Um idoso comparece à consulta com esquecimentos

maio 14, 2019
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Por Rafael Thomazi:

A versão FAST:

João é um senhor de 82 anos, que desde 2015 apresentava esquecimentos, alteração do humor, repetia as mesmas histórias, colocava objetos em lugares inapropriados, deixando de realizar atividades rotineiras como ler jornal e assistir aos jogos de futebol nos finais de semana. Ele passou por uma consulta ambulatorial, e os achados clínicos foram interpretados como normais para a idade. Em 2016 começou a ter insônia e progressivamente passou a ficar mais agitado e agressivo. Devido a este quadro, os familiares levaram o seu João ao médico. No meio da correria dos atendimentos, o médico prescreveu um benzodiazepínico (Clonazepam 2mg) para que o paciente dormisse melhor. No retorno, os familiares questionaram o médico, dizendo que seu João estava com tonturas e continuava agitado. Tinha começado a ver bichos e passou a acusar a esposa de traição. O médico então prescreveu Risperidona 2mg para melhorar a agitação. Após uma melhora inicial da agitação, seu João apresentava-se cada vez mais alheio aos estímulos externos. Não conseguia mais se vestir, começou a depender de sua família para tomar banho e alimentar-se, não conseguia mais controlar a urina, passando a usar fraldas. Em 2018 precisou ser internado no hospital em duas ocasiões para tratamento de pneumonia. Ficou muito tempo hospitalizado, apresentando quadros de grave confusão mental durante essas internações, ocasioões em que foi contido no leito; em na última internação, em novembro de 2018, voltou para casa emagrecido, apresentando lesões por pressão em região sacral e trocânter direito. Como sua ingestão oral era baixa, seus familiares foram orientados de que a única alternativa no seu caso era a passagem de uma sonda nasoenteral. Na alta, a equipe médica conversa com os familiares e orientam que a sonda nasoenteral evitaria novos eventos de pneumonia no paciente. Dois dias após a alta, seu João, bastante incomodado, sacou a sonda nasoenteral. Ele precisou então voltar ao Pronto Socorro para que a sonda fosse repassada, o que foi um procedimento difícil, que exigiu que ele fosse novamente contido. Ele permaneceu por 6 horas no PS aguardando o RX para checar o posicionamento da sonda. Havia um médico na família, especialista em gastroenterologia, que sugeriu a realização de uma gastrostomia já que o paciente estava há 3 meses com sonda nasoenteral. Em 2019 paciente permanecia muito emagrecido, não deambulava mais e continuava agitado: para não retirar a sonda nasoenteral, ele ficava permanentemente contido na cama. Além disso, não conseguia se comunicar, apenas balbuciava, e as lesões por pressão não fechavam mais. Foi então optado pela realização de uma gastrostomia no paciente. Duas semanas após a gastrostomia, seu João foi levado pelos familiares outra vez para o PS, e foi novamente internado por uma grave pneumonia, que evoluiu para um choque séptico. Ainda no PS foi intubado, foram iniciadas drogas vasoativas e ele foi encaminhado para a UTI. Após 5 dias na UTI, em decorrência da constatação da piora da função renal, o plantonista conversou com a família e explicou que a diálise seria a única chance do paciente sobreviver, sendo então submetido à hemodiálise . Infelizmente, a evolução foi desfavorável e o paciente apresentou uma parada cardiorrespiratória. Foi reanimado por 30 minutos sem sucesso, evoluindo para óbito no sétimo dia, sob cuidados em terapia intensiva.

A Versão SLOW:

João é um senhor de 82 anos, que em 2014 passou a apresentar esquecimentos e alteração do humor; repetia as mesmas histórias, colocava objetos em lugares inapropriados e deixou de realizar suas atividades rotineiras, como ler jornal e assistir aos jogos de futebol nos finais de semana. A família ficou preocupada, pois se tratava de uma pessoa que sempre tinha sido muito ativa e era uma referência para todos, por seu jeito ponderado e suas opiniões sempre equilibradas. A família agendou uma consulta ambulatorial. Ao atendê-lo, o médico fez uma história clínica pormenorizada, examinou seu João, e após fazer uma hipótese diagnóstica de um transtorno cognitivo, sugeriu aos familiares que se iniciasse a investigação de um quadro demencial. O próprio médico realizou alguns testes cognitivos, como o Mini Exame do Estado Mental, o Teste do Relógio e a Fluência Verbal. Também foi solicitada uma Tomografia do Crâneo, pois a Ressonância Magnética do Encéfalo, embora pudesse dar informações mais precisas, era de difícil acesso, bem mais cara e talvez seu João precisasse de anestesia para ficar imóvel durante o exame. Solicitou uma série de exames laboratoriais, com a intenção de descartar outras patologias que pudessem estar causando ou contribuindo para o caso.

