algumas perguntas rápidas, que BC é caseiro de um sítio, onde mora com sua esposa, e onde trabalhou a vida toda para garantir o estudo dos filhos, que agora moram na cidade com suas respectivas famílias. Como não tem a opção de deixar o serviço acumulado – e também não quer incomodar os filhos – deixara a esposa cuidando do trabalho e comparecera sozinho à consulta. O transporte da prefeitura tinha ido buscá-lo às 3 horas da manhã, a fim de chegar a tempo para a coleta de exames pré-consulta. Logo ao chegar, o motorista o avisara que iria embora ao meio dia, e o deixaria para trás caso não tivesse terminado seu atendimento, o que deixara BC extremamente ansioso. BC conta ainda que estava nervoso porque nunca tinha entrado num consultório médico, uma vez que sempre que precisava o farmacêutico de seu município o ajudara. Quando o médico pede sua ficha de encaminhamento, BC entrega todos os papéis que tinha em mãos, incluindo contas de telefone e documentos pessoais. Notando sua insegurança, o médico pergunta se BC sabe ler, comprovando sua suspeita: ele era analfabeto. Ele tranquiliza BC, dizendo que isso não será um problema, que encontrarão um jeito de ajudá-lo no que for preciso. A partir daí, inicia a explicação acerca da doença e quais seriam os princípios do tratamento proposto, utilizando-se de desenhos e de palavras simples. O exame físico e os exames laboratoriais não evidenciavam nenhuma alteração que demandasse conduta imediata. O médico convoca então a assistente social para que ela participe das explicações sobre as receitas e exames necessários, permitindo assim que ela possa auxiliar BC no que for necessário. BC é então orientado a retornar na semana seguinte acompanhado por seu filho, o qual é contactado pela assistente social e se coloca à disposição para cuidar do pai. BC comparece ao retorno com seu filho, formado em um curso técnico graças ao esforço de toda a vida do pai. O quadro clínico é novamente esclarecido, assim como todos os pormenores do tratamento. As dúvidas são sanadas e a prescrição do tratamento oncológico é feita. BC realiza o tratamento de forma exemplar, nunca faltando a uma consulta e atingindo remissão da doença, que se mantém até hoje.

FAST VERSUS SLOW

Absortos em rotinas extenuantes, muitas vezes os profissionais da saúde se rendem ao ímpeto de um atendimento puramente técnico e aparentemente (ou ilusoriamente) eficaz. Todavia, se nos permitirmos exercitar nossa competência reflexiva e nosso dom natural da empatia, identificando o contexto de vida e valores de cada paciente – ao custo de uns poucos minutos a mais de consulta – estaremos pavimentando o caminho para um resultado muito mais produtivo.O caso relatado reflete o impacto que três dos princípios defendidos pela prática da Slow Medicine podem ter no desfecho dos pacientes: Individualização, para podermos discernir; Tempo, para ouvir, entender e refletir; e Paixão e Compaixão; que nos permitem superar os desconfortos que muitas vezes cercam nossa prática médica em nome da preservação da dignidade e da segurança do paciente.

Lucas Cantadori é médico hematologista na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP.

1 comentário

  1. Fantástico!
    Meu marido é paciente de Mieloma Múltiplo e o primeiro hematologista que passamos nos tratava muito mal. Estávamos apavorados com o diagnóstico de uma doença que nunca tínhamos ouvido falar e o médico ficava visivelmente incomodado quando eu fazia questionamentos sobre o tratamento.
    Sem contar que ele agendava consultas a partir das 8:00 da manhã e só chegava no consultório quase 10:00.
    Felizmente logo procuramos atendimento em um hospital especializado em câncer e fomos super bem recebidos pela médica. Essa médica sem dúvida praticou a slow medicine. Foi um anjo que esclareceu todas as nossas dúvidas com muita atenção e carinho.
    O paciente em uma situação dessa já está apanhando da vida. O mínimo que espera é ser acolhido por alguém que tenha a sensibilidade de se colocar no lugar dele.

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