Um ‘olhar slow’ para os protocolos assistenciais

outubro 20, 2021
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Por Rodolfo Moraes

Dona Maria, aos 65 anos, tinha recebido o diagnóstico de câncer de cólon há alguns meses, já com metástases hepáticas. Desde a primeira consulta com o oncologista, tinha sido informada sobre a impossibilidade de cura da doença e dos protocolos quimioterápicos preconizados para sua situação, que permitiriam um maior tempo de vida e uma melhor qualidade de vida. Esperançosa com o otimismo do médico, Dona Maria iniciou o esquema de tratamento, que incluía a infusão contínua de drogas a cada 15 dias. A expectativa de ter mais tempo junto aos seus netos e continuar frequentando o grupo da Igreja funcionaram como estímulo para que ela suportasse bem os efeitos colaterais da quimioterapia, que incluíam formigamentos nas mãos, falta de apetite e uma incômoda diarreia. Após alguns ciclos, no entanto, as vantagens do tratamento não lhe pareciam mais tão atraentes assim. Ela se sentia cada vez mais cansada e desanimada, perdia peso, e a diarreia limitava até mesmo as idas à casa dos netos. Para piorar, os exames de reavaliação mostravam que as metástases no fígado estavam praticamente do mesmo tamanho. O oncologista a informou que deveriam mudar o esquema de tratamento, em busca de uma resposta mais expressiva. Provavelmente os efeitos colaterais seriam um pouco mais intensos, explicou ele, mas esse era o melhor tratamento para a doença dela. Dona Maria saiu da consulta pensativa. Tentava imaginar como seria sua vida dali para frente, recebendo um tratamento que a impedia de viver as pequenas felicidades do dia-a-dia, que não tinha perspectiva de curá-la, e que seria mantido até o fim de seus dias. Foi com essa visão em mente que ela disse ao oncologista que preferia não continuar com o tratamento e tentar conviver com a doença do melhor jeito possível. Foi quando, entre surpresa e magoada, ouviu do medico que, se ela não pretendia seguir suas orientações, baseadas nos melhores dados disponíveis na literatura, ele não poderia ajudá-la. Visivelmente contrariado, ele fez um encaminhamento à equipe de Cuidados Paliativos e, com um sorriso pouco sincero, lhe desejou boa sorte. Diante dos protocolos terapêuticos desenhados para combater o câncer, dona Maria tinha passado a ser apenas um mero detalhe.

Curioso notar que o foco principal da assistência à saúde, na grande maioria das vezes, não é a pessoa adoecida, mas sim sua doença, considerada uma inimiga a ser combatida, custe o que custar. Nesse modelo assistencial, focado excessivamente na doença, a autonomia do paciente é colocada sob risco. As decisões do profissional de saúde, detentor do saber técnico, tendem a prevalecer, pois buscam um único objetivo: a cura biológica, atingida ao se “vencer” a doença. O plano traçado para alcançar esse objetivo é geralmente descrito na forma de protocolos.

Os protocolos são direcionados para as doenças. Elas se encaixam bem neles, pois não manifestam vontade própria e nem têm sentimentos. Não questionam, não reclamam. Nada contra, até porque vidas são salvas graças às pesquisas científicas que os originaram. O problema, por assim dizer, estaria então no (mau) uso dos mesmos, especialmente quando aplicados desconsiderando a autonomia do paciente.

Nem sempre os objetivos de vida do paciente coincidem com os do protocolo para tratamento de sua doença. Uma pessoa pode, por exemplo, escolher viajar e passar mais tempo de vida com os filhos, diante de uma fase avançada de doença oncológica, em vez de “ir para o próximo degrau” do protocolo disponível para seu tratamento. Significa que o protocolo está falho, ou que o paciente está errado? Não! São escolhas! Isso é autonomia! 

Quando ignoramos a autonomia e compactamos o paciente de forma rígida em nossos protocolos, duas coisas muito ruins podem acontecer. A primeira delas são os excessos, tanto diagnósticos quanto terapêuticos, uma vez que as condutas, nessa situação, são guiadas exclusivamente para a esfera biológica que, como já dito, acata tudo sem questionar. A segunda é a despersonificação do paciente, pois ele passa a ser mais um número, frio, dentro dos trilhos de uma determinada norma de conduta. Perde-se, assim, sua individualidade. Por mais bem intencionadas que sejam nossas propostas e condutas, elas devem ser adaptadas para a prática diária de uma forma maleável, sem imposições. Basta que isso não represente riscos reais para o paciente.
É assim que, algumas vezes, por exemplo, pode ser mais benéfico manter aquele inútil meio litro de oxigênio nasal para um paciente em fase final de vida do que deixar sua família, apesar de nosso acolhimento e orientação, se sentindo tão mal com a falta do oxigênio. Impor nossas condutas sem entender o contexto pode ser não apenas deletério como até perigoso. Mesmo aquilo que é tecnicamente adequado pode ser adaptado para a realidade de cada caso, de cuja história conhecemos apenas um detalhe.

A autonomia é um dos princípios mais importantes da Slow Medicine. O paciente, livre de influências externas, pode ser capaz de fazer suas próprias escolhas, baseado em seus valores e prioridades, e esse deve ser nosso ponto de partida. O protocolo, dessa forma, não precisa deixar de existir. Ele deve, sim, ser colocado a serviço das escolhas de vida da pessoa, que é única e precisa ser vista como tal. 

Pacientes procuram os médicos para obter conselhos. Mesmo no contexto de decisões sensíveis às suas preferências, eles podem fazer perguntas como “O que devo fazer?” ou “O que você faria se fosse seu pai?”.  Eles buscam esse conselho, em parte, porque não reconhecem o papel importante que suas preferências desempenham ao fazer suas escolhas, ou porque estão com medo, ou oprimidos, ou não querem assumir a responsabilidade de tomar determinadas decisões. Mas, mesmo quando os pacientes desejam que seus médicos tomem decisões por eles, eles esperam que essas decisões reflitam seus valores pessoais. É sempre bom lembrar que protocolos assistenciais não têm valores pessoais, têm apenas valores técnicos. E isso pode ser muito, muito pouco.


Rodolfo Moraes Silva é médico especialista em Clínica Médica pela SBCM, pós-graduado em Dor (Einstein) e Cuidados Paliativos (PUC Minas), com título de área de atuação e Medicina Paliativa (ANCP/SBCM/AMB). Trabalha como médico paliativista no Hospital do Câncer e Hospital São Joaquim de Franca-SP. Seu perfil no Instagram, @dr.rodolfo.moraes, tem se tornado referência ao trazer informações relevantes e responsáveis sobre os Cuidados Paliativos de forma leve e bem-humorada. E o mais importante: é o pai orgulhoso do José Gabriel.

1 comentário

  1. A frase que me fez pensar, ouvida de paciente ao final de uma consulta: “Hoje estou mais tranquila, porque encontrei um médico, e não um ‘doutor’.”

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