De posse destes dados, o diagnóstico de um quadro demencial misto foi firmado. Passou-se então a um outro momento da abordagem do caso de seu João: o planejamento de seus cuidados junto aos seus familiares. Eles foram orientados quanto à probabilidade de uma demência mista, foi explicado a evolução da doença, a irreversibilidade do quadro e os tratamentos possíveis. De acordo com esta conversa, o médico optou por iniciar um tratamento farmacológico com donepezila, um inibidor de aceticolinesterase. Em seu retorno, após cerca de 45 dias de tratamento, seu João evoluía com uma aparente estabilização do quadro. Acreditando que a resposta do paciente tinha sido favorável, o médico aumentou a dose do medicamento, chegando até as doses máximas preconizadas. Nesse período médico iniciou orientações não-farmacológicas, indicou que o paciente passasse a ter um acompanhamento multiprofissional, com consultas regulares com fisioterapêuta, fonoaudiólogo e nutricionista. Além disso, reuniu-se com familiares periodicamente, a fim de obter informações sobre a biografia do paciente e suas experiências de vida antes de adoecer. Antes da eclosão do quadro demencial, seu João tinha cuidado da sua esposa, acometida de um Acidente Vascular Cerebral em 2010, que a deixou acamada e totalmente dependente. Os familiares contaram que a esposa do paciente faleceu em 2012, após uma pneumonia; seu João sentia-se muito culpado por ter deixado sua esposa sofrendo na UTI com tantas sondas e aparelhos ao seu redor, sozinha e, uma coisa com que o impressionara muito, a traqueostomia. Em 2016 paciente iniciou quadro de insônia e passou a ficar mais agitado e agressivo, tornando-se progressivamente dependente para as atividades básicas de vida diária como banho e alimentação. Em consulta médica, como uma tentativa, foi associado outro fármaco, a memantina , recomendada para pacientes em fases mais avançadas da doença. A resposta do paciente ao novo medicamento foi pobre. Foi prescrito então um neuroléptico, a quetiapina, em doses baixas, e sugerido que fosse administrada quando o paciente apresentasse muita agitação. O médico esclareceu a família quanto à importância de medidas não farmacológicas nesse contexto. Em observando o agravamento da doença, o médico achou que era o momento de esclarecer à família que, à semelhança de outras doenças como o câncer, a demência era uma patologia que levava à terminalidade. Tendo em vista esta peculiaridade de uma doença de manejo tão complexo, ele prosseguiu a discussão com familiares. Explicando sua história natural, compartilhou que, à medida em que a dependência e a necessidade de cuidados aumentavam, com avançar da demência, a perspectiva de uma abordagem mais compassiva poderia ser a mais adequada àquela situação. Ele falou com clareza sobre a prática dos cuidados paliativos, disponibilizando inclusive um manual para os familiares sobre o assunto, além de outros recursos existentes, como grupos de mútua ajuda, buscando com isso fornecer ferramentas que pudessem esclarecer possíveis dúvidas. Em novembro de 2018 seu João praticamente não conseguia mais caminhar, foi permanecendo cada vez mais tempo na cama, com muita dificuldade para falar, apenas balbuciava palavras soltas e por fim entrou em estado de mutismo e passou a apresentar muita dificuldade para se alimentar. Caquético, aquele homem que tinha sido muito forte quase não tinha mais músculos, com os braços e as pernas muito finos. O médico explicou que esta situação era conhecida como sarcopenia, um quadro bastante frequente em quadros demenciais avançados. Em uma nova reunião, desta vez na casa do seu João, foi abordada a questão da disfagia, que ele já sofria, sugerindo-se, em conjunto com as orientações da fonoaudióloga e da nutricionista, a modificação do padrão e da consistência alimentar. Este foi um dos momentos mais difíceis para a família do seu João entender. Ele sempre fora um “bom prato”,  e seus familiares sentiam-se muito inseguros que ele sentisse fome ou ficasse desnutrido. Delicadamente o médico explicou o que seria uma dieta de conforto , explicando que outras possibilidades de nutricão como a passagem de sonda nasoenteral ou realização de gastrostomia não eram isentas de possíveis intercorrências e não garantiam a não ocorrência de complicações como aspiração. Além disso podiam aumentar o risco de lesões por pressão, pois frequentemente o paciente necessitava permanecer contido e imobilizado pelas sucessivas tentativas de sacar a sonda. Como não estava mais agitado, foi iniciada a retirada gradual dos psicofármacos. Os familiares contam que, após experiência vivida com sua esposa, seu João sempre dizia que, se ele não pudesse alimentar-se por boca por algum motivo, não gostaria de ficar com sonda para alimentação, pois a recordação de sua esposa com a sonda no nariz até o óbito sempre lhe trouxe muita dor. Os familiares ficaram satisfeitos e mais tranquilos com a proposta, e procedeu-se à adequação de dieta, priorizando a dieta de conforto. Em 2019 o paciente apresentou um episódio de broncoaspiração. Felizmente o médico que cuidava do paciente estava acessível naquele dia. Ele reuniu-se novamente com a família e explicou sobre as questões de internação hospitalar e que poderiam ser iniciados cuidados domiciliares, colocando em prática os cuidados paliativos, já discutidos anteriormente com a família. Optou-se por utilizar a via subcutânea para administração de medicamentos que auxiliassem no controle da dor e da falta de ar, da sialorreia e da agitação. Seu João e sua família sempre foram religiosos, frequentadores da igreja e, após ser contactado, o padre, conhecido da família, prontificou-se para dar o necessário suporte espiritual naquele momento difícil e delicado. Seu João ali permaneceu, em seu quarto, ventiladores ligados, arejando o ambiente – fazia calor naqueles dias – ouvindo suas músicas prediletas. Ele faleceu após dois dias, confortável, na presença de seus familiares, com o seu pijama favorito. A velha vitrola tocava baixinho a música dos áureos tempos, como ele sempre quis .

FAST VERSUS SLOW

O caso acima ilustra a difícil missão de cuidar e diagnosticar um paciente com demência de forma correta. Muitos pacientes não são diagnosticados nas suas fases mais precoces. Nota-se como umO caso acima ilustra a difícil missão de cuidar e diagnosticar um paciente com demência de forma correta, e o quanto uma abordagem fundamentada nos princípios da Slow Medicine podem impactar nos resultados obtidos. Muitos pacientes não são diagnosticados nas suas fases mais precoces. Nota-se como um tratamento inicial inadequado, como por exemplo o uso de medicamentos inapropriados como benzodiazepínicos, e a utilização não criteriosa de neurolépticos podem levar a uma piora clínica do paciente com demência, o que poderia ser minimizado com a adoção de um dos pilares fundamentais da Slow Medicine: o Tempo. Paradoxalmente, essa não disponibilidade de tempo no início dos sintomas favorece a evolução para um quadro de manejo ainda mais difícil (em especial se não realizarmos um plano de cuidados e não incentivarmos a participação da família neste contexto), resultando na necessidade de muito mais tempo dos profissionais de saúde. Educar os familiares quanto à prática de cuidados paliativos desde o início do diagnóstico de demência é uma tarefa árdua e deve acompanhar as orientações de planejamento de cuidado, visto que muitas decisões precisarão ser tomadas no decorrer da doença. As vias alternativas de dieta para pacientes com demência avançada, por exemplo, devem ser discutidas com a família – trata-se sempre de um assunto delicado – e em geral não são indicadas no “mundo ideal” e desaconselhadas pelas sociedades de geriatria e de medicina paliativa. Por outro lado, no “mundo real”, se pensarmos que frequentemente enfrentamos a falta de acesso a estratégias de cuidados paliativos, sem uma abordagem ampla e personalizada da disfagia e sua evolução, entendida como um sintoma de demência avançada; as dificuldades para a aquisição de medicamentos que possam ser administrados por via subcutânea em ambientes extra-hospitalares; muitos pacientes com quadros avançados serão submetidos à passagem de sonda nasoenteral ou gastrostomia, aumentando risco de broncoaspiração, alterações comportamentais e lesões por pressão pela imobilidade, aumentando a possibilidade de internações hospitalares, principalmente por quadros infecciosos. Esse é mais um princípio slow essencial para o manejo das demências: o compartilhamento de decisões. Outro aspecto importante é a inclusão sistemática de medidas não farmacológicas e de suporte de uma equipe multiprofissional, inclusive favorecendo a utilização de práticas integrativas quando necessário (outro princípio slow que poderia fazer diferença). Por fim, conhecer a biografia do paciente com demência é extremamente importante e ao mesmo tempo complexo. A sensibilidade e o bom senso andam juntos nesse contexto, e aqui vemos outro princípio slow que, se adotado, pode modificar drasticamente o desfecho: Individualização.  Evitar a distanásia deve ser um dos principais objetivos ao cuidarmos de pacientes com demência, sempre focando o planejamento dos cuidados, a individualização das condutas e a decisão compartilhada.a.

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Rafael Thomazi, 32 anos, nascido em São Bernardo do Campo, mora em Botucatu desde 2006, onde iniciou graduação em medicina na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB-UNESP). Médico formado em 2011, fez residência em clínica médica e geriatria pela FMB. Título de especialista em geriatria pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia em 2017. Trabalha em consultório como geriatra, realiza atendimento domiciliar na cidade de Botucatu, sendo médico responsável pela enfermaria de geriatria do HC de Botucatu – UNESP, preceptor dos residentes em geriatria. Mestrando no programa de fisiopatologia em clínica médica da FMB. Entusiasta da filosofia slow medicine, da prática de cuidados paliativos e desprescrição médica.

3 Comentários

  1. Existe uma questão que gostaria de observar e chamar a atenção tanto da comunidade médica quanto dos parentes de pacientes longevos: -o diagnóstico é difícil sim, e MUITO!
    Precisa-se portanto, cada vez mais trabalhar e difundir a cultura da Prevenção!
    Vários fatores poderão desencadear déficits cognitivos e transtornos neurodegenerativas maiores ou menores, mas se as pessoas cuidarem da sua saúde mental tal como cuidam ou se preocupam em cuidar como cuidam da saúde física, os prognósticos poderão ser melhores e a autonomia e independência serão mantidas e garantidas por muitos anos!
    Antes da adoção da equipe multiprofissional, que em muitos casos é necessária, o trabalho do médico junto com um profissional capacitado para fazer Estimulação Cognitiva, é fundamental! Mesmo após diagnóstico de demência, até o estágio moderado, pode-se fazer muito, de forma a trazer funcionalidade para o paciente e tranquilidade para a família!!!

  2. Já estou chegando aos 88 anos. Ainda trabalho. Se me perguntarem o que fiz para chegar até aqui, não saberia responder. A resposta fácil quase sempre é o DNA, é o meu código genético, etc. Não fui esportista como desejava pois a coluna vertebral sempre foi questionada, não deveria forçá-la. Futebol até 24 anos, nada mais. Penso que o trabalho foi e ainda é o grande fator que nos move. Sou entusiasta da Slow Medicine e preparo os meus filhos para o crepúsculo que há de chegar. Minha esposa se valeu em 2016 das vantagens do slow. Sua morte foi serena, sem complicações, sem diálises e outras que, talvez, até prorrogassem sua vida um pouco mais. Intubar jamais! Os filhos já se incorporaram à Slow Medicine. José Carlos Barbério.

  3. Já estou chegando aos 88 anos. Ainda trabalho. Se me perguntarem o que fiz para chegar até aqui, não saberia responder. A resposta fácil quase sempre é o DNA, é o meu código genético, etc. Não fui esportista como desejava pois a coluna vertebral sempre foi questionada, não deveria forçá-la. Futebol até 24 anos, nada mais. Penso que o trabalho foi e ainda é o grande fator que nos move. Sou entusiasta da Slow Medicine e preparo os meus filhos para o crepúsculo que há de chegar. Minha esposa se valeu em 2016 das vantagens do slow. Sua morte foi serena, sem complicações, sem diálises e outras que, talvez, até prorrogassem sua vida um pouco mais. Intubar jamais! Os filhos já se incorporaram à Slow Medicine. José Carlos Barbério.

